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A judicialização da saúde: atuação do Poder Judiciário para efetivação de garantia constitucional

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05/06/2011 às 16:22
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RESUMO

A saúde pública brasileira não corresponde, na prática, às previsões legais. Esvaindo-se de seu dever, o Estado, repousando no argumento da carência orçamentária, omite-se de sua obrigação de prover assistência à saúde de sua população. Ante essa omissão, busca- se suporte ao Poder Judiciário, que encontra óbices em sua atuação impostos pela doutrina e, inclusive, jurisprudência, com fundamento, sobretudo, na tripartição dos poderes, e ainda, na reserva do possível. O presente trabalho busca analisar a situação da saúde pública no País, pontuando os aspectos constitucionais e infraconstitucionais que a revestem, e ainda os limites impostos ao Poder Judiciário a sua atuação nesses casos. No propósito de prestar a devida assistência à saúde à população, o Estado propõe políticas públicas com diretrizes desatualizadas aos programas de atenção a essa área, tanto em sede de prevenção como de tratamento. Diante dessa omissão do Poder Público em disponibilizar aos cidadãos tratamentos e assistência farmacêutica devidas, resta aos indivíduos buscar o amparo judicial.

Palavras-chave: Poder Judiciário, políticas públicas, saúde.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca analisar a situação da saúde pública no Brasil, ante a omissão do Poder Público, com enfoque na necessidade de intervenção do Poder Judiciário para garantir a prestatividade de serviços relacionados à saúde por parte do Estado, ponderando os limites existentes à atuação judicial nesses casos.

Justifica-se o presente estudo ante a relevância social do tema, tendo em vista o descaso suportado atualmente pela sociedade no que se refere à propicialidade de seus direitos e garantias básicas pelo Poder Público, especialmente no que tange ao essencial e melindroso direito à saúde.

Ao que pese a inegável necessidade, será discutida ainda a possibilidade de atuação judicial para a garantia do cumprimento das disposições legais referentes à saúde de competência do Estado, pontuando os limites existentes a esta atuação, impostos pela doutrina e delegados pela própria Administração Pública como esteio para prosseguir na omissão relatada.

Ao fim, almeja-se alcançar uma situação de solução para a situação que, sem a devida prestação do poder público, que ao menos seja possível ao Poder Judiciário garantir a eficácia, mesmo que mitigada, dos direitos garantidos constitucionalmente.


2 GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO À SAÚDE

A Constituição Federal estabeleceu os fundamentos do direito à saúde no Brasil, garantindo o acesso universal e integral às ações de saúde a serem promovidas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Neste sentido estabelece a Carta Maior:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação (BRASIL, 1988).

Desta forma a Constituição de 1988 declarou expressamente o compromisso do Estado em propiciar a toda população um acesso pleno e igualitário à saúde. Ilustrando o dever do Estado de promover tal garantia, convém transcrever excelente ponderação feita por Marcos Salles, representante da Associação dos Magistrados Brasileiros, no primeiro dia da Audiência de Saúde Pública realizada pelo STF:

a busca da cura é uma das situações da condição humana em que por infelicidade se procura e por felicidade se encontra. Mas a vida, por mais fé que se tenha em alguma dogmática religiosa, não pode, no Estado democrático de Direito, ser entregue à própria sorte (SALLES, 2009).

Para o cumprimento desta imposição, a própria Constituição Federal traçou diretrizes a serem seguidas pelo poder público, estando estampadas nos incisos I a III do artigo 198 que assim previu:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade (BRASIL, 1988).

O princípio básico da saúde, como bem expresso, é a sobrevalorização das medidas preventivas, todavia, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Para tanto, o Estado instituiu entidades públicas, criando mecanismos de cooperação entre estas e o setor privado, visando uma execução de suas políticas voltadas à garantia da saúde de maneira mais igualitária e universal, observadas as diferenças regionais e sociais existentes no país.

Conforme evidenciado alhures, a Constituição Federal vigente abordou a saúde de maneira singular, figurando o rol dos direitos sociais e fundamentais, além de diversos dispositivos constitucionais espalhados por todo seu texto legal, que, ainda que indiretamente, aludem à saúde.

Ao tratar das competências de seus entes federados, a lei máxima informou a competência comum de todos esses para cuidar da saúde, podendo, inclusive, legislar sobre o assunto e, acima de tudo, prestar atendimento à população.

Nesta senda, percebe-se que são inúmeras as regras constitucionais que diretamente tratam sobre a saúde, contudo, sem apresentarem eficácia imediata e plena, independentemente de ações judiciais ou mesmo que administrativas, para que possam os cidadãos alcançar a consolidação de um direito tão superior que lhes foi conferido.

Todavia, há de ser evidenciado que a respeitável Lei Maior ditou o que é necessário para que cada ser humano viva adequadamente, mas não explicou como haveria de ser procedido para que fosse possível assegurar aos bilhões de brasileiros sua considerável lista de beneplácitos (GANDIN; BARIONE, SOUZA, 2008).

Destarte, não obstante os ensinamentos constitucionais e infraconstitucionais, é mais que conhecido por todos os operadores do Direito que, infelizmente, nem sempre, ou quase nunca, a aplicabilidade das normas existentes se dá literalmente como reza. E exemplo nítido desta infeliz realidade é o Sistema de Saúde adotado no Brasil, carente em seus atendimentos, cumprimento das diretrizes traçadas, e ainda na prestação da assistência farmacêutica devida.

Impende apontar os ensinamentos de Fontes (2003, p.193), sobre o tema:

esta consagração dos direitos sociais no texto constitucional, contudo, gerou uma contradição com a realidade social, na medida em que séculos de negligência estatal criaram um enorme contingente de marginalizados, que exigem cada vez mais políticas e serviços públicos, ao passo que os administradores não são capazes de dar efetividade ao texto constitucional e fazer frente a essa demanda por direitos.

2.1 Legislação infraconstitucional: Lei do SUS (Lei n. 8.080/90)

A Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990, Lei Orgânica da Saúde, foi criada a fim de regularizar os artigos 196 e seguintes da Constituição Federal, instituindo o Sistema Único de Saúde, dispondo sobre suas características, custeio entre outros. Seu artigo 2º, caput e §1º ratifica o dever do Estado em promover a devida assistência à saúde:

Art. 2°. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1990b, p.1).

Apesar de por demais consolidado o dever do Estado em prover a assistência integral à saúde, a lei em tela solidariza esta responsabilidade com as demais pessoas, empresas, família e sociedade em geral, segundo disposto no §2° do mencionado artigo.

No mesmo sentido às disposições antes analisadas, da Lei 8.080/90, com regulamentação do sistema único de saúde e a reiteração do preceito de que:

a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". Seu artigo 6º, inciso I, alínea "d", expressamente inclui, como parte desse atendimento, a execução de ações "de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (BRASIL, 1990b).

Segundo Silva (2006, p.402):

a saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O direito a saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem. O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo.

Vê-se assim, que, igualmente tratado na Constituição Federal, a legislação infraconstitucional preocupou-se em delinear este consagrado direito à saúde, disciplinando sua maneira de execução, e ainda, majorando a responsabilidade do Poder Público por tal efetivação, não restando dúvidas que o dever de assistência do Estado engloba todas as ações preventivas e paliativas em relação à saúde, inclusive com o fornecimento gratuito das terapias medicamentosas indicadas até total restabelecimento do cidadão enfermo.

2.2 Limites da atuação judicial na concretização da assistência à saúde

Os direitos constitucionais fundamentais, especialmente o aludido direito à saúde, encontram atualmente sérias dificuldades em relação a sua efetividade, conforme explanado alhures, ante a não atuação necessária do Poder Público. Diante desta omissão por parte do poder elaborador e garantidor de políticas públicas, está ainda o óbice da discussão acerca da atuação do Poder Judiciário nestes casos de omissão, baseada em uma interpretação retrógada da teoria da Separação dos Poderes.

Esta vedação decorre da intenção prejudicada de defender o cidadão de intervenções abusivas do Poder Público, todavia, com a atuação do Judiciário nos casos expostos é que se estaria garantindo essa proteção.

2.2.1 A vedação ao juiz como legislador positivo na concretização do direito à saúde

A alegação de impossibilidade de atuação do juiz como legislador positivo é constantemente invocada pelo Supremo Tribunal Federal em ações que visem a concretização de direitos constitucionais, em especial, o direito à saúde, pelo Poder Judiciário, fundada em uma visão extremista da Separação dos Poderes, que precisa ser relativizada nos dias atuais.

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Clève (2005, p.7) apresentou alguns argumentos e contra-argumentos para esta legitimidade discutida:

se é certo que há um consenso no que diz respeito à atuação dos juízes enquanto legislador negativo, o mesmo não ocorre quando se está a falar numa atuação análoga à do legislador positivo. Ou, eventualmente, do administrador. De outro viés, cumpre verificar se, do fato de o Judiciário não dispor de um meio de legitimação como os demais poderes (o mecanismo eleitoral para a investidura de seus membros), não se poderia deduzir que está impedido de atuar a partir de determinado limite. Poder-se-ia, eventualmente, afirmar, para afastar o argumento, que o Judiciário atua como uma espécie de delegado do Poder Constituinte para a defesa da Constituição e, especialmente, dos direitos fundamentais. O contra-argumento seria no sentido de que, no contexto do regime democrático, é a maioria (princípio majoritário) que governa.

Objetivando a imposição de limites à democracia, conferiu-se aos juízes ou a entidades com características próprias de cortes de justiça, a função de controle da constitucionalidade das leis. Contudo, a atribuição desse poder sem paralelo aos juízes não afasta a prioridade do legislativo na formulação de políticas públicas (MORO, 2001).

Um dos mecanismos existentes ao Judiciário para controle do legislativo é a ação declaratória de constitucionalidade, conforme conclui Slaibi Filho (s.d, p.5):

evidente o conteúdo legislativo positivo da ação declaratória de constitucionalidade, pois através do provimento de procedência agrega-se ao ato normativo a qualidade ou eficácia de imunizá-lo ao controle incidental de constitucionalidade; isto é, a decisão da Suprema Corte na ação declaratória de constitucionalidade tem o impressionante efeito de impedir que juízes e administradores públicos neguem aplicação à norma infraconstitucional sob o fundamento de ser a mesma incompatível com a Lei Maior.

A própria Lei Maior não impõe expressamente este impedimento, não trazendo, todavia, a autorização expressa para a atuação legislativa positiva do juiz sendo os entendimentos construídos por juristas (MARTINS, 2008).

De certo modo, a Carta Maior confere aos juízes o controle da atividade legislativa, atribuindo, implicitamente, poderes de reparo, o que em casos de omissão, ensejaria a concretização judicial da norma constitucional (MORO, 2001). Assim, nos dizeres de Dworkin (1999, p.44), "o objetivo da decisão judicial constitucional não é meramente nomear direitos, mas assegurá-los, e fazer isso no interesse daqueles que tem tais direitos".

Sabiamente, conclui Moro (2001, p.104) a respeito do tema:

o portanto, base racional, não sendo, outrossim, decorrente de comando constitucional expresso. Admiti-lo por construção jurisprudencial vai de encontro ao principio da Supremacia da Constituição e ao princípio da efetividade deste decorrente, apenas representando abdicação indevida pelo Judiciário da função de controle atribuída pela Constituição.

Infere-se então, que não bastam os argumentos da discricionariedade e separação dos poderes no intuito de afastar o Poder Judiciário da efetivação de direitos constitucionais, devendo este, agindo em observância aos princípios impostos, ter uma maior atuação na sociedade, garantindo, ante a omissão estatal, maior prestatividade de políticas públicas, especialmente voltadas à saúde.

2.2.2 Previsão orçamentária

Não é incomum a constante utilização pelo Estado da alegação de necessidade inegável de previsão orçamentária para a execução de determinado direito garantido, primordialmente no âmbito de ações judiciais ajuizadas com o intuito de efetivação do direito à saúde, onde são conferidas liminares impositivas ao Poder Público. De fato, a Constituição Federal vigente, em seu artigo 167, veda, dentre outras medidas, o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual, a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários, e ainda a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (BRASIL, 1988).

A proteção e efetivação de todos os direitos individuais, por óbvio, necessitam de recursos para que sejam efetivadas. Ilustrando o quadro, vê-se a atuação das polícias, do corpo de bombeiros e do próprio Poder Judiciário; a realização de eleições e todas as atividades administrativas de controle e fiscalização. Todos os direitos demandam custos para sua efetivação; os direitos de defesa, indiretamente; e os direitos sociais, diretamente (MÂNICA, 2007).

Apesar da preocupação do constituinte em planejar as despesas públicas oriundas da administração direta e indireta, esta necessidade de previsão orçamentária não deve servir como obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais, mormente o acionado direito à saúde, quando buscados pelo Poder Judiciário. Isto não impede que o juiz ordene ao poder público que realize determinada despesa para fazer valer um dado direito constitucional, até mesmo porque diante do conflito de normas (previsão orçamentária e direito fundamental), vê-se que encontram-se no mesmo patamar, sobressaindo então, o direito fundamento, dada sua superioridade axiológica (GANDIN; BARIONE; SOUZA, 2008).

Nas palavras de Oliveira (2006, p.405):

evidente que não se inclui na órbita da competência do Poder Judiciário a estipulação nem a fixação de políticas públicas. No entanto, não se pode omitir quando o governo deixa de cumprir a determinação constitucional na forma fixada. A omissão do governo atenta contra os direitos fundamentais e, em tal caso, cabe a interferência do Judiciário, não para ditar política pública, mas para preservar e garantir os direitos constitucionais lesados.

Importante destacar a seguinte decisão do Ministro Celso de Mello, do Superior Tribunal Federal (Pet. 1.246-SC):

[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5°, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência vêm se mostrando consolidadas ao ditar a supremacia dos direitos fundamentais em relação aos demais, com sua efetivação sobreposta a qualquer outro direito ou preceito fundamental.

2.2.3 Teoria da reserva do possível

Apesar da enorme quantia de impostos recolhidos, vivencia-se a constante escassez dos recursos públicos para a devida concretização de suas políticas públicas, e, em razão disto, trabalhando sempre com observância ferrenha a teoria da reserva do possível.

O conceito da reserva do possível é uma construção da doutrina alemã que dispõe, basicamente, que os direitos já previstos só podem ser garantidos quando há recursos públicos para tanto [01].

Nessa seara, Mendes, Coelho e Branco (2007, p.250-251), assim se manifestam acerca da efetivação dos direitos a prestação material:

a escassez de recursos econômicos implica a necessidade de o Estado realizar opções de alocação de verbas, sopesadas todas as coordenadas do sistema econômico do país. Os direitos em comento têm que ver com a redistribuição de riquezas – matéria suscetível às influências do quadro político de cada instante. A exigência de satisfação desses direitos é mediada pela ponderação, a cargo do legislador, dos interesses envolvidos, observado o estádio de desenvolvimento da sociedade.

Na medida em que a Constituição não oferece comando indeclinável para as opções de alocação de recursos, essas decisões devem ficar a cargo de órgão político, legitimado pela representação popular, competente para fixar as linhas mestras da política financeira e social. Essa legitimação popular é tanto mais importante, uma vez que a realização dos direitos sociais implica, necessariamente, privilegiar um bem jurídico sobre outro, buscando-se concretizá-lo com prioridade sobre outros. A efetivação desses direitos implica favorecer segmentos da população, por meio de decisões que cobram procedimento democrático para serem legitimamente formadas – tudo a apontar o Parlamento como a sede precípua dessas deliberações e, em segundo lugar, a Administração.

Diante da limitação dos recursos orçamentários e da consequente impossibilidade de efetivação integral de todos os direitos fundamentais sociais, passou-se a sustentar, como restrição à intervenção do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, a teoria da reserva do possível.

De fato, os recursos da sociedade, incluindo-se aí a disponibilidade financeira, são escassos, o que significa que o Estado não pode atender a todos os anseios da sociedade. Surge, então, a necessidade de administrar de maneira adequada e eficiente os recursos escassos da sociedade para promover o maior bem social possível. Porém, como não é possível satisfazer todos os desejos sociais, o Estado, como administrador dos recursos, deve fazer escolhas acerca de quais necessidades atender e de quais necessidades abrir mão ou de atender de maneira deficiente (ORDACGY, 2009).

Apesar da teoria da reserva do possível ser uma limitação racional à efetivação dos direitos e garantias fundamentais, sob o ponto de vista de que os recursos são finitos, e as necessidades infinitas, o que se vêm observando é a banalização do discurso por parte do Estado em juízo e mesmo fora dele, sem, contudo, fazer prova de quaisquer das suas alegações. Ora, não é suficiente simplesmente alegar que não há o suficiente para a efetivação do direito, é preciso apresentar de maneira concreta essa carência.

Nesse cenário, ensina Lima (2008, p.3 ):

assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental.

Conforme assinalado por Barcelos (2003, p.237), "na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais".

Regulamentando esse uso, tem-se a seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:

[...]

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico- financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível"

ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...] (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g.n.)

Dessa maneira, apresenta-se a teoria da reserva do possível como um contrapeso utilizado em decisões tanto administrativas como judiciais, que visem uma prestação material, devendo a decisão ser tomada mediante a ponderação dos interesses e disponibilidade financeira em questão; não cabendo o uso da reserva do possível apenas de apoio ao Poder Público na omissão social.

2.2.3.1 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, inspirado em decisões da Corte Constitucional Alemã, insere-se na estrutura normativa da Constituição, ao lado dos demais princípios norteadores das regras constitucionais, ante a escassez de recursos de multiplicidade de necessidades sociais, impondo-se ao Estado a necessidade estabelecendo critérios e prioridades (SOUZA; PINHEIRO SAMPAIO, 2002).

Denota-se então a utilidade do princípio estudado não somente no âmbito das decisões da Administração Pública, mas também ao Judiciário, servindo como limite da atividade jurisdicional no que tange à aplicação da teoria da reserva do possível diante da efetividade dos direitos fundamentais constitucionais.

A respeito dessa proporcionalidade a ser empregada, tanto em decisões administrativas quanto jurisdicionais, quando conflitantes interesses indisponíveis, o Ministro Gilmar Mendes assim consagrou seu voto na decisão que julgou procedente pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo, em face do não pagamento de precatórios judiciais:

em síntese, a aplicação da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei (...) há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). (Supremo Tribunal Federal, IF 139-1/SP; Órgão Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 19 de março de 2003).

A aludida ponderação, decorrente da aplicação da teoria da reserva do possível cumulada com o princípio da proporcionalidade, deve ser observada de forma ferrenha em todas as discussões que envolvam direitos constitucionais fundamentais, partindo sempre da premissa de que as necessidades são infinitas enquanto os recursos são limitados, servindo ainda de limite da atividade jurisdicional, adstrita à essa análise diferenciada, a fim de evitar o desrespeito à autonomia da Administração Pública em gerenciar seus recursos, e ainda ofensa aos direitos do cidadão consagrados constitucionalmente.

Abordando o tema, concluiu sabiamente Justen Filho (1998, p.118) que:

[...] a proporcionalidade se relaciona com a ponderação de valores. Não há homogeneidade absoluta nos valores buscados por um dado Ordenamento Jurídico, pois é inevitável atrito entre eles. Pretender a realização integral e absoluta de um certo valor significaria inviabilizar a realização de outros. Não se trata de admitir a realização de valores negativos, mas de reconhecer que os valores positivos contradizem-se entre si. Assim, por exemplo, a tensão entre Justiça e Segurança é permanente em toso sistema normativo. A proporcionalidade relaciona-se com o dever de realizar, do modo mais intenso possível, todos os valores consagrados pelo Ordenamento Jurídico, O princípio da proporcionalidade impõe, por isso, o dever de ponderar os valores.

Aplicando o estudo a casos concretos, verifica-se que na maior parte das vezes existe a adequação e a necessidade, consubstanciadas em relatórios médicos e demais atestados, porém, merece atenção especial a respeito da proporcionalidade em sentido estrito [02], que é a relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto, uma vez que, o direito a ser garantido ao paciente poderá ensejar detrimento à diversas ações de saúde que poderiam ser promovidas pelo ente público maior da população necessitada.

2.2.4 Reserva de consistência

Essa expressão foi extraída de Häberle (1997, p.42) que leciona:

colocado no tempo, o processo de interpretação é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está submetido à reserva da consistência (Vorbehalt der Bewährung), devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais.

Não obstante a atuação do Judiciário na concretização dos direitos constitucionais, este não está autorizado a determinar qualquer medida, estando sujeito aos limites da chamada ‘reserva de consistência’. Moro (2001, p.5):

no controle judicial de ato legislativo, cumpre ao julgador demonstrar com argumentos convincentes o acerto de sua interpretação da Constituição e o desacerto daquela que levou à edição do ato legislativo. [...] O limite da reserva de consistência impedirá, é certo, o Judiciário de concretizar normas fundamentais que demandam a adoção de políticas de certa complexidade.

Nesta senda, a reserva de consistência surge em um cenário em que ao julgador, é imputada determinada cautela ao decidir questões que ensejarem direitos a prestações materiais, no sentido de não determinar a efetivação de algum direito sem antes certificar-se acerca da disponibilidade de recursos e/ou meios para tanto, demonstrando-se assim a reserva de consistência meramente como um princípio, norteador da necessidade de fundamentação da decisão judicial:

ora, entendo que a denominada reserva de consistência nada mais é do que o princípio da necessidade de fundamentação das decisões judiciais, o qual obriga, inclusive como forma de legitimação, de que os juízes expliquem as razões de sua decisão, ou seja, o caminho lógico percorrido para a conclusão adotada naquele caso concreto (FREIRE JUNIOR, 2005, p.121).

Assim, não deve o Judiciário afastar-se da efetivação dos direitos constitucionais de 2ª dimensão [03], não servindo como óbice apenas a retrógada imputação da legislação positiva, todavia, deve ater-se aos limites já evidenciados, como a reserva do possível e a proporcionalidade, bem como também a reserva de consistência, fundamentando para tanto, suas decisões, a fim de garantir um procedimento mais justo, com menor onerosidade desnecessária à Administração Pública.

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Sobre a autora
Tayanne Martins de Oliveira

Advogada em Luís Eduardo Magalhães, Bahia. Possui graduação em Direito pela Universidade de Rio Verde (2010). Pós graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera. Ocupou o cargo de Advogada Geral da Prefeitura Municipal de Bom Jesus por mais de 5 anos, atuando principalmente na área administrativa, tributária, e cível não especializada. Possui também atuação na advocacia privada, com experiência na área cível e trabalhista. Experiência predominante na área cível em geral, não especializada. E atualmente, com foco principal nas áreas de Direito Tributário e do Agronegócio. Experiência e estudos na área da saúde pública e judicialização da saúde.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tayanne Martins. A judicialização da saúde: atuação do Poder Judiciário para efetivação de garantia constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2895, 5 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19240. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado sob orientação de Patrícia Spgnolo Parise, Mestre em Direito, professora da disciplina Direito Constitucional e Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos Jurídicos da Faculdade de Direito – Fesurv.

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