RESUMO:
O presente ensaio tem o objetivo de apresentar, em linhas gerais, a saúde como direito fundamental e o Direito Sanitário como sistema de normas voltado para a sua disciplina, em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro. O texto é um convite aos estudantes e operadores do Direito para se dedicarem ao palpitante estudo, que ainda é negligenciado nos centros de formação jurídica, a despeito de sua inquestionável relevância e atualidade.
PALAVRAS-CHAVE:
Direitos humanos – Direitos fundamentais – Direito à saúde – Direito Sanitário – Ética sanitária.
I. INTRODUÇÃO
A relevância da saúde para a realização plena do ser humano fez com que, ao longo dos tempos, referida temática ocupasse os mais variados foros, merecendo a atenção dos leigos e dos mais distintos experts. Trata-se de noção que pode ser obtida através do senso comum, mas que é objeto de estudo por variadas ciências. Referida relevância implicou a consagração da saúde como direito humano e direito fundamental, bem como o advento de vasta normatização pelos ordenamentos jurídicos.
Como dito, a noção de saúde não está restrita aos meios acadêmicos. Exatamente por isso, historicamente, percebe-se uma aproximação entre a idéia de saúde e a realização de exercícios físicos, bem como a manutenção de dieta. Nada obstante, ainda na antiguidade, Platão agregou ao elemento físico o campo da alma. Nessa época, já se asseverava a necessidade de manutenção de um equilíbrio interno e do homem com a organização social e a natureza. [01]
Com o advento do estado moderno, a despeito da consagração das declarações de direitos, o Estado liberal burguês limitou-se a garantir aqueles direitos relacionados à noção de liberdade, sendo assegurada, apenas, a igualdade formal das pessoas. Com efeito, porque já dotados das condições necessárias para atingir a igualdade material com a nobreza, os revolucionários burgueses preocuparam-se somente com a derrubada dos privilégios vigentes no antigo regime. Dessa forma, o Estado adotou postura absenteísta, sendo conhecido como Estado-polícia. Nesse contexto, a saúde era vista como questão de Estado, mas se buscava apenas a preservação da vida, objetivando o crescimento populacional e conseqüentemente a garantia das fronteiras e a formação de exércitos.
Nada obstante, a igualdade formal consagrada pelo Estado Liberal foi responsável pela opressão das camadas desfavorecidas, em razão da desigualdade material que persiste até os dias de hoje. Ocorreram, a seguir, as chamadas revoluções operárias e, já no princípio do século XX, percebe-se o advento do Estado social, cujos marcos usualmente apontados são a Constituição do México, de 1917, e de Weimar, em 1919. Nesse contexto, são incorporados pelo direito positivo os chamados direitos sociais, cuja realização depende intrinsecamente da promoção de políticas públicas pelo Estado, que deve deixar sua postura absenteísta de outrora e tornar-se promotor do bem-estar (welfare state).
No período pós-guerra, sob a influência das atrocidades cometidas pelos nazi-fascistas e a égide do constitucionalismo social, as discussões envolvendo a saúde ganham maior dimensão, podendo-se afirmar a consagração da saúde como direito humano. Na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, já se afirma que todos têm "direito a um padrão de vida que assegure saúde e bem-estar."
Necessário salientar que o conceito de saúde consagrado atualmente e que é utilizado para se verificar a observância do referido direito em muito remonta às noções já desenvolvidas na antiguidade. Segundo o preâmbulo da constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), "a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade". Percebe-se, portanto, a manutenção da idéia de equilíbrio interno e do homem com o ambiente.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, já ratificado pelo Brasil, por sua vez, reconheceu o "direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir" e estabeleceu, ademais, medidas a serem adotadas pelos Estados para assegurarem tal direito.
No âmbito nacional, no período republicano, percebe-se como uma das principais preocupações o controle de epidemias, buscando-se, essencialmente, assegurar a confiança dos produtos nacionais destinados às exportações. As ações de saúde, no princípio do século XX, são descoordenadas, limitando-se ao citado controle de epidemias e às atividades filantrópicas e religiosas. Até o advento da Constituição de 1988, prevalece a medicina curativa, centrada no hospital, sendo os serviços concentrados nos grandes centros. Nada obstante, deve-se reconhecer o êxito das medidas do sanitarismo campanista, que até hoje são realizadas (campanhas de vacinação).
O principal marco para a mudaça de direção nos rumos das políticas sanitárias no Brasil foi o movimento de reforma sanitária, que teceu sérias críticas ao modelo então vigente, que era hospitalocêntrico e reativo. Questionaram-se as políticas públicas quanto a seu custo/efetividade.
Referido movimento reformista foi o responsável pela regulamentação do direito à saúde como atualmente se encontra na Constituição. Buscou-se a descentralização das ações e serviços e firmou-se como princípio reitor a universalidade, consagrando-se, no art. 196 da CR/88, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, impondo-se a este, pois, o dever de promover as políticas públicas necessárias para que todos possam atingir o esperado estado de completo bem-estar físico, mental e social.
O exame do texto constitucional permite constatar que são princípios reitores do direito à saúde a universalidade, igualdade (entenda-se, igualdade material), regionalização, hierarquização, descentralização, integralidade e participação da comunidade (arts. 196 e 198). Verifica-se, ainda, cuidar da saúde é competência comum dos entes federados (art. 23, II).
A regulação dos preceitos constitucionais está centrada, especialmente, na lei 8080/90 (Lei orgânica da Saúde) e 8142/90 (trata da participação social no SUS). Além desses, variados instrumentos normativos legais e infralegais também buscam dar concretude às disposições da Constituição.
II. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO À SAÚDE E SEU REGIME JURÍDICO NO DIREITO PÁTRIO
Como se destacou anteriormente, a consagração da saúde como direito humano e como direito fundamental nas constituições de diversos países ocorreu no momento histórico em que se defendia o chamado Estado de bem-estar social. Propugnava-se uma maior intervenção do Estado no domínio público e a prestação de serviços públicos que viabilizassem a fruição dos direitos sociais, como a saúde.
Fruto desse momento histórico, é fácil constatar que a devida promoção do direito à saúde não se coaduna com a postura absenteísta outrora adotada pelo Estado liberal burguês. Com efeito, como aliás destaca a Constituição de 1988 (art. 196), o direito à saúde depende da necessária promoção de políticas públicas pelo Estado. Como os demais direitos sociais, o direito à saúde requer prestações positivas do Estado, muito embora, por óbvio, possa ser considerado também como direito de defesa – na medida em que o Estado deve se abster de causar danos à saúde dos invíduos e evitar que outros lhos provoquem – como destaca Sarlet. [02]
A atual Constituição reconheceu, sem deixar dúvida, a saúde como direito social (art. 6º), sendo espécie de direito fundamental. Referido direito encontra-se, portanto, sujeito ao regime constitucional destes últimos, sendo aplicável o disposto no art. 5º, §§ 1º e 2º da CR/88, por decorrência de sua fundamentalidade formal. [03] Dessa forma, doutrina e jurisprudência reconhecem a possibilidade de exigência de prestações materiais do Estado pelo indivíduo.
Em recentíssimo voto, proferido no julgamento do AgR-STA 175, o Ministro Gilmar Mendes, em consonância com a hodierna jurisprudência do STF, ratificou o caráter fundamental dos direitos sociais, ressaltando que, ao contrário do que ocorre em outros países, a Constituição de 1988 não deu a estes regime jurídico diverso de outros direitos fundamentais. A despeito da necessidade do cauteloso exame do caso concreto e de ter o constituinte conferido prioridade prima facie à concretização do direito à saúde em sua dimensão coletiva e mediante políticas públicas, reconheceu-se a possibilidade de sua efetivação pelo poder judiciário em demandas específicas. Lembrou-se, ademais, que a dimensão individual do direito à saúde já havia sido destacada pelo STF no AgR-RE n° 271.286, que teve por relator o Ministro Celso de Mello, no qual se reconheceu o direito à saúde como direito público subjetivo.
É oportuno destacar que a Constituição de 1988 não se contentou em definir um estatuto de organização do Estado. Ao revés, uma análise sistêmica leva à conclusão de que o texto constitucional impôs programas, metas e fins que devem ser buscados pelo Estado objetivando a implementação de uma nova ordem econômica e social. [04] Seu conteúdo é vinculante para o Estado e toda a sociedade, que devem se orientar pela busca dos objetivos constitucionais.
A confirmação de tal análise pode ser facilmente constatada a partir do exame das normas constitucionais que versam sobre o direito à saúde. Com efeito, a fruição de referido direito por todos é condição sine qua non para que a nova ordem econômica e social proposta seja definitivamente implementada. Nesse sentido, mais que regulamentar os dispositivos constitucionais, cabe ao Estado implementar ações e serviços de saúde, buscando construir a nova ordem econômica e social proposta pela Constituição. Percebe-se, pois, que a realização dos preceitos constitucionais consagra o conteúdo transformador do Direito.
III. DO DIREITO SANITÁRIO
III.I Definição de Direito Sanitário
Como foi dito, o direito à saúde como espécie de direito social tem sua efetivação dependente, intrinsecamente, da atuação do Estado como promotor de "políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196 da CR/88). Evidentemente, a atividade do Estado tendente a atingir tais fins é disciplinada por extensa normatização.
O Direito Sanitário consagra o conjunto de normas existentes no ordenamento jurídico que regulam o direito à saúde. Para Fernando Aith:
"O Direito Sanitário é o ramo do Direito que disciplina as ações e serviços públicos e privados de interesse à saúde. Ele é formado pelo conjunto de normas jurídicas (regras e princípios) que visa à efetivação do Direito à saúde e possui um regime jurídico específico." [05]
De seu turno, Sueli Dallari esclarece que:
"O direito sanitário se interessa tanto pelo direito à saúde, enquanto reivindicação de um direito humano, quanto pelo direito da saúde pública: um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a promoção, prevenção e recuperação da saúde de todos os indivíduos que compõem o povo de determinado Estado, compreendendo, portanto, ambos os ramos tradicionais em que se convencionou dividir o direito: o público e o privado." [06]
É possível afirmar, portanto, que o Direito Sanitário tem como função efetivar a Constituição, sendo sua mais importante missão permitir que a saúde se torne, realmente, direito de todos, viabilizando o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Para Sebastião Botto de Barros Tojal, o Direito Sanitário é expressão do moderno direito regulatório, asumindo o papel de "implementador das transformações sociais" [07]. Trata-se de ramo do direito orientado às exigências de direção e conformação social, exibindo como traço fundamental os efeitos sociais produzidos e é finalisticamente orientado.
III.II Direito Sanitário e ética sanitária
A despeito da missão estabelecida pela Constituição, deve-se reconhecer que, no contexto atual, a saúde tem sido vista como mais uma mercadoria disponível no mercado. Os avanços tecnológicos são buscados através da lógica dos grandes grupos econômicos para o fim de lhes proporcionar o maior lucro possível. Esse quadro é bem desenhado pelo prof. Dalmo de Abreu Dallari que adverte:
"A busca de maior ganho, sem qualquer limitação ética, observando apenas as leis de mercado, transformou em mercadoria a própria pessoa humana, seus órgãos e seus componentes, fazendo-se também o comércio, sem considerações éticas, dos cuidados de saúde, dos medicamentos e de tudo que é fundamental para a preservaçào da integridade física e mental da pessoa humana." [08]
A seguir, o mestre enfatiza que:
"(...) a sonegação e o jogo de mercado, os preços exorbitantes, as mentiras sobre as qualidades dos produtos, as falsificações, a propaganda enganosa ou inadequda visando estimular o consumo mesmo que inadequado, o suborno direto ou indireto de autoridades públicas, de empresários e profissionais da saúde e tudo o mais que faz parte da competição econômica está muito presente na área da saúde. Evidentemente, nesse jogo, ninguém leva em conta a existência da ética." [09]
As advertências do autor são fundamentais para aqueles que são responsáveis pela promoção das políticas de saúde e que operam o Direito Sanitário. É necessário ter consciência dos diversos personagens e da forma como atuam, a fim de evitar indesejável ingenuidade que, a despeito de realizar ações bem intencionadas pode ser pouco efetiva e mais benáfica para os interesses dos grupos econômicos. Nesse contexto, é imprescindível instrumentalizar o direito no rumo da concretização do direito à saúde e da construção da nova ordem econômica e social proposta pela Constituição. Essa a proposta de Sebsatião Botto de Barros Tojal para que é "preciso operar o Direito Sanitário no sentido de concretizar a Constituição Federal, que antes de representar um dado da realidade, vislumbra uma nova ordem que precisa ser construída." [10]
Para se atingir tal objetivo, é forçoso reconhecer que as políticas públicas e o direito sanitário devem orientar-se por um referencial ético, permitindo a adoção de medidas que visem assegurar a todos a fruição do estado de completo bem-estar físico, mental e social, defendido pela OMS e refutando, de imediato, as medidas que não tenham por compromisso tornar a saúde um direito de todos.
Novamente, devem ser trazidas à colação as palavras do prof. Dalmo de Abreu Dallari:
"Assim, pois, na realidade do início do século vinte e um a reflexão sobre a ética sanitária é uma necesidade óbvia e irrecusável. A saúde, reconhecida e proclamada como direito fundamental da pessoa humana, é necessidade essencial de todos os indivíduos e também de todas as coletividades. A consideração de critérios éticos torna-se absolutamente necesária, para que a saúde de todos os seres humanos esteja entre as prioridades na utilização dos recursos disponíveis, bem como para que os avanços da ciência e da tecnologia, quando verdadeiros, tenham como parâmetro de validade o benefício da pessoa humana. Só o relacionamento da saúde com a ética poderá impedir que, sob pretexto da promoção ou do aproveitamento daueles avanços técnicos e científicos, sejam impostos graves prejuízos à saúde de milhões de seres humanos ou sejam efetivadas práticas contrárias à saúde que levem à degradação de toda a humanidade." [11]