4. A Polêmica da Comissão da Verdade
Questão tormentosa se coloca em relação à Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão vinculado à Casa Civil da Presidência da República, instituída pela lei federal n. 12.528, de 18 de novembro de 2011, e regulamentada pelo decreto n. 7.919, de 14 de fevereiro de 2013. No artigo 4º da Lei da CNV, entre as prerrogativas, está a de “convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados” (inciso III). E a Lei da CNV, no § 3º deste artigo 4º, é categórica: “É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade”.
Quanto ao entrevistado ou testemunha, algumas afirmações podem ser feitas.
O depoente não pode ser tratado pela CNV já na condição de réu ou acusado de fato ilícito (senão seria prejulgamento e, conforme o § 4º do artigo 4º da Lei da CNV, seria proibido porque as atividades da CNV não são persecutórias nem jurisdicionais).
O entrevistado pode manter-se calado, no exercício da garantia de não fazer prova contra si mesmo (“Nemo tenetur non detegere”), pois nessa situação há comando expresso do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988. Existe uma situação parecida e relevante – o silêncio do interrogado na Justiça Militar conforme o artigo 305 do Código de Processo Penal Militar (CPPM), instituído pelo decreto-lei federal n. 1.002, de 21 de outubro de 1969, e alterações posteriores:
Observações ao acusado
Art. 305. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao acusado que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.
Em texto de excelente lavra, a Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha e Cynthia C. Cortez[xv], concluem:
Concernente ao art. 305 do CPPM, antagônico à Lex de 1988, de indiscutível relevância para o mérito da discussão adentrar-se no fenômeno da recepção das normas infraconstitucionais. Ora, sendo a lei anterior material e formalmente compatível com a novel Carta, será ela recepcionada pela Nova Ordem Jurídica. Porém, verificando-se a desconformidade hierárquica do dispositivo pretérito, configura-se o fenômeno da revogação, acorde o brocardo ‘lex posterior derogat priori’...
(...)
Exige-se, então, um liame de atualidade entre a edição da lei e a vigência da Carta da República para deflagrar a fiscalização da verticalidade fundamentadora.
Neste diapasão, considerando a incompatibilidade material do art. 305 do Código de Processo Penal Militar com os ditames constitucionais em vigor, decretar sua revogação é medida que se impõe ao Juízo Militar na apreciação do processo penal, vez o silêncio do acusado não poder, em nenhuma hipótese, ser-lhe prejudicial.
Por não descumprir o dever legal do § 3º do artigo 4º supra, o depoente poderia responder as perguntas a ele formuladas, não mencionando assuntos militares de caráter sigiloso (fundamentando-se na lei n. 7.524, de 1986). Não se justifica calar a verdade (ou mentir), a respeito de informações, dados e documentos requisitados pela CNV, em qualquer grau de sigilo.
5. Conclusão
Assegurada pela Constituição Federal de 1988 (artigos 5º e 220), a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento e opinião não pode ser objeto de censura. Contudo, não é princípio absoluto. A hierarquia e disciplina, basilares nas Organizações Militares, também radica no texto constitucional (artigos 42 e 142). Um dos instrumentos para garantir esses preceitos é o crime de publicação ou crítica indevida (art. 166, CPM), que sofreu temperamentos nos acórdãos do Supremo Tribunal Federal no Inquérito n. 2.295-1-MG (imunidade material de parlamentar) e no Habeas Corpus 106.808-RN (a crítica deve questionar ordem específica).
A lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986, constitui hipótese legal de exclusão da ilicitude deste crime e de transgressão disciplinar. Aplica-se somente a militares inativos ou agregados. A exceção é a de que não podem tratar de assuntos militares de caráter sigiloso. É ressalva ao artigo 14, § 3º, do Estatuto dos Militares, uma vez que se pondera a liberdade de expressão com o respeito à hierarquia e à disciplina, sobretudo, com responsabilidade, bom senso e respeito às instituições.
Quanto à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o depoimento de militar como testemunha ou entrevistado, estabelecido pelo artigo 4º da lei n. 12.528, de 2011, é dever legal, não se justificando a mentira, mas o silêncio para não produzir prova contra si mesmo.
Bibliografia
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Notas
[i] ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar, comentários, doutrina, jurisprudência dos tribunais militares e tribunais superiores, 7.ed., Curitiba, Juruá, 2010, p. 74-75.
[ii] ASSIS, Jorge César de. Obra citada, p. 75.
[iii] ASSIS, Jorge César de. Obra citada, p. 44.
[iv] FARIA, Marcelo Uzeda de. Direito Penal Militar. Conforme Lei nº 12.432, de 29 de junho de 2011, 1.ed., Salvador, JusPodivm, 2012, p. 61.
[v] FARIA, Marcelo Uzeda de. Obra citada, p. 58-61.
[vi] GIULIANI, Ricardo Henrique Alves. Direito Penal Militar, 3.ed., Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2011, p. 34-37.
[vii] ASSIS, Jorge César de. Obra citada, p. 120.
[viii] COSTA, Álvaro Mayrink da. Crime Militar, 2.ed. reescr. e ampl., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 221-223.
[ix] FARIA, Marcelo Uzeda de. Obra citada, p. 130.
[x] GIULIANI, Ricardo Henrique Alves. Obra citada, p. 213-214.
[xi] ASSIS, Jorge César de. Obra citada, p. 348-350.
[xii] LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar, 4.ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 132.
[xiii] ASSIS, Jorge César de. Obra citada, p. 45.
[xiv] LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. Direito Penal Especial. Direito Penal Comum. Direito Processo Especial. In Direito Militar: artigos inéditos. Getúlio Corrêa, organizador. Florianópolis: Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais, 2002, p. 44.
[xv] ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. CORTEZ, Cynthia Coelho. O Art. 305 do Código de Processo Penal Militar e o Direito ao Silêncio. In Direito Militar: doutrina e aplicações. Dircêo Torrecillas Ramos, Ilton Garcia da Costa, Ronaldo João Roth, coordenadores. 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 938-939.