Antes de expor o tema central deste trabalho, é preciso deixar claro que se entende que qualquer imunidade, perante a prisão provisória, em flagrante ou não, tirante o caso de liberdade de expressão por palavras e votos dos parlamentares em geral (imunidade material), não se justifica de forma alguma.
A legislação - e mesmo a Constituição Federal - cria um arcabouço de privilégios ilegítimos, violando a igualdade sem um necessário lastro de razoabilidade. Há uma casta de pessoas que se acha protegida por um véu de intocabilidade, ainda que diante do cometimento flagrante de infrações penais. Isso é incorreto, desnecessário, injusto e contraproducente.
Dentre os vários beneficiados com essa imunidade, por exemplo, à prisão em flagrante, estão o Presidente da República (artigo 86, § 3º., CF), os Membros do Ministério Público e Magistrados em infrações penais afiançáveis (artigo 40, III, da Lei 8.625/93 – LONMP e artigo 33, II da LC n. 35/79 – LOMN), os Deputados Estaduais (artigo 27, § 1º., CF) e os membros do Congresso Nacional (Deputados Federais e Senadores – artigo 53, § 2º., CF), também estes últimos nos casos de infrações penais afiançáveis. 1 No caso de infrações inafiançáveis, mesmo quando presos, Membros do Ministério Público e Juízes, devem ter formalizada a prisão pela respectiva Procuradoria Geral ou Tribunal e não pela Polícia Judiciária. Também os ocupantes de cargos políticos, ainda que presos em casos de crimes inafiançáveis, somente terão tais restrições de liberdade mantidas e seguirá o procedimento com a anuência das respectivas casas legislativas.
Enquanto o STF parece tender a desconsiderar a imunidade dos Deputados Estaduais à prisão provisória, inobstante o claro texto constitucional artigo 27, §1º., CF, que os coloca em pé de igualdade com os Senadores e Deputados Federais (artigo 53, § 2º., CF), 2 eis que este subscritor descobre uma Lei Orgânica Municipal, da cidade de Timon, no Estado do Maranhão, no bojo da qual se confere aos Vereadores as mesmas imunidades que detêm os parlamentares Estaduais e Federais (artigo 36, §§ 1º. e 2º., da Constituição do Estado do Maranhão e artigo 39, §§ 1º. a 6º., da Lei Orgânica do Município de Timon – MA).
Na citada Lei Orgânica consta a imunidade material por “opiniões, palavras e votos”, o que não é de se criticar, pois que se trata de simples cumprimento de mandamento Constitucional previsto no artigo 29, VIII, CF, sem o qual realmente a atividade parlamentar, em qualquer nível, é inviável em termos de uma almejada democracia.
Tudo, porém, começa a degringolar quando o artigo 39, “caput” da legislação municipal, afirma que os Vereadores daquela localidade gozam das mesmas imunidades “conferidas aos Deputados Estaduais”. Em seguida (artigo 39, § 1º.), passa a determinar que os Vereadores não podem ser presos em flagrante, a não ser no caso de crimes inafiançáveis, e nem processados criminalmente sem licença prévia da Câmara Municipal. Não é só isso: em caso de eventual prisão em flagrante por crime inafiançável, estabelece que o auto respectivo não deve ser remetido ao Judiciário, mas sim, dentro de 24 horas, à Câmara Municipal, para que, “pelo voto aberto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação de culpa” (artigo 39, § 2º.).
Finalmente, estabelece que, em caso de autorização da Câmara Municipal, havendo processo criminal, este será de competência do “Juiz de Direito da Comarca” (artigo 39, § 3º.). Tem mais: essas imunidades dos Vereadores de Timon – MA subsistirão mesmo em caso de Estado de Sítio, somente podendo sofrer suspensão por meio de voto de dois terços dos componentes da Câmara Municipal (artigo 39, § 6º.).
Eis uma legislação que supera a discussão sobre privilégios, as questões jurídicas de qualquer espécie, para adentrar triunfalmente no âmbito da insanidade megalomaníaca.
Como é de trivial conhecimento, os Vereadores, excetuando-se a imunidade material por opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, não detêm qualquer privilégio previsto para as prisões provisórias, inclusive a em flagrante, seja no Código de Processo Penal, seja na Constituição Federal. Como afirma Castelo Branco, em obra especializada, “os vereadores não gozam de imunidades parlamentares” na Prisão em Flagrante (grifos no original). 3 No mesmo sentido, afirma Tourinho Filho que “quanto aos Vereadores, a Constituição de 1988 lhes estendeu as imunidades materiais. Apenas as materiais” (grifo nosso). 4
São cristalinos os ensinamentos de Gomes e Bianchini:
“Não contam os vereadores com imunidade formal ou processual, isto é, para serem processados não é preciso licença da Câmara de Vereadores: STF, HC 74.201-7-MG, 1.ª T., rel. Celso de Mello, j. 12.11.1996, v. U., DJU 13.01.1996, p. 50.164. (...). Não desfrutam, ademais, da imunidade prisional. Podem ser presos cautelarmente: STF, Pleno, HC 70.352-6-SP, rel. Celso de Mello, DJU03.12.1993, p. 26.357. e RT 707/394”. 5
Assim sendo, é mais do que visível que as disposições expostas da Lei Orgânica do Município de Timon – MA e outras que tais são totalmente ilegítimas e inconstitucionais. Na verdade, se tratam de dispositivos “legais” que nem sequer merecem consideração como existentes, tamanha a violação dos preceitos mais básicos do processo legislativo em sua competência.
Dessa maneira, os Vereadores de Timon – MA e de qualquer município do Brasil, podem e devem ser presos em flagrante em casos de crimes afiançáveis ou inafiançáveis, indistintamente, sendo o procedimento o comum a todos os cidadãos, sem qualquer imunidade.
Obviamente a prisão deverá ser comunicada ao Judiciário, e jamais à Câmara de Vereadores, a qual também não detém qualquer poder decisório sobre a eventual formação de culpa. A única comunicação à Câmara de Vereadores que pode, e também deve ser feita, é para fins de procedimento político - administrativo de sua atribuição no que se refere a questões de decoro parlamentar.
Apenas a título exemplificativo, as disposições da Lei Orgânica Municipal sob comento violam a competência privativa da união para legislar sobre “processo penal” (artigo 22, I, CF). Também afrontam a Constituição Federal, mediante a criação de uma imunidade inexistente e sequer aventada pela Lei Maior, a qual somente se refere aos parlamentares de nível Estadual e Federal (artigos 27, § 1º., CF e 53, § 2º., CF).
Não bastasse isso, configura-se em usurpação de funções do Ministério Público como privativo titular da ação penal pública (artigo 129, I, CF), bem como do Poder Judiciário no que tange à avaliação da legalidade da prisão em flagrante (artigo 5º., LXI e LXII, CF). Isso afora a evidente violação das prerrogativas dos Delegados de Polícia (artigo 304, CPP e Lei 12.830/13 c/c artigo 144, I e IV e §§ 1º e 4º., CF).
Sem olvidar ainda os dispositivos do Código de Processo Penal que dizem respeito à comunicação e competências dos juízes de direito nos casos de Prisão em Flagrante, v.g. artigos 306 e 310, CPP. Chega a ser risível o estabelecimento da competência do Juiz da Comarca para o julgamento do Vereador na legislação sob comento. Ora, essa competência decorre não daquela lei municipal, mas das normas constitucionais e ordinárias de processo penal.
Também totalmente inviável o reconhecimento de imunidade inquebrantável, mesmo diante do Estado de Sítio, aos vereadores, pois que isso somente é previsto para os Membros do Congresso Nacional, nos estritos termos do artigo 53, § 8º., CF.
Enfim, como bem destaca Zagrebelsky, a legislação em destaque é um daqueles “raros casos de leis puramente aparentes, em que se deve reconhecer a existência de uma obrigação de inaplicabilidade”. 6
Efetivamente, a existência de tantas imunidades previstas legalmente, ao menos obedecendo ao processo legislativo em sua competência constitucional, já causa incômodo e violação injustificável ao Princípio da Igualdade (artigo 5º., “caput”, CF), merecendo uma urgente revisão pelos meios adequados. Se isso já é motivo de insatisfação a todo aquele que tenha uma mais mínima noção do “justo”, imagine-se a inconveniência, a indesejabilidade de uma espúria lei municipal que cria mais um caso esdrúxulo ou bizarro de privilégio insustentável.
REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
GOMES, Luiz Flávio, B IANCHINI, Alice. Das Imunidades e Prerrogativas dos Parlamentares. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 27.01.2018.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
PARA cinco ministros do Supremo, Deputado Estadual não tem imunidade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/cinco-ministros-stf-deputado-estadual-nao-imunidade , acesso em 27.01.2018.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Trad. Marina Gascón. 11ª. ed. Madrid: Trotta, 2016.
Notas
1 MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 669. – 670.
2 PARA cinco ministros do Supremo, Deputado Estadual não tem imunidade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/cinco-ministros-stf-deputado-estadual-nao-imunidade , acesso em 27.01.2018. Vide ADINs 5823, 5824 e 5825. Embora se considere esses privilégios equivocados, não se compreende com base em que espécie de malabarismo jurídico o STF tende a negar a letra clara e evidente da CF. Os privilégios são injustos sim, mas sua negativa não pode se dar por uma canetada autoritária, midiática e de conveniência do STF, violando a tripartição de poderes. Há necessidade de reforma constitucional nesse aspecto, porque o que é estabelecido é, sem dúvida alguma, a imunidade dos Deputados Estaduais tal qual a dos Senadores e Deputados Federais. Essa igualdade, inclusive, no atual quadro, é razoável. O que deve ocorrer é a eliminação de todos os privilégios quanto à prisão em flagrante e não de um caso isolado por mera conveniência.
3 CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 185.
4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 670.
5 GOMES, Luiz Flávio, B IANCHINI, Alice. Das Imunidades e Prerrogativas dos Parlamentares. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 27.01.2018.
6 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Trad. Marina Gascón. 11ª. ed. Madrid: Trotta, 2016, p. 64. No original: “raros casos de leyes puramente aparentes, en los que debería reconocerse la existencia de uma obligatión de inaplicarlas”.