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A comunicação compulsória realizada pelos serviços de saúde em casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra mulher e o sigilo profissional médico

Em princípio, não se cogita que a prerrogativa de sigilo médico possa se sobrepor em situações de risco à vida de uma mulher vítima de violência doméstica ou familiar.

Tema em voga no cenário jurídico nacional, a violência doméstica e familiar contra mulher vem sendo debatida por profissionais das mais diversas áreas do conhecimento, no sentido de se chegar ao denominador comum extirpando ou minorando esse tipo de conduta criminosa.

A entrada em vigor da Lei 11.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, representou um divisor de águas no que toca o tema violência doméstica e familiar contra mulher, sendo reconhecida como uma das leis mais avançadas do mundo quanto ao tema.

Contudo, mesmo com o avanço representado com a vigência da Lei 11.340/06, o Brasil ainda possui índices alarmantes de violência doméstica e familiar contra mulher, sendo considerado no ranking mundial o 5º País com maior taxa de homicídio de mulheres, conforme o mapa da violência/2015, ficando atrás apenas de países como Colômbia, El salvador, Guatemala e Federação Russa[1].

Diante de tais situações, tem-se visto ultimamente uma série de modificações no campo legal, no sentido de alterar a Lei Maria da Penha, com o desiderato de criar cada vez mais mecanismos para o aumento de sua efetividade.

Nesse sentido é possível citar a entrada em vigor da Lei 13.641/18, que inseriu na Lei Maria da Penha o art. 24 – A, criando o novo tipo penal consistente no descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência, trazendo em seu preceito secundário uma pena de até dois anos de reclusão, nos seguintes termos:

“Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.”  

Seguindo esse viés, de buscar maior efetividade da legislação de combate a violência doméstica e familiar contra mulher, a Lei 13.871/19 – objeto do presente artigo –, alterou a Lei Maria da Penha, trazendo dentre as modificações, o dever de ressarcimento por parte do agressor de custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo SUS (Sistema Único de Saúde), bem como, gastos com dispositivos de segurança utilizados pelas vítimas para evitar a prática de novas violências domésticas.

No decorrer de 13 anos de vigência da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) verificaram-se inúmeras modificações e alterações em seu regramento, como os anteriormente citados, visando na maioria das vezes garantir maior proteção à vítima e eficácia da lei em comento.

Publicada em 10 de dezembro de 2019, com período de vacância de 90 dias, a Lei Federal nº 13.931/2019, trouxe inovações significativas no âmbito da violência doméstica e familiar, que vem causando calorosas discussões no campo prático.

A mencionada legislação, de iniciativa da deputada federal Renata Abreu, se originou do Projeto de Lei nº 2.538/19, tendo alterado a lei 10.778/03, inserindo como casos de notificação compulsória realizados por profissionais da saúde a comunicação de casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. Pedimos vênia para colacionarmos trecho da legislação referida:

“Art. 1º  Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.

§ 4º  Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.” (NR)”

Com a entrada em vigor da referida legislação no mês de março de 2020, controvérsias estão surgindo no que toca a sua aplicação prática, dentre elas, a possibilidade de profissionais da saúde, especificamente médicos, deixarem de realizar tal notificação a autoridade policial no prazo legal, sob o pretexto de fazerem jus ao sigilo profissional.

Indiscutivelmente, temos a tensão entre o direito constitucional da preservação da vida privada e íntima quanto ao sigilo da paciente e o sigilo médico e à comunicação compulsória, visando preservar o direito constitucional à vida e seus desdobramentos.

O Código de Ética da Medicina é expresso ao tratar do tema sigilo médico-paciente, considerando sua violação como falta administrativa grave aduzindo que:

“É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”.

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Extrai-se da análise do dispositivo legal, que em regra, o médico deve preservar o sigilo de fatos que tenha conhecimento em virtude do exercício da medicina, contudo, o próprio artigo traz em seu bojo situações excepcionais que devem haver a ruptura de tal sigilo, sendo uma das exceções, as hipóteses de notificações compulsórias previstas na Lei nº 10.778/03, dentre elas, casos de violência doméstica.

A própria legislação penal, tipifica como crime previsto no artigo 269 do CPB a omissão de médicos em casos de notificação compulsória de doença, com o seguinte teor:

“Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa”.

Aliás, não existem “direitos absolutos” em regra, e não pode a honrada e nobre classe médica amparar em um “pseudo” direito ao sigilo médico, a ponto de comprometer a vida de uma pessoa, vítima de violência doméstica ou familiar.

Em reforço a nossa tese, o presente tema foi objeto da Consulta nº 101.395/2014 feita ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, tendo aquele órgão emitido parecer no sentido que em casos de notificação compulsória, o profissional médico teria o dever legal de comunicação as autoridades competentes, não podendo alegar sigilo profissional para deixar de agir, vejamos:

“ [...] Desta forma, resta claro, que a notificação compulsória é caracterizada por dever legal, excludente expressa do sigilo prevista no artigo 73 do Código de Ética Médica. Importante ressaltar que, ainda que se excepcione o sigilo em razão da existência de dever legal, o médico, ao proceder à notificação da doença deve observar ao disposto no artigo 2º da Resolução CFM 1.605/00, que dispõe: Art. 2º - Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente”. (Disponível em<<http://www.portalmedico.org.br/pareceres/crmsp/pareceres/2014/101395_2014.pdf>>)


Das considerações finais

Por fim, concluímos que a Lei Federal nº 13.931/2019, que incluiu os casos de violência doméstica e familiar contra mulher no rol de notificações compulsórias, traz para o profissional médico um dever legal, sendo exceção ao próprio direito de sigilo profissional, previsto no art. 73 do Código de Ética da Medicina, não havendo possibilidade de alegação de sigilo nesses casos, para se omitir de comunicar as autoridades policiais no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos, como exige a Lei em testilha.

Entre a tensão do direito constitucional da preservação da vida privada e íntima quanto ao sigilo da paciente e o sigilo médico e à comunicação compulsória, visando preservar o direito constitucional à vida e seus desdobramentos, nos parece a última ter maior preponderância e densidade indiscutível.


Nota

[1] Fonte: Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (Flacso/OPAS-OMS/SPM, 2015), e conforme o anuário da Segurança Pública de 2019, a cada 2 minutos uma mulher é agredida no Brasil (Disponível em:<<http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/03/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf>>. Acesso em 08 de abril de 2020).

Sobre os autores
Cláudio Álvares Sant’ana

Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente Delegado Titular da Delegacia Especializada do Idoso, da Criança e da Mulher de Várzea Grande da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Coautor de obra jurídica e professor de cursos preparatórios para concursos públicos.

Joaquim Leitão Júnior

Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente lotado no Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO). Mentor da KDJ Mentoria para Concursos Públicos. Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Palestrante. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas e autor de artigos jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANT’ANA, Cláudio Álvares; LEITÃO JÚNIOR, Joaquim. A comunicação compulsória realizada pelos serviços de saúde em casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra mulher e o sigilo profissional médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6344, 13 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86708. Acesso em: 22 dez. 2024.

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