SUMÁRIO: Introdução; 1. O direito constitucional à saúde; 1.1. Eficácia do direito à saúde; 1.2 Destinatários do dever de garantia da saúde; 2. Garantia do direito à saúde versus princípio do equilíbrio financeiro; 3. A atuação do Judiciário na garantia da saúde; 3.1 Limites de atuação do Judiciário; 3.2 Alguns critérios utilizados pela doutrina e jurisprudência para dirimir o problema; Considerações finais; Referências bibliográficas.
RESUMO
A Constituição Federal de 1988 inovou no cenário jurídico brasileiro ao constitucionalizar o direito à saúde. A natureza prestacional desse direito revela a necessidade de providências estatais organizadas com a finalidade de prestar aos que necessitam desse serviço. Estabelecer um nível mínimo de saúde é tarefa extremamente dificultosa. Não há como o Poder Público conceber um sistema de saúde capaz de atender a todas as demandas da população brasileira de forma a abarcar todos os serviços, sendo perfeitamente aceitável a cláusula da reserva do possível. De outro lado, não dispõe a sociedade de recursos suficientes para custear os altos valores cobrados por aqueles que prestam o serviço de saúde. Parâmetros devem ser estabelecidos para concretizar essa política de exclusão de alguns indivíduos que buscam o direito. A questão se coloca quando se vai para o plano prático, para saber quais e em que medida as prestações podem ser exigidas e até onde pode o Judiciário conceder e fazer concretizar tal direito em face do Poder Público. Alguns critérios doutrinários e jurisprudenciais podem contribuir para a questão, como o conceito de mínimo existencial e a noção de micro e macrojustiça para subsidiar o aplicador no caso concreto.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Poder Público. Judiciário. Efetivação.
Introdução
O tema do direito à saúde no Brasil vem sendo objeto de inúmeros debates pelos diversos setores da sociedade. A doutrina constitucional já há algum tempo discute acerca do alcance do art. 196 da Constituição Federal. O direito à saúde como direito social levado ao plano prático faz surgir inúmeras dúvidas acerca de sua aplicação, isto porque se trata de um direito que exige prestações positivas do Estado por meio de políticas públicas de cunho econômico.
O conceito abstrato do que vem a ser a saúde e até em que medida tal direito é exigível do poder público torna a discussão mais interessante e importante. Nesse contexto, o direito à saúde esbarra muitas vezes na argumentação do equilíbrio financeiro, fazendo com que seja invocada de um lado a garantia de um mínimo existencial e de outro a cláusula da reserva do possível.
Diante disso, o Judiciário brasileiro se vê na difícil tarefa de tratar da maneira mais justa do problema, fazendo-se necessários critérios que possam auxiliar o aplicador do direito no momento em que se deparar com a questão, evitando decisões discrepantes e injustas.
1.O direito constitucional à saúde
A Constituição Federal de 1988 inovou no cenário jurídico brasileiro ao constitucionalizar o direito à saúde. Além do art. 6º da Constituição da República, que considera o direito à saúde um direito social, incluso no núcleo intangível dos chamados direitos fundamentais, foi reservada à saúde uma seção dentro da Ordem Social, na qual consta no art. 196 que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
A saúde é pautada pelo princípio constitucional da universalidade de atendimento [01], segundo o qual todos devem estar cobertos pela proteção social, devendo o serviço ser prestado a todos que dele necessitem, independentemente de contraprestação e da condição econômica do usuário. Desta forma, o acesso à saúde é irrestrito e independe de pagamento, sendo devido até mesmo aos estrangeiros não residentes no país.
O direito à saúde traduz-se no direito constitucional subjetivo de exigir do Estado prestações positivas visando sua concretização, podendo o usuário fazer uso da via judicial, já que vigente em nosso ordenamento o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional em caso de violação ou ameaça a direito. O Min. Celso de Mello reconheceu a saúde como um direito público subjetivo:
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médicohospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. [02]
A natureza prestacional desse direito revela a necessidade de providências estatais organizadas com a finalidade de prestar aos que necessitarem esse serviço tão essencial.
1.1.Eficácia do direito à saúde
Quanto à eficácia jurídica, o art. 196 da Constituição Federal, basicamente traz três modalidades: negativa, interpretativa e positiva. As primeiras não trazem maiores problemas. Inicialmente, ao Estado é vedado praticar atos que causem danos à saúde da sociedade. Quanto à segunda modalidade, exige-se que o intérprete da norma constitucional ao praticar a atividade interpretativa de construção da norma leve em consideração a integridade das pessoas.
No que tange à terceira modalidade, tem-se que ao Estado cabe proporcionar ao cidadão condições de acesso e uso do serviço de saúde, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade por omissão. Conforme detalha o eminente Min. Celso de Mello,
Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. [03]
No entanto, a questão que surge é em que medida podem ser exigidos esses direitos. Conforme destaca Ana Paula de Barcelos:
Se o critério para definir o que é exigível em matéria de saúde for a necessidade de evitar a morte, a dor ou o sofrimento físico, simplesmente não será possível definir coisa alguma. Na verdade, a maior ou menor eficácia das disposições constitucionais que tratam do tema devem estar relacionadas às prestações de saúde disponíveis e não às condições melhores ou piores de saúde das pessoas, mesmo porque muitas vezes não há qualquer controle sobre o resultado final que um determinado tratamento, por exemplo, produzirá no paciente. [04]
Assim, surge o problema da quantificação da saúde, já que é um bem que não convive de forma fácil com graduações. Estabelecer um nível mínimo de saúde é tarefa extremamente dificultosa.
1.2.Destinatários do dever de garantia da saúde
O destinatário principal na garantia do direito à saúde é o Poder Público, porque é quem recebe o ônus de distribuir os recursos arrecadados de forma igualitária e garantir os direitos básicos dos administrados.
Ressalte-se que os particulares também podem ser abrangidos pelo disposto no artigo 196, visto que a eficácia negativa da norma proíbe que pratiquem atos atentatórios à saúde dos indivíduos. Esse dever fica mais evidente quando aplicada a noção de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, segundo a qual aos particulares é exigida a observância de tais direitos em suas relações privadas. Claro que o destinatário maior desse dever continua sendo o Estado.
A jurisprudência fixou entendimento de que os entes da Federação são solidariamente responsáveis pelo cumprimento do art. 196 da Constituição Federal. [05] Esse dever tem respaldo constitucional no art. 23, II, que determina ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.
No âmbito infraconstitucional, a Lei 8.080/90 dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e prevê, em seu art. 15, diversas atribuições administrativas a serem executadas conjuntamente pela União, Estados, DF e Municípios.
2.Garantia do direito à saúde versus princípio do equilíbrio financeiro
Aos administradores públicos cabe observar o equilíbrio orçamentário em nome do princípio constitucional do planejamento, determinante para o setor público, conforme o art. 174 da Constituição da República. A Lei Complementar nº 101 de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), ao consagrar o princípio do equilíbrio, determina em seu art. 4º que a lei de diretrizes orçamentárias disporá sobre o equilíbrio entre receitas e despesas.
Diante disso coloca-se o seguinte: quais prestações de saúde devem ser oferecidas pelo Poder Público? Ou melhor, a que prestações de saúde os indivíduos têm direito, ao menos nesse momento histórico, e, portanto, podem exigir?
Não há como o Poder Público conceber um sistema de saúde capaz de atender a todas as demandas da população brasileira de forma a abarcar todos os serviços desenvolvidos pela inteligência humana. Alertam Octávio Luiz Motta e Fabíola Sulpino Vieira que "por mais recursos que se destine à saúde, nunca será possível atender a todas as necessidades de saúde de uma população, esteja ela em país economicamente desenvolvido ou em desenvolvimento como o Brasil" [06]. De acordo com os autores, sempre será necessário fazer escolhas, as quais são muitas vezes difíceis na área da saúde.
De outro lado, não dispõe a sociedade brasileira de recursos suficientes para custear os altos valores cobrados por aqueles que prestam o serviço de saúde. Um limite deverá ser traçado, ou, pelo menos, parâmetros devem ser estabelecidos, para, inevitavelmente, concretizar essa política de exclusão de alguns indivíduos que buscam o serviço.
Nesse contexto de objeções à efetividade dos direitos sociais [07], surge por parte dos defensores da Administração a chamada cláusula da "reserva do possível". Ingo Sarlet destaca que
A utilização da expressão "reserva do possível" tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a "reserva do possível" (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. [08]
Tal cláusula foi recepcionada e aperfeiçoada pela doutrina e jurisprudência, de forma que levada numa acepção ampla envolveria os seguintes aspectos: real disponibilidade dos recursos financeiros; previsão orçamentária autorizada pelo ordenamento jurídico e; exigibilidade da medida por parte do eventual titular do direito, de forma a observar a razoabilidade na efetivação do direito no caso concreto [09]. O Min. Celso de Mello na ADPF 45 ressalta que
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. [10]
Desta forma, mesmo havendo certa disponibilidade financeira, não seria razoável exigir do Estado que promovesse a prestação de determinado serviço ou fornecesse determinado medicamento a uma pessoa com condições econômicas consideráveis, enquanto outras pessoas de classes menos favorecidas sofrem com a falta de prestações básicas.
3.A atuação do Judiciário na garantia da saúde
É plenamente cabível ao titular do direito à saúde ir ao Judiciário para pleitear determinadas prestações estatais como forma de concretizar o direito à saúde, caso o serviço não seja devidamente prestado. Também é inquestionável o dever que têm os poderes públicos de investir pelo menos o mínimo constitucional previsto para a saúde, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade a ensejar, inclusive, a possibilidade de intervenção, conforme previsto no art. 34, VII, "e" (intervenção da União nos Estados) e art. 35, III (intervenção dos Estados nos Municípios), ambos da Constituição Federal.
No entanto, a questão se coloca quando se vai para o plano prático, para saber quais e em que medida as prestações podem ser exigidas e até onde pode o Judiciário conceder e fazer concretizar tal direito em face do Poder Público.
Ressalte-se que a questão da judicialização da saúde não envolve apenas aqueles que operam o direito, mas também profissionais e instituições das mais diversas áreas, como entidades públicas, gestores, profissionais da saúde e a própria sociedade como um todo, que é a principal destinatária do direito ao serviço de saúde. Isso justifica a tamanha importância teórica e prática dada ao problema [11].
Em 5 de março de 2009, o então Presidente do STF, Min. Gilmar Ferreira Mendes, convocou a audiência pública de nº 4, tendo como finalidade debater os seguintes assuntos relacionados à saúde: responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde; obrigação do Estado de fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública; obrigação do Estado de custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes; obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS; obrigação do Estado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS; fraudes ao Sistema Único de Saúde.
Todo esse esforço tem como utilidade traçar critérios os mais objetivos possíveis para atuação do Judiciário e da Administração Pública na concretização do direito social à saúde. As questões foram suscitadas a partir de vários pedidos de suspensão de segurança e suspensão de tutela antecipada visando suspender medidas cautelares que determinaram o fornecimento de várias prestações de saúde. A relevância também se justifica porque a discussão envolve temas de suma importância para a sociedade, tais como lesão à ordem pública, segurança, economia e saúde pública.
O debate auxilia em muito a atuação do Judiciário, já que evitaria a prolação de decisões sem critérios, que muitas vezes transferem ao administrador público o difícil dever de gerir os limitados recursos, restando a todos que não têm condições de litigar judicialmente suportar o ônus do argumento da cláusula da reserva do possível.
No que tange à atuação do Judiciário, a questão envolve, sinteticamente, os seguintes cuidados: 1) A judicialização excessiva da saúde pode ocasionar a superposição de esforços por parte de muitos órgãos e entidades públicas (União, Estados, Municípios, Justiça Estadual, Justiça Federal em ambas as instâncias) seja no cumprimento ou descumprimento da medida; 2) Desestruturação do planejamento da administração pública na destinação dos recursos públicos para a saúde; 3) O juiz acaba realizando apenas a "microjustiça", já que próximo das partes e distante do âmbito geral do problema; 4) As medidas envolvem apenas um grupo de jurisdicionado, geralmente a classe média, ficando excluídos aqueles que não têm condições sequer de chegar ao Judiciário; 5) Possível crise no princípio constitucional da separação do poderes, defendendo alguns que a intervenção do Judiciário na pauta de políticas públicas é de competência do administrador, e não do Poder Judiciário.
3.1.Limites de atuação do Judiciário
Sabe-se que é deveras triste para um magistrado negar um pedido de pessoa que se encontra em difíceis condições de saúde e que pretende, por exemplo, fazer uso de um medicamento importado de alto custo não custeado pelo SUS. A situação concreta, no dia-a-dia da prática forense, maximiza a problemática, já que, no contato pessoal com aquele necessitado, será ampliado o sentimento de justiça social do juiz.
No entanto, considerado o problema de forma macro, a visão do intérprete pode mudar. Abre-se a seguinte questão: seria justo determinar ao Poder Público que custeasse um tratamento de alto valor para um paciente que isoladamente detém uma doença rara, em prejuízo do orçamento público legalmente previsto para custear vacinas de prevenção de determina doença para grande parte da população?
Neste sentido, surge a questão de saber se os juízes, naturalmente designados a decidir casos concretos (microjustiça), estariam aptos a avaliar as consequências de sua decisão em caráter global (macrojustiça) quando determinasse o destino de certo recurso público em prol de determinada parte; se essa decisão pertence apenas àquele que maneja os recursos públicos e tem acesso constante a dados relativos à máquina administrativa, tais como sobre a eficácia de determinadas políticas públicas e segmentos mais necessitados; ou mesmo o risco que a sociedade correria se tais decisões de deferimento fossem banalizadas e proferidas sem qualquer critério. Ana Paula de Barcellos alerta que
Ao imaginar-se que, por meio de demandas individuais levadas ao Judiciário, toda prestação de saúde pode ser obtida, cria-se um círculo vicioso em que, no fim, a autoridade pública eximi-se da obrigação de executar as opções constitucionais na matéria a pretexto de aguardar as decisões judiciais sobre o assunto, ou mesmo sob o argumento de que não há recursos para fazê-lo, tendo em vista o que é gasto para cumprir essas mesma decisões judiciais. [12]
A judicialização seria hipótese excepcional de exigência da concretização do direito à saúde, cabível somente quando esgotados os meios ordinários para adquirir determinado serviço ou medicamento ou então convocado para atuar em hipóteses excepcionais. Caso contrário, chegaria ao absurdo de sentenças judiciais acabarem substituindo receitas médicas [13].
O que não pode ocorrer, em contrapartida, é o Poder Público, de forma generalizada, valer-se do argumento de que o orçamento já está comprometido para eximir-se da responsabilidade de conferir tratamento a casos mais complexos e específicos.
3.2 Alguns critérios utilizados pela doutrina e jurisprudência para dirimir o problema
A partir de debates sobre o tema, principalmente advindos da Audiência Pública nº 4, o STF constatou que muitas vezes o problema não está especificamente na adoção ou não de determinada política pública, mas quais as prestações devem ser concretizadas dentro de uma política pública específica. Ou seja, a discussão não está no âmbito de discricionariedade do Poder Público em escolher sobre uma política A ou uma política B, mas na efetivação de uma política pública já existente. Eis as considerações no Min. Relator Gilmar Mendes:
No Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial de efetivo cumprimento de políticas pública já existentes. [14]
Diante da problemática acima exposta, algumas tentativas de lidar com as questões abordadas têm sido discutidas pela jurisprudência e pela doutrina.
Ana Paula de Barcellos, analisando o que chamada de "sindicabilidade judicial do direito à saúde", destaca que
Em primeiro lugar, parece fundamental construir um rol básico de prestações em matéria de saúde – ainda que histórico e, portanto, aberto a novas discussões que considerem as alterações próprias das circunstâncias fáticas e jurídicas -, que possa ser identificado com a ideia de mínimo existencial. Em segundo lugar, será possível minimizar os efeitos colaterais indesejados associados a uma apreciação puramente individual do tema da saúde na medida em que se incremente a discussão jurisdicional da matéria por meio de demandas coletivas e mesmo de natureza abstrata. [15]
Num primeiro momento, usaria o conceito de mínimo existencial para balizar o estabelecimento de limite do qual o Poder Público não poderia se esquivar. Nesse contexto, a noção de mínimo existencial aparecia de forma muito útil.
Mínimo existencial é o núcleo da própria dignidade da pessoa humana, sem o qual o ser não tem condições necessárias a sua existência e seu desenvolvimento como pessoa. A partir desse mínimo, não há mais falar em intervenção do Judiciário, visto que agora o ambiente seria de discricionariedade da administração pública. Invadindo o Judiciário esse campo de atuação próprio da Administração incorreria em inconstitucionalidade, configurada pela violação ao princípio da separação dos poderes.
De outro lado, caso o núcleo da dignidade da pessoa humana fosse violado ou não garantido, habilitado estaria o Judiciário para determinar ao Poder Público que repare ou supra essa deficiência.
Entretanto, o problema ainda persiste, já que em matéria de saúde o conceito de mínimo existencial tem caráter aberto. Enfrentando esse problema, Ana Paula de Barcellos apresenta um parâmetro que propugna pela inclusão daquelas prestações de saúde de que todos os indivíduos necessitaram, necessitam ou irão necessitar. [16] Por esse critério estariam atendidas as principais prioridades constitucionais da saúde: o serviço de saneamento (arts. 23, IX; 198, II; e 200, IV); o atendimento materno-infantil (art. 227, § 1º, I); as ações de medicina preventiva (art. 198, II); e as ações de prevenção epidemiológica (art. 200,II).
Ainda como meio de suporte para o enfretamento da questão, surge o importante papel das ações coletivas e abstratas, tais como ação civil pública, ação direta de inconstitucionalidade, ação de descumprimento de preceito fundamental etc. Isto porque enquanto nas ações individuais o Poder Público pode se valer da reserva do possível, já que os recursos estariam vinculados a outras despesas previamente fixadas, no controle coletivo ou abstrato haverá uma análise mais geral do problema, envolvendo questão de política pública. Some-se ao fato de que passaria da ideia de microjustiça para a visão de macrojustiça. [17] Essas ações serviriam ainda como parâmetro para o futuro planejamento do Poder Público na feitura do seu orçamento.
Em Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175, o Ministro Relator Gilmar Ferreira Mendes enfrentou a questão e, com base no material já colhido pela Suprema Corte por ocasião da Audiência Pública nº 4, jurisprudências e doutrinas diversas, tentou traçar alguns critérios para o tratamento da matéria, podendo o aplicador do direito analisar as seguintes hipóteses:
1.Existência ou não de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte;
Caso já exista uma política pública, o direito subjetivo público a essa política aparece como evidente, sem que ocorra qualquer ofensa à separação dos poderes, já que caberá ao Judiciário, ponderando os interesses e valores do caso posto, tentar fazer prevalecer a decisão política fundamental.
2.Qual o motivo da não prestação: a) omissão legislativa ou administrativa; b) decisão administrativa de não fornecê-la ou; c) vedação legal ao seu fornecimento;
Sobre a existência de motivação do SUS para o não fornecimento deve ser levado em conta o seguinte:
b.1 - O SUS fornece o serviço ou medicamento, mas não é adequado a determinado paciente. Caso exista a opção de escolha de tratamento, o Min. Gilmar Mendes entende que, em geral, deve ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS - sempre que não comprovada a sua ineficácia ou impropriedade - em detrimento da opção diversa escolhida pelo paciente.
Assiste razão o entendimento do Min. Gilmar, visto que não faz sentido obrigar o Poder Público a pagar por medicamentos estranhos à sua política quando tem à disposição outro que produz efeitos similares.
b.2 - o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada doença. Neste caso, o tratamento requerido poderá ser: b.2.1- tratamento puramente experimental (sem comprovação científica de sua eficácia) - aqui não cabe, em regra, a condenação do Estado no seu fornecimento, já que nunca foram avaliados ou aprovados e o acesso deve ser disponibilizado apenas no âmbito de estudos clínicos [18]; b.2.2 - tratamentos não testados pelo SUS.
Nas hipóteses supra também há procedência o raciocínio do Min. Gilmar, no sentido da possibilidade do Poder Judiciário decidir excepcionalmente de maneira diferenciada do SUS ou contemplar hipóteses ainda não previstas por este Sistema Único, seja pela natureza peculiar do organismo de determinada pessoa ou pela própria não revisão periódica dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas.
Quanto ao seu fornecimento, é vedado à Administração Pública fornecer medicamento sem registro na ANVISA - Agência Nacional de Saúde, embora em hipóteses excepcionais a Lei 9.782/99 permita o uso de medicamento por meio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas em saúde pública pelo Ministério da Saúde [19].
Como se vê, o Min. Gilmar Mendes embora traga alguns critérios esclarecedores, não consegue exaurir a matéria, o que é perfeitamente compreensível, tendo em vista a complexidade e amplitude do problema
Vale registrar interessante contribuição do Prof. Dr. Jorge A. Beloqui, trazendo critérios nos seguintes termos: a. o medicamento está reprovado pela ANVISA para esta finalidade; b. o medicamento está aprovado por alguma outra Autoridade Sanitária com base em evidências científicas e a solicitação de registro do medicamento não foi depositada junto à ANVISA; c. o medicamento está aprovado por alguma outra Autoridade Sanitária com base em evidências científicas e está em análise pela ANVISA; d. o medicamento não está aprovado por nenhuma Autoridade Sanitária com base em evidências científicas para esta finalidade.
No caso "a." a medicação provavelmente não deve ser fornecida. Os casos "b" e "c" merecem uma análise cuidadosa, depois de esgotadas as alternativas oferecidas pelas Diretrizes de Tratamento e das alternativas aprovadas pela ANVISA. [20]
Embora sejam critérios que subsidiem o aplicador do direito, o caso deverá ser analisado levando em conta suas peculiaridades, pois doenças raras são muitas vezes descobertas sem que a ciência esteja prepara para enfrentá-las. Assim, mesmo que não prevista pela ANVISA, deve ser levado em conta o que foi dito acima para os casos "b" e "c", ou seja, o magistrado deverá analisar com cuidado a tese do paciente.
Entende-se que o melhor caminho seria buscar a ajuda de bons especialistas em matérias similares e somente com subsídios suficientes conceder tutela jurisdicional em hipótese não prevista pela ANVISA. Note-se que nesse caso seria hipótese excepcional, já que o registro na ANVISA constitui condição necessária para a segurança e benefício do produto.