1.Os neologismos
Recentemente, entrou no quotidiano das pessoas um neologismo, homoafetividade, que está dando origem a outro: heteroafetividade. E seus correlatos homoafetivo e heteroafetivo.
Inicialmente, cabe consignar que nenhuma daquelas duas (ou quatro) palavras encontra-se abonada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), o que nos leva a que elas não existem, legalmente, em nossa língua, e somente passarão a existir quando a Academia Brasileira de Letras, mais dia menos dia, as incluir no VOLP.
Contudo, ninguém ignora o que se quer dizer com aquelas palavras (ainda) inexistentes, embora caibam algumas considerações de ordem linguística ou gramatical. Serão a justaposição de um "elemento de composição" – nossos principais dicionários, Aurélio e Houaiss, assim dizem ser a categoria, ou classe, gramatical – (homo ou hetero) a um substantivo (afetividade) ou adjetivo (afetivo), conforme uma ou outra a palavra composta.
Vejamos o que consta nos dicionários sobre cada um desses pedacinhos de palavra:
Hetero = outro, diferente; Homo = semelhante, igual, comum (ambos, com raiz grega).
Afetividade = conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre da impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou tristeza.
Afetivo = que tem ou denota afeição, afetividade; relativo aos afetos, aos sentimentos; que sente ou procura afeto.
Para completar, assim está dicionarizada a palavra Afeto: afeição por alguém; inclinação, simpatia, amizade, amor (Aurélio). Sentimento terno de adesão geralmente por uma pessoa ou um animal; afinidade, ligação espiritual terna em relação a alguém ou algo (Houaiss).
1.A acepção (única) que vem sendo dada
Após essa brevíssima preliminar, pode-se concluir que a atração sexual não está, expressa ou indispensavelmente, inserida no contexto. Pode ser uma decorrência ou uma causa, sem ser requisito essencial. Como entender a afetividade ou o afeto entre um ser humano e seu animalzinho de estimação? Ou entre irmãos ou irmãs, de pai para filho, de mãe para filha, etc.
Entretanto, não é essa a interpretação mais comum nos dias e nos debates atuais. Os Excelentíssimos senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal (a começar do Relator, o intelectual Carlos Ayres Britto), bem como os autores da ADI 4277 (Procurador-Geral da República) e da ADPF 132 – convertida em ADI no STF – (Governador do Estado do Rio de Janeiro), somente analisaram (e os que reagiram também) a conotação da relação homossexual (e, com maior ênfase e crítica, talvez, entre homens).
O homossexualismo não é nenhuma novidade, remontando a Sodoma e Gomorra ou a Lesbos. Tem o nome de sodomia certa prática mesmo entre pessoas de sexos distintos. O bissexualismo, igualmente, é prática que se perde na origem dos tempos. De mais moderno, quem sabe, apenas o transexualismo, os transgêneros.
Quantas manifestações surgiram, em posições antagônicas e irreconciliáveis, e em debates acalorados, sobre a unânime decisão de nossa Corte Constitucional naqueles dois processos julgados em conjunto! Todas elas levadas por um apaixonado apego a princípios, eventualmente, para dar a entender uma moral que se pretende ver preservada. Ou em favor de uma realidade conhecida, aceita mais que tolerada.
A meu ver, a questão tem muito mais aspectos a serem considerados. E, necessariamente, não deve ser analisado sob o ponto de vista religioso ou de uma falsa ou conservadora moral. Raríssima será, nos dias que correm, a família, a comunidade, a entidade, a categoria profissional que não contenha um ou mais homossexuais. Que congregação, parlamento, associação de classe ou esportiva, estrato social ou grupo profissional pode garantir que somente existam heterossexuais em seu meio? Nos quartéis, vez por outra, noticia-se a existência de militares homossexuais. Será que não existem homossexuais entre os magistrados, entre os do magistério, nas igrejas ou conventos, dentre jornalistas ou escritores, para não falar na classe artística? Serão eles menos competentes ou íntegros? Suas cidadanias devem ser menores ou seus votos valerem menos?
Todos merecem respeito, qualquer que seja sua opção sexual.
Não importa demasiadamente discutir se homossexualidade é doença, perversão, defeito genético, erro de criação, resultado do ambiente "familiar" ou ... castigo divino/ carma/compromisso reencarnacionista. Outra seria a questão se o tema fosse pedofilia, corrupção/exploração sexual de menores e coisas do gênero.
Outrossim, não me parece procedente a afirmativa de que crianças criadas em ambiente gay, forçosa e inevitavelmente, adotarão o comportamento sexual dos que lhe criaram. Pode até ser obra de ficção, mas em "A Gaiola das Loucas" o filho do casal é completamente heterossexual e, por causa e em torno disso, desenrola-se a trama. Por outro lado, criança nascida em família (pais) inteiramente heterossexual pode, não constitua surpresa, vir a manifestar comportamento diferente. Irmãos criados sob o mesmo teto, as mesmas regras e os mesmos exemplos, quanta vez, ao se tornarem adultos – ou ainda adolescentes –, podem adotar opções sexuais distintas. Se assim não fosse, coitado de quem nascesse em uma casa de prostituição, ou de pai ou mãe ligado às profissões do sexo, sabidamente as mais antigas do mundo.
Não faz muito, passou-se a comentar que dois jogadores de futebol de nomeada, Toninho Cerezzo e Edmundo "Animal", têm filhos (nascidos e registrados como do sexo masculino) que não adotaram o comportamento que deles esperavam seus pais. Se não me trai a memória, li que "Lea T", famosa modelo, não seria propriamente homossexual, nem sei dizer se já se submeteu à cirurgia de mudança de sexo ou se pretende fazê-la. Há umas duas dezenas de anos, o filho de Jorginho Guinle, o pai um notório conquistador de muitas mulheres, mantinha um relacionamento que deu motivo a uma disputa judicial pela herança (era um artista plástico de reconhecido valor e deixou, ao morrer, um patrimônio que justificava a disputa). A justiça teria reconhecido seu companheiro como herdeiro.
A questão, em si, é atual, planetária, tormentosa e polêmica. E, deve-se fazer justiça, foi analisada exclusivamente sob o ângulo jurídico, à luz da nossa Constituição Federal.
2.A tão falada decisão judicial
Tenho por hábito aguardar a publicação do Acórdão para verificar o que efetivamente ficou decidido (somente o Acórdão faz coisa julgada). Porém, neste caso, tem-se a Ata das duas Sessões do Plenário do STF (4 e 5 de maio de 2011) já publicadas:
"Chamadas, para julgamento em conjunto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, após o voto do Senhor Ministro Ayres Britto (Relator), que julgava parcialmente prejudicada a ADPF, recebendo o pedido residual como ação direta de inconstitucionalidade, e procedentes ambas as ações, foi o julgamento suspenso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Falaram, pela requerente da ADI 4.277, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República; pelo requerente da ADPF 132, o Professor Luís Roberto Barroso; pela Advocacia-Geral da União, o Ministro Luís Inácio Lucena Adams; pelos amici curiae Conectas Direitos Humanos; Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM; Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual; Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT; Grupo de Estudos em Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais – GEDI-UFMG e Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais – Centro de Referência GLBTTT; ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero; Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo; Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e a Associação Eduardo Banks, falaram, respectivamente, o Professor Oscar Vilhena; a Dra. Maria Berenice Dias; o Dr. Thiago Bottino do Amaral; o Dr. Roberto Augusto Lopes Gonçale; o Dr. Diego Valadares Vasconcelos Neto; o Dr. Eduardo Mendonça; o Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti; o Dr. Hugo José Sarubbi Cysneiros de Oliveira e o Dr. Ralph Anzolin Lichote. Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso.
O Tribunal conheceu da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como ação direta de inconstitucionalidade, por votação unânime. Prejudicado o primeiro pedido originariamente formulado na ADPF, por votação unânime. Rejeitadas todas as preliminares, por votação unânime. Em seguida, o Tribunal, ainda por votação unânime, julgou procedente as ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, autorizados os Ministros a decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli". (DJe de 16/5/2011).
E conta-se, também, com o que está no Informativo nº 625 do STF:
"A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC ("É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família") não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal. Essa a conclusão do Plenário ao julgar procedente pedido formulado em duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas, respectivamente, pelo Procurador-Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro.
Preliminarmente, conheceu-se de argüição de preceito fundamental — ADPF, proposta pelo segundo requerente, como ação direta, tendo em vista a convergência de objetos entre ambas as ações, de forma que as postulações deduzidas naquela estariam inseridas nesta, a qual possui regime jurídico mais amplo. Ademais, na ADPF existiria pleito subsidiário nesse sentido. Em seguida, declarou-se o prejuízo de pretensão originariamente formulada na ADPF consistente no uso da técnica da interpretação conforme a Constituição relativamente aos artigos 19, II e V, e 33 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da aludida unidade federativa (Decreto-lei 220/75). Consignou-se que, desde 2007, a legislação fluminense (Lei 5.034/2007, art. 1º) conferira aos companheiros homoafetivos o reconhecimento jurídico de sua união. Rejeitaram-se, ainda, as preliminares suscitadas.
No mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min. Ayres Britto, relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas conseqüências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a Constituição proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros, não se caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento intrínseco de quem quer que fosse. Assim, observou que isso também ocorreria quanto à possibilidade da concreta utilização da sexualidade. Afirmou, nessa perspectiva, haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não.
Em passo seguinte, assinalou que, no tocante ao tema do emprego da sexualidade humana, haveria liberdade do mais largo espectro ante silêncio intencional da Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a incidência da regra de que "tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido". Em segundo lugar, o emprego da sexualidade humana diria respeito à intimidade e à vida privada, as quais seriam direito da personalidade e, por último, dever-se-ia considerar a âncora normativa do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea. Frisou que esse direito de exploração dos potenciais da própria sexualidade seria exercitável tanto no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual). Asseverou, de outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Ao levar em conta todos esses aspectos, indagou se a Constituição sonegaria aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união — realidade há muito constatada empiricamente no plano dos fatos —, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação.
Após mencionar que a família deveria servir de norte interpretativo para as figuras jurídicas do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção, o relator registrou que a diretriz da formação dessa instituição seria o não-atrelamento a casais heteroafetivos ou a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Realçou que família seria, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada, o que a credenciaria como base da sociedade (CF, art. 226, caput). Desse modo, anotou que se deveria extrair do sistema a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganharia plenitude de sentido se desembocasse no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família, constituída, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade (CF, art. 226, § 3º: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento"). Mencionou, ainda, as espécies de família constitucionalmente previstas (art. 226, §§ 1º a 4º), a saber, a constituída pelo casamento e pela união estável, bem como a monoparental. Arrematou que a solução apresentada daria concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da proteção das minorias, da não-discriminação e outros. O Min. Celso de Mello destacou que a conseqüência mais expressiva deste julgamento seria a atribuição de efeito vinculante à obrigatoriedade de reconhecimento como entidade familiar da união entre pessoas do mesmo sexo.
Por sua vez, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, Presidente, embora reputando as pretensões procedentes, assentavam a existência de lacuna normativa sobre a questão. O primeiro enfatizou que a relação homoafetiva não configuraria união estável — que impõe gêneros diferentes —, mas forma distinta de entidade familiar, não prevista no rol exemplificativo do art. 226 da CF. Assim, considerou cabível o mecanismo da integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso Nacional lhe dê tratamento legislativo. O segundo se limitou a reconhecer a existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional (CF, art. 226, § 3º), sem se pronunciar sobre outros desdobramentos. Ao salientar que a idéia de opção sexual estaria contemplada no exercício do direito de liberdade (autodesenvolvimento da personalidade), acenou que a ausência de modelo institucional que permitisse a proteção dos direitos fundamentais em apreço contribuiria para a discriminação. No ponto, ressaltou que a omissão da Corte poderia representar agravamento no quadro de desproteção das minorias, as quais estariam tendo seus direitos lesionados. O Presidente aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação. Evidenciou, ainda, que a presente decisão concitaria a manifestação do Poder Legislativo. Por fim, o Plenário autorizou que os Ministros decidam monocraticamente os casos idênticos." (destaques acrescidos).
Como já escrevi em texto anterior, "O resultado (unânime) não deixa dúvidas sobre o que ficou decidido, embora o Acórdão ainda não haja sido publicado, mas dificilmente trará alguma novidade".
Pincemos do que está transcrito antes:
a)A norma constante do art. 1.723 do Código Civil não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal;
b)excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. (.....) esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas conseqüências da união estável heteroafetiva;
c)haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher:
a)de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não.
d)liberdade do mais largo espectro ante silêncio intencional da Constituição. (....) total ausência de previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a incidência da regra de que "tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido";
e)liberdade para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea;
f)preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Ao levar em conta todos esses aspectos, indagou se a Constituição sonegaria aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união — realidade há muito constatada empiricamente no plano dos fatos —, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação;
g)não-atrelamento a casais heteroafetivos ou a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa;
h)isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos;
i)as espécies de família constitucionalmente previstas (art. 226, §§ 1º a 4º), a saber, a constituída pelo casamento e pela união estável, bem como a monoparental;
j)a existência de lacuna normativa sobre a questão. (Min. Lewadowski) enfatizou que a relação homoafetiva não configuraria união estável — que impõe gêneros diferentes —, mas forma distinta de entidade familiar, não prevista no rol exemplificativo do art. 226 da CF. Assim, considerou cabível o mecanismo da integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso Nacional lhe dê tratamento legislativo;
k)(Min. Gilmar Mendes) se limitou a reconhecer a existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional (CF, art. 226, § 3º);
l)(Min. Peluso) aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação.
3.Conclusões (algumas)
3.1.O Supremo Tribunal Federal não disse que pessoas do mesmo sexo podem se casar civilmente. Veja-se em (g) e (h) que há uma declaração expressa quanto ao não atrelamento a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; apenas proclama a isonomia entre casais heteroafetivose pares homoafetivos (note-se o emprego de casais, para heterossexuais, e de pares, para homossexuais).
3.2.E que o CCB não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal (a).
3.3.Conforme (b), a decisão visa a tornar claro que nada deve impedir o reconhecimento daunião contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexocomo entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.
3.4.Esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas conseqüências da união estável heteroafetiva (b).
3.5.De acordo com (c), (d) e (e), há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre mulher e homem:
a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica;
b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e
c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não.
Ademais, cuida-se da liberdade para dispor da própria sexualidade, inserto no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, com respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
E, por fim, essa é uma liberdade do mais largo espectro, entendendo ter havido, e permanecer havendo, um silêncio (intencional?) da Constituição, pois registra-se uma total ausência de previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual, possibilitando a incidência da regra de que "tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido".
3.6.Deve se dar preponderância à afetividade sobre a biologicidade. A nossa Constituição "Cidadã" (nas palavras inspiradas de Dr, Ulysses Guimarães ao promulgá-la, em 05/10/1988) não pode sonegar aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação, destacando tratar-se de uma "realidade há muito constatada empiricamente no plano dos fatos" (f).
3.7.E, finalmente (j), a existência de lacuna normativa sobre a questão, que o STF procurou suprir (uma das várias competências do Poder Judiciário), mas enfatizando que a relação homoafetiva não configuraria união estável (pois esta espécie de família constitucionalmente prevista – veja-se (i) – impõe gêneros diferentes), constituindo, portanto, forma distinta de entidade familiar não prevista no rol exemplificativo do art. 226 da CF. O STF entendeu cabível o mecanismo da integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídasaquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso Nacional lhe dê tratamento legislativo.
Em suma, a decisão do Supremo não criou qualquer nova obrigação nem diminuiu as anteriormente existentes. Quem era heterossexual, e estava satisfeito com isso, pode continuar. Quem era homossexual e se sentia vítima de preconceitos ou discriminação não precisa mais se esconder em guetos ou manter sua preferência sexual em sigilo, a menos que queira ou lhe convenha.
Tudo o mais são especulações ou preocupações precoces, potencialmente infundadas. Ou não.