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A eficácia das cotas para negros no campus XIX da Universidade do Estado da Bahia a partir de uma análise do bem-estar dos estudantes

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3 O SISTEMA DE INGRESSO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E A CONSTITUCIONALIDADE DO SEU MODELO DE COTAS

Aqui vale explorar a grande relevância que tem o sistema de cotas implantado em uma das maiores universidades brasileiras, a Universidade de Brasília – UnB. Esse sistema é alvo de diversas críticas, porém as discussões já foram encerradas no que tange ao ponto de vista constitucional[4], uma vez que o Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a constitucionalidade das cotas da UnB.

O sistema de cotas da UnB caracteriza-se por ser o primeiro do Brasil a aprovar cotas unicamente para Negros e Indígenas e foi instaurado a partir do segundo semestre de 2004. Neste ano a UnB adotou o Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, determinando que, em um período de 10 anos, seriam destinadas 20% das vagas dos vestibulares para candidatos negros. (FILICE, 2015, p.04).

Para ingressar pelo sistema de cotas da UnB, o candidato deveria preencher uma ficha para ser entregue nos postos de homologação da Universidade, oportunidade em que seria fotografado e seu processo encaminhado para uma banca examinadora. Em 2008 esse sistema sofreu uma modificação: os então candidatos deveriam se autodeclarar negros no ato da inscrição. Após a aplicação das provas passariam por uma entrevista, ocasião em que a autodeclaração deveria ser ratificada com a opção em concorrer às vagas do Sistema de Cotas para Negros. Caso fosse verificado que o candidato não havia preenchido os requisitos à modalidade tipificada no edital, ele passaria a concorrer às vagas destinadas ao Sistema Universal de ingresso.

A política de cotas na UnB é complexa e sofreu algumas alterações com o advento da Lei nº 12.077/2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais. Além de manter o Sistema Universal, ou seja, o sistema de ampla concorrência, a UnB utiliza outros dois sistemas de ingresso, o Sistema de Cotas para Negros e Indígenas, que também já vinha sendo adotado, e o Sistema de Cotas para Escola Pública.

Em relação ao Sistema de Cotas para Negros, de acordo com o item 5.1 do Edital nº 1 do Vestibular 2016 da UnB “para concorrer às vagas reservadas por meio do Sistema de Cotas para Negros, o candidato deverá possuir traços fenotípicos que o caracterizem como negro, de cor preta ou parda” e no momento do registro da matrícula assinará termo de autodeclaração[5]. Por outro lado, no Sistema de Cotas para Escola Pública, o aluno obrigatoriamente deverá advir de escola pública, além de poder preencher outros critérios, concomitantes ou não. Tudo isso pode ser observado conforme disposto no quadro abaixo:

QUADRO 1: SISTEMA DE INGRESSO DA UnB.

Forma de Ingresso

REQUISITO

Sistema Universal

Ampla concorrência

Sistema de Cotas para Negros

Autodeclaração e traços fenotípicos

Sistema de Cotas para Escola Pública

Renda familiar ≤ 1,5 salário mínimo + autodeclaração.

Renda familiar ≤ 1,5 salário mínimo

Renda familiar > 1,5 salário mínimo + autodeclaração;

Renda familiar > 1,5 salário mínimo.

FONTE: Edital nº 01 do vestibular de 2016 da UnB.

É importante ressaltar que o sistema de cotas adotado pela UnB já foi objeto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF perante o STF. O Partido Democratas - DEM foi responsável por impetrar a ADPF nº 186, arguindo que os atos administrativos do Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília - Cepe/UNB iriam de encontro a vários preceitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal de 1988, como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), repúdio ao racismo (art. 4º VIII), igualdade (art. 5º caput), direito universal de acesso à educação (art. 205), legalidade, razoabilidade, publicidade, moralidade, impessoalidade e proporcionalidade (art. 37, caput)[6].

Vale esclarecer que, em relação ao mérito, não foi questionada a inconstitucionalidade das cotas como ação afirmativa visando a inclusão social dos descriminalizados, nem a existência do racismo na sociedade brasileira. Em apertada síntese, o que se quis discutir foi a constitucionalidade da adoção de uma política afirmativa baseada na raça, já que o preconceito no Brasil não era racial, e sim social. Ademais, foi arguido que havia um tribunal racial na UnB, em razão da entrevista realizada para se confirmar a validade da autodeclaração, uma vez que terceiros determinavam quem seria branco e quem seria negro, configurando uma arbitrariedade, além de ser um critério altamente subjetivo.

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Também foi questionada a classificação “biracial”, pois em um país marcado pela diversidade racial seria esdrúxulo dividir a população em apenas dois grupos étnicos, negros ou pardos e brancos. A UnB, por sua vez, alegou que o combate à discriminação não é suficiente. É preciso, junto a isso, a realização de políticas que promovam a igualdade. Além disso, aduziu que o sistema de cotas implantado tem o fito de democratizar o ensino.

Por unanimidade, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da ADPF, julgando, portanto, ser constitucional o sistema de cotas adotado pela UnB. Os ministros seguiram o entendimento do relator do processo, Ministro Ricardo Lewandowski, e apesar de os argumentos variarem, todos tinham a mesma essência, qual seja, a propagação da igualdade material. Em seu voto o relator se baseou em quatro premissas: 1ª) No Brasil a pobreza tem cor. Os negros e pardos encontram-se em posição inferior aos brancos em todos os indicadores sociais como serviços de saúde, taxa de mortalidade infantil, renda, nível de analfabetismo etc.; 2ª) a disparidade socioeconômica entre brancos e negros não se deu ao acaso, é fruto da segregação racial proveniente da escravidão; 3ª) a abolição da escravatura, embora tenha colocado fim formalmente à submissão do negro, não houve qualquer política visando a inclusão social das etnias afrodescendentes, dando início ao preconceito mascarado presente nas relações sociais; 4ª) políticas universalistas que visam a melhoria das condições econômicas e sociais, não considerando as questões raciais, não conseguem diminuir a desigualdade socioeconômica entre brancos e negros no Brasil. (DUARTE, 2014, p.13).

Outro argumento utilizado para rechaçar a ADPF nº 186 foi a ideia de “raça” vista sob a perspectiva jurídica, que não é biologicamente determinada pelo genoma humano (perspectiva antropológica), e sim por fatores históricos, sociais, políticos e culturais. O preconceito na sociedade não tem origem no genoma humano, mas sim no fenotípico de determinados indivíduos e grupos sociais. Sendo assim, no que diz respeito à entrevista realizada pela faculdade, não há qualquer inconstitucionalidade já que se visa apenas identificar os indivíduos que pelos seus traços fenotípicos sofrem discriminação. Ademais, o único desígnio do sistema adotado pela Universidade é o de evitar fraudes para garantir que as vagas destinadas aos negros sejam, de fato, ocupadas por eles.

De acordo com o explicitado, o sistema da UnB caracteriza-se por possuir objetivos plurais e democráticos, uma vez que consegue enquadrar diversos grupos de indivíduos em sua respectiva modalidade de cotas, aquela mais condizente com a reparação que cada indivíduo necessita. Essa pesquisa, portanto, traz o modelo da UnB justamente porque é o modelo que mais consegue ser satisfatório aos diversos argumentos utilizados quando o assunto é ações afirmativas, na modalidade cotas.


4 O SISTEMA DE COTAS ADOTADO PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Visando pôr fim a todo esse cenário de desigualdade racial e obter a democratização do ensino, a Universidade do Estado da Bahia e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ foram pioneiras na implantação do sistema de cotas. A UERJ instituiu cotas nos cursos de graduação e a UNEB nos de graduação e pós-graduação, ambas em 2002. No caso particular da UNEB, com seu sistema de multicampia, presente em vinte e quatro municípios e vinte e nove departamentos, verifica-se que esse sistema já contribuía para a democratização do ensino que levou educação à população mais carente dos interiores da Bahia que não possuíam condições financeiras de se deslocar para os grandes centros urbanos.

Diante desse cenário fértil de inclusão social preconizado pela UNEB, houve a aprovação, por unanimidade, da Câmara de Vereadores de Salvador para se encaminhar ao governo do Estado proposta que visava reservar 20% das vagas dos vestibulares de todas as Universidades Estaduais da Bahia aos afrodescendentes. A proposta final foi de uma resolução com reseva de 40% das vagas da graduação e pós-graduação para candidatos negros que comprovassem ser provenientes de escola pública. Em julho de 2002, a Resolução nº 196/2002 foi aprovada e começou a produzir seus efeitos no vestibular de 2003. (MATTOS, 2003, p. 136-139).

O art. 1º da referida Resolução da UNEB prevê a reserva de uma quota mínima de 40% nos cursos de graduação e pós-graduação para candidatos afrodescendentes (pretos ou pardos), que cursaram todo ensino médio em escola pública. A referida medida possui dois fundamentos precípuos: a reparação histórica, voltada a oportunizar ao negro, outrora escravizado e vítima de um desencadeado processo de desigualdade, o ingresso no ensino superior, bem como a reparação social, impondo a obrigatoriedade de este aluno advir de escola pública, demonstrando também uma atenção especial àqueles que sofrem pela insuficiência de recursos.

De maneira que apenas oportunizar o ingresso desses vestibulandos no ensino superior se mostraria insuficente, se isolado, já preceitua o art. 4º da Resolução o dever que a Universidade possui em desenvolver políticas públicas de assistência e permanência estudantil para os discentes que ingressarem através desse sistema de cotas. Em 2007, um fato que evidenciou o sucesso da implantação do sistema de cotas foi a formação da sua primeira turma de estudantes que ingressaram por intermédio desse programa, ratificando que a referida política afirmativa contribui para o avanço da promoção da igualdade sócio-racial no âmbito acadêmico.

Cinco anos após a Resolução que implantou o sistema de cotas na Universidade, foi criada a Resolução nº 468/2007 que, além do critério racial, elenca requisitos que deverão ser adotados concomitantemente para que o candidato possa ingressar pelo sistema de cotas. A partir de então, além de declararem-se negros ou indígenas, os candidatos devem ter cursado todo o ensino médio em escola pública, bem como obter renda familiar mensal inferior ou igual a 10 (dez) salários mínimos. Assim, preleciona o art. 4º da referida Resolução:

Art. 4º. Estão habilitados a concorrer às vagas reservadas candidatos negros e candidatos indígenas que preencham os seguintes requisitos:

a) Tenham cursado todo o ensino médio em escola pública;

b) Tenha renda familiar mensal inferior ou igual a 10 (dez) salários mínimos;e

c) Sejam e declarem-se negro ou indígena, conforme quadro de auto-classificação étnico-racial constante da ficha de inscrição do respectivo processo seletivo.

Nota-se, pela redação do art. 4º, que os três critérios devem ser cumulados para que o candidato possa ingressar na Universidade através do sistema de cotas, diferentemente do que ocorre com a UnB, uma vez que os critérios são independentes, como observado previamente.

Internamente a UNEB está modificando suas políticas de ingresso, perfilhando o entendimento de que ainda que o candidato não se autodeclare negro ou indígena poderá adentrar por meio deste sistema, desde que demonstrados os outros dois requisitos, quais sejam, advir de escola pública e adequar-se ao critério econômico[7]. A Universidade adotou, além do Sistema Universal de ingresso, o Sistema Étnico, Social e Econômico. Contudo, conforme a cartilha da Conferência Universitária de Ações Afirmativas da UNEB: A construção de um programa permanente, realizada no ano de 2011:

É urgente não somente discutir o sucesso de um sistema pioneiro implantado por uma universidade pública do estado, e um dos pioneiros no Brasil, mas também discutir as fragilidades do sistema que tem viabilizado o ingresso de estudantes não-negros e não-indígenas, aumentando significativamente a concorrência de cotistas nos cursos de alto prestígio social oferecidos pela instituição. Essa situação põe em risco a legitimidade enquanto política pública de inclusão e afirmação de parte significativa dessas populações historicamente excluídas de participarem da educação de nível superior. (p. 52)

Dado o exposto, cumpra-se salientar que somente a implantação desse sistema não é suficiente para garantir a efetividade das cotas na Universidade do Estado da Bahia. É necessário que, conjuntamente à implantação das cotas de maneira objetiva, a UNEB esteja desenvolvendo suporte para o acompanhamento do percurso acadêmico dos cotistas, a fim de concretizar os preceitos da igualdade material, conteúdo das ações afirmativas. Isso apenas ocorrerá com o surgimento de políticas de permanência e assistência estudantil comprometidas com as demandas mais elucidativas e urgentes que são peculiares a esse grupo de indivíduos.

Sobre as autoras
Isadora Oliveira Santos Ferreira

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), DCHT - Campus XIX.

Samara Santos Campelo

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), DCHT - Campus XIX.

Thaís Lima Andrade Menezes

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), DCHT - Campus XIX.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Raina Silva Carigé; FERREIRA, Isadora Oliveira Santos et al. A eficácia das cotas para negros no campus XIX da Universidade do Estado da Bahia a partir de uma análise do bem-estar dos estudantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5252, 17 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58893. Acesso em: 22 nov. 2024.

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