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Liberdade de expressão e crime militar

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Agenda 29/04/2014 às 13:40

Estuda-se a liberdade de expressão em face da hierarquia e disciplina, em especial com fundamento na Constituição Federal, no Código Penal Militar, na Lei Federal n. 7.524/86 e em julgados.

Introdução

Este texto busca demonstrar que militares da reserva e agregados têm assegurada a liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, embora com limitações constitucionais. Em situações específicas estão sujeitos aos rigores legais – transgressões disciplinares e/ou o crime militar da publicação ou crítica indevida. Trata-se da garantia reconhecida pela lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986. E há reflexos, inclusive, nos depoimentos perante a Comissão Nacional da Verdade.


1. Liberdade de Expressão e de Manifestação de Pensamento

A atual Constituição da República assegura a todos a liberdade de expressão em seus artigos 5º e 220, a saber:

Art. 5º

(...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(...)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(...)

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.


2. O Crime de Publicação ou Crítica Indevida

Inicialmente, convém trazer o conceito de crime, nos ensinamentos do Dr. Jorge César de Assis[i]:

Para Celso Delmanto, embora o CP [Código Penal] não defina o que seja crime, devem ser apresentados os seus conceitos material e formal. Assim, no sentido material, crime é a violação de um bem jurídico protegido penalmente; e no sentido formal, somente o comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) pode ser crime (1986: 19)

No aspecto analítico, define-se crime como a ação típica, antijurídica e culpável.

Neste sentido, o mestre Jorge César de Assis conceitua, de maneira bastante didática[ii]:

Ação é a manifestação da vontade de um homem no mundo exterior (...)”

Antijuridicidade é a contrariedade do fato com a ordem jurídica. Toda conduta típica revela um indício de antijuridicidade se não estiver amparada pela norma permissiva do art. 42 do Código Penal Militar.

Tipicidade é a qualidade da ação. Toda ação que se ajustar a um tipo penal será ação típica.”

Tipo é a descrição em abstrato do crime. Fato típico é o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca, em regra, um resultado, e é previsto como infração penal.”

Culpabilidade é conceituada pelos finalistas como a reprovação da ordem jurídica em face de estar ligando o homem a um fato típico e antijurídico. Em última análise, é a contradição entre a vontade do agente e a vontade da norma.”

Punibilidade é apenas a consequência jurídica do delito e não, uma sua característica.” (destaquei)

Ainda, o Dr. Jorge César de Assis[iii] conceitua crime militar como “toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”. Já para o jurista Marcelo Uzeda de Faria[iv], “é crime militar aquele elencado no Código Penal Militar.” O fundamento está em que o Código Penal Militar (CPM), instituído pelo decreto-lei federal n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, e alterações posteriores, não o define, prevalecendo o critério objetivo ou “ratione legis”, combinado com o “ratione loci” (fato praticado em lugar sujeito à administração militar), “ratione personae” (o agente é militar), “ratione temporis” (determinada época) e “ratione materiae” (ato e sujeito militares) estabelecidos nos:

- artigo 9º e artigos 136 a 354 do CPM – crimes militares em tempo de paz; e

- artigo 10 do CPM – crimes militares em tempo de guerra, especialmente os artigos 355 a 410, incluindo os dos artigos 136 a 354 do CPM, e os crimes definidos em lei penal comum ou especial quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro militarmente ocupado.

À luz da doutrina e do artigo 5º, inciso LXI, da atual Carta Política, há classificações dos crimes militares, como bem ensinam os Defensores Públicos da União Marcelo Uzeda de Faria[v] e Ricardo Henrique Alves Giuliani[vi]. A de Clóvis Bevilacqua divide-os em três grupos: essencialmente militares (próprios); militares por compreensão normal da função militar (impróprios); e os acidentalmente militares (praticados por civis). Outra divide em: crimes propriamente militares (previstos no CPM e sujeito ativo apenas o militar) e impropriamente militares (previstos também no CPM e sujeito ativo o civil ou o militar).

O CPM cuida da exclusão do crime no seguinte artigo:

“Art. 42. Não há crime quando o agente pratica o fato:”

“I – Em estado de necessidade;”

“II – Em legítima defesa;”

“III – Em estrito cumprimento do dever legal;”

“IV – Em exercício regular de direito.”

“Parágrafo único. Não há igualmente crime quando o comandante de navio, aeronave ou praça de guerra, na iminência de perigo ou grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar serviços ou manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas, ou evitar o desânimo, o terror, a desordem, a rendição, a revolta ou o saque.”

Com a devida vênia, a antijuridicidade não se refere apenas ao artigo 42 supra, uma vez que, em comento ao “caput” do mencionado dispositivo legal, Dr. Jorge César de Assis[vii] ressalve que: “A própria lei penal, entretanto, prevê determinadas causas de exclusão da ilicitude; ou de exclusão do crime, também chamadas de causas de justificação.” Neste sentido, seguem os juristas Álvaro Mayrink da Costa[viii] e Marcelo Uzeda de Faria[ix], embora Ricardo Henrique Alves Giuliani[x] limite as justificantes às estabelecidas no mencionado artigo 42.

O Código Penal Militar tipifica a seguinte infração:

“Publicação ou crítica indevida”

“Art. 166. Publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar públicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Govêrno:”

“Pena - detenção, de dois meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.”

Em comento e citando acórdão de 1º de outubro de 1892, vêm as linhas precisas de José da Silva Loureiro Neto[xi]:

“Publicar significa tornar público, notório, divulgar. No caso, o agente, só o militar, torna público sem autorização de seus superiores ato ou documento oficial, o que significa exclusivo e de interesse das Forças Armadas.”

“A segunda parte do dispositivo refere-se a crítica praticada pelo militar.”

“Criticar significa censurar; dizer mal de. No caso, o militar censura publicamente, ou seja, de modo a ser recebido por indeterminado número de pessoas, ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo.”

Citando acórdãos do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais e do Superior Tribunal Militar, o Promotor de Justiça Militar da União, Dr. Jorge César de Assis ensina[xii]:

“Para a primeira conduta – publicar, sem licença – há que considerar- se os reflexos danosos que poderão advir de uma publicação não autorizada de ato ou documento oficial, relativo às Forças Armadas. É que, estando previsto no capítulo da insubordinação, as ações tipificadas no art. 166 são aquelas que afrontam a autoridade e a disciplina militares.”

“A segunda conduta, criticar, revela um juízo de valor, uma meditação sobre o objeto da crítica. Sendo ato de superior, tem sentido amplo, abrangendo inclusive os dizem respeito à vida privada. Consoante o Estatuto dos Militares, Lei 6.680/80, a hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico (art. 14).”

“E mais; a disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados (§ 3º).”

(...)

“igualmente possível, quando praticado por militar, é a crítica a qualquer resolução do governo.”

(...)

“Como a chefia dos Poderes Executivo Federal e Estadual, compete ao Presidente da República e aos governadores, qualquer crítica, da parte de militares (federais ou estaduais) contra atos do governo, acaba por ferir a disciplina militar, objeto da tutela penal.”

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O Superior Tribunal Militar (STM), na Apelação (FO) 0000023-40.2007.7.12.0012, em julgamento de 1º de julho de 2010, teve como relator e revisor, respectivamente, os Ministros Marcos Augusto Leal de Azevedo e José Coêlho Ferreira. Foi decidida a aplicação deste tipo penal, em relação à greve dos controladores aéreos em 2005. Destaca-se da ementa desse importante julgado:

EMENTA. APELAÇÃO. INCITAMENTO E PUBLICAÇÃO INDEVIDA. CONTROLADORES DE VOO. CINDACTA IV. CAOS AÉREO.

Apelos concomitantes interpostos pelo Ministério Público Militar e Defensoria Pública da União. Aquele buscando a condenação dos acusados, nos termos da denúncia, excetuando-se um, para quem buscava absolvição. Esta, visando a absolvição de todos os envolvidos.

Inequívoca quebra dos princípios da hierarquia e disciplina decorrentes da conduta dos acusados que, buscando a “desmilitarização” do sistema de controle de tráfego aéreo, além de articularem movimento de aquartelamento voluntário e de greve de fome, em conjunto com outros controladores de voo de outros CINDACTAs, o que culminou em reunião na qual o comandante da unidade foi desrespeitado, foram à imprensa escrita e permitiram publicar entrevista na qual discorriam a respeito da matéria atinente à disciplina militar.

A conduta dos controladores não está protegida pela garantia da liberdade de expressão, já que tal princípio constitucional não é absoluto, como qualquer princípio, e fica mitigado quando estão em jogo, como no caso, a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas, vetores da defesa da soberania da Pátria, fundamento do Estado Democrático de Direito.

(...)

Apelos da defesa e da acusação parcialmente procedentes.

O crime de publicação ou crítica indevida (art. 166, CPM) é crime militar próprio ou propriamente militar. Neste sentido, Dr. Jorge César de Assis[xiii] e Célio Lobão[xiv] (crime especial). Foi objeto de julgados do STJ e da Justiça Militar.

O Supremo Tribunal Federal, (STF) pronunciou-se acerca deste delito em duas oportunidades: no Inquérito 2.295-1-MG e no Habeas Corpus 106.808-RN. Sob a relatoria do Ministro Menezes Direito, em sessão de 23 de outubro de 2008, o inquérito foi arquivado, conforme pedido ministerial, em razão da imunidade material do então deputado federal Júlio César Gomes dos Santos (artigo 53, “caput”, da atual Carta Magna). Em julgamento de 9 de abril de 2013, o Habeas Corpus teve como relator o Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Destaca-se da ementa desse importante julgado:

Habeas corpus. 2. Crime militar. Paciente denunciado porque teria praticado o delito de incitamento (art. 155 do CPM) e de publicação ou crítica indevida (art. 166 do CPM). 3. Indeferido o pedido de extensão da ordem concedida pelo STF ao corréu no HC 95348, em razão de as situações fáticas não se confundirem. 4. Em que pese à extensa peça acusatória, com vários denunciados, no que diz respeito ao paciente, houve individualização da conduta acoimada criminosa. 4. As condutas narradas na denúncia não se subsumem ao tipo penal do art. 155 do COM porque em nenhum momento houve incitação ao descumprimento de ordem de superior hierárquico. 5. As condutas e episódios descritos na inicial acusatória também não se subsumem ao art. 166 do CPM, que tipifica o delito de publicação ou crítica indevida. 6. O direito à plena liberdade de associação (art. 5º, XVII, da CF) está intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expressão. 7. Uma associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedades terá sua atuação completamente esvaziada. 8. O juízo de tipicidade não se esgota na análise de adequação ao tipo penal, pois exige a averiguação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente. A Constituição Federal é peça fundamental à análise da adequação típica. 8. Ordem concedida. (destaquei)

Integrando o acórdão do remédio heroico na Suprema Corte Brasileira, o voto do relator Ministro Gilmar Mendes foi seguido por unanimidade pelos demais membros da Segunda Turma. Deste se pinça:

Neste ponto, resta analisar se as condutas descritas na inicial acusatória se amoldam ao delito descrito no art. 166 do Código Penal Militar, que criminaliza a conduta de “publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo.”

Com efeito, não há no caso concreto uma crítica a um ato específico de um militar “x” ou “y”, tampouco a uma penalidade aplicada a um soldado “w” ou “z”. No conteúdo dos protestos descritos na denúncia do Ministério Público Militar, não se questiona uma ordem específica. Há somente queixas feitas, de forma genérica, por parte da associação APEB/RN e relativas a arbitrariedades supostamente praticadas no âmbito do Exército.

Conforme a acusação feita contra o paciente, a página eletrônica da APEB/RN na Internet usa as expressões “rompantes e desmandos autoritários”, denominados no jargão militar de “r-quero”, questionando, inclusive, a violação de direitos constitucionais. Contudo, de tal publicação não se identifica afronta à disciplina militar.

Não se ignora que, nos termos do art. 142 da Constituição Federal, as Forças Armadas são organizadas com base na hierarquia e na disciplina. Entretanto, disciplina e desmandos não se confundem. Quem critica o autoritarismo não está a criticar a disciplina.

Frise-se, ainda, que a liberdade de associação presta-se a satisfazer necessidades várias dos indivíduos, aparecendo, ao constitucionalismo atual, como básica para o estado democrático de direito.

Os indivíduos se associam para serem ouvidos, concretizando o ideário da democracia participativa. Por essa razão, o direito de associação está intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da garantia da liberdade de expressão.

Uma associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedade terá sua atuação completamente esvaziada; e toda dissolução involuntária de associação depende de decisão judicial transitada em julgado (art. XIX, do art. 5º da CF).

Nesse contexto, trago à baila os ensinamentos de Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, Editora Revista dos Tribunais, 1997, pág. 461), no sentido de que “o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que á a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, em sim conglobada na ordem normativa.” Em suma, o tipo não pode proibir o que o direito ordena nem o que ele fomenta.

Portanto, as condutas e episódios descritos na denúncia não se subsumem ao artigo 166 do Código Penal Militar que tipifica o delito de “publicação ou crítica indevida.”

Tratam-se de decisões esclarecedoras que tratam da hierarquia e da disciplina em face da liberdade de expressão – a primeira versando sobre a imunidade de parlamentar por suas opiniões, palavras e votos; a segunda, sobre a tipicidade conglobante, o direito de associação e a distinção entre disciplina e desmando (autoritarismo).


3. Ressalva da Lei Federal n. 7.524, de 1986

Originária do projeto de lei n. 267, de 13 de outubro de 1983 (n. 6.625, de 1985 na Câmara dos Deputados) do então senador Itamar Franco, a lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986, assegura:

Art 1º Respeitados os limites estabelecidos na lei civil, é facultado ao militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público.

Parágrafo único. A faculdade assegurada neste artigo não se aplica aos assuntos de natureza militar de caráter sigiloso e independe de filiação político-partidária.

Art 2º O disposto nesta lei aplica-se ao militar agregado a que se refere a alínea b do § 1º do art. 150 da Constituição Federal.

Art 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art 4º Revogam-se as disposições em contrário.

O texto inicial era o seguinte:

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Aos militares postos na reserva ou reformados não se aplicam os Regulamentos disciplinares das Forças Armadas.

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.

Como justificativa, o então senador (antes de vir a tornar Vice-Presidente e Presidente da República) aduzia:

Com o presente projeto, objetivamos eliminar prática existente em nossas Forças Armadas, que vem causando distorções e, até, incentivando abusos, no respeitante à execução de certas normas disciplinares. De fato, quando o servidor, seja ele civil ou militar, passa para o regime de inatividade, embora alguns laços subjetivos de vinculação com o Estado se mantenham inalterados, as prerrogativas da cidadania, não podem sofrer restrições, sob pena de converter-se o aposentado ou reformado em elemento marginalizado na conjuntura da participação social. Neste ponto, o militar, talvez por cediço costume já sem razão nos dias atuais, mantém-se vinculado a sistema disciplinar que invade e violenta as suas prerrogativas de cidadania, sobretudo os que incidem no campo da manifestação política. É comum vermos, ainda hoje, a aplicação de sanções disciplinares a preeminentes figuras de militares, já afastados do serviço ativo, pelo simples fato de, como cidadãos brasileiros, manifestarem-se sobre problemas políticos, econômicos e sociais, encaradas essas participações como críticas ao poder dominante.

Em verdade, essa ultrapassada praxe disciplinar só serve para enfatizar ainda mais como conotação política, nem sempre existente, intervenções ditadas unicamente pela inclinação patriótica muito comum nos valorosos integrantes das nossas Forças Armadas. Não vemos, pois, nenhuma razão para que se continue a aplicar sanções disciplinares a militares postos na reserva ou reformados, ainda porque, além de condenável qualquer cerceamento da livre e responsável manifestação, pouquíssimo efeito exercem esses pronunciamentos especificamente nos meios militares, apenas pelo simples fato de provirem de ex-integrantes das Forças Armadas. Na atualidade, o militar acompanha, como qualquer cidadão prestante, o desenvolvimento da conjuntura nacional, seja através do acesso que tem às fontes de pesquisas nos próprios setores militares, senão, também, por intermédio dos meios de comunicação em geral, formando as suas convicções da síntese desses acontecimentos. Não seria, portanto, a simples opinião pessoal de um militar reformado - ainda que desfrutasse do maior prestígio no âmbito das Forças Armadas - que viria alterar arraigadas convicções, atingindo a unidade dos setores militares e ameaçando a segurança nacional.

Assim sendo, sugerimos, com o presente projeto, a revogação das normas que prescrevem a aplicação disciplinar aos militares postos na reserva ou reformados.

Iniciada no Senado Federal, esse projeto de lei encontrou muita resistência nesta Casa, mas, depois, na Casa Revisora e na Presidência da República, prosperou.

A proposição recebeu pareceres desfavoráveis das Comissões de Constituição e Justiça, por inconveniência, e de Segurança Nacional com fundamento no Regimento Disciplinar do Exército, e foi arquivada. Em questão de ordem formulada ao Presidente do Senado José Fragelli em plenário, Itamar Franco citou a situação específica do Senador César Cals de Oliveira Filho (coronel reformado do Exército), com recurso e apoio dos senadores Gastão Müller, Humberto Lucena e Murilo Badaró como líderes do PMDB e PDS. Houve recurso do relator da Comissão de Segurança Nacional (senador Milton Cabral). Houve duas votações dessa questão de ordem e desses recursos: a primeira por 16 a 13 e 4 abstenções; a segunda, 19 a 15 e 3 abstenções. O projeto foi desarquivado pela Mesa Diretora. Posteriormente, no Plenário do Senado foi aprovado sob forte oposição de Milton Cabral. Em turno suplementar, Itamar Franco apresentou substitutivo (ou emenda 1), acrescendo às justificativas “a igualdade verdadeira consiste em tratar desigualmente os desiguais”, com pareceres favoráveis das Comissões de Constituição e Justiça (Helvídio Nunes) e de Segurança Nacional (Virgílio Távora), restando prejudicada a proposição inicial.

Enviado à Câmara dos Deputados, o projeto recebeu pareceres favoráveis das Comissões de Constituição e Justiça e de Segurança Nacional dos relatores deputados Nilson Gibson e João Batista Fagundes, sendo remetido ao Poder Executivo.

Por meio da mensagem n. 14, de 1986, o projeto de lei foi restituído ao Congresso Nacional com a sanção. A lei n. 7.524, de 1986, foi subscrita pelo então Presidente José Sarney e pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, nesta ordem, Henrique Saboia, Leônidas Pires Gonçalves e Octávio Júlio Moreira Lima.

Na evolução da redemocratização do País (1979-1988), esta norma assegura a liberdade de expressão e de manifestação de pensamento. Não buscava apenas resolver um caso concreto, mas executar a isonomia de militares inativos ou agregados com civis.

A lei n. 7.524, de 17 de julho de 1986, aplica-se aos militares inativos e aos agregados, garantindo-lhes:

- a liberdade de opinião para assunto político; e

- externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria de interesse público;

Por isso, são perfeitamente lícitos (não configurando transgressão disciplinar ou crime militar) os textos e artigos assinados por praças ou oficiais inativos ou agregados, em publicações de grande circulação, cuidando de temas como a valorização das Forças Armadas e a importância da Justiça Militar da União e das Justiças Militares dos Estados.

A exceção da exceção está nos assuntos militares de caráter sigiloso. Por exemplo, detalhes militares e estratégicos (número de efetivos, deslocamentos, desenvolvimento do submarino nuclear, avião KC-390, Sisfron, entre outros) e a atuação do Brasil na Guerra das Malvinas (1982) não podem ser de conhecimento público, por envolverem risco à soberania do País.

Importante destacar que o exercício da liberdade de opinião e de externar pensamento e conceito deve ser realizado com responsabilidade e bom senso. Não pode configurar ilícitos, como calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, entre outros. Aqui não devem ter lugar a baderna, o vandalismo, o terrorismo e o golpe de Estado.

A lei federal n. 7.524, de 1986, não possui questionamento no Supremo Tribunal Federal. No Superior Tribunal de Justiça, no recurso em habeas corpus n. 1.834-0/DF, em julgamento pela 6ª Turma em sessão de 5 de maio de 1992, sob a relatoria do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, foi negado e provimento ao apelo, baseado nessa lei de 1986, mas foi admitido habeas corpus para controle de legalidade de transgressão disciplinar e seus pressupostos. Não se ventilou diretamente no Superior Tribunal Militar.

Sobre o autor
Luiz Negrão

Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito (EPD).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEGRÃO, Luiz. Liberdade de expressão e crime militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27883. Acesso em: 5 nov. 2024.

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