RESUMO: O texto se propõe a confrontar as ideias do jurista brasileiro Luis Roberto Barroso com as do jurista norte-americano Richard Posner em relação a apreciação pelo Poder Judiciário de políticas públicas de competência do Poder Executivo, especialmente as voltadas para o direito constitucional à saúde. Cria situações imaginárias, mas se mantém fiel às idéias de ambos estudiosos tentando, com isso, realizar um debate pontual sobre questões específicas apresentadas por Barroso e Posner.
Palavras-Chave: Debate. Imaginário. Luis Roberto Barroso. Richard Posner. Poder Judiciário. Políticas Públicas. Direito à Saúde.
ABSTRACT: The text intends to confront the ideas of the Brazilian jurist Luis Roberto Barroso with the American jurist Richard Posner in the consideration , by the Judiciary , of the public policy competence pertinent to executive branch, especially those designed for the constitutional right to health. It Creates imaginary situations, but remains true to the ideas of both studious trying, with this, to accomplish a debate on specific issues submitted by Barroso and Posner.
Key-Word: Debate. Imaginary. Luis Roberto Barroso. Richard Posner. Judiciary. Public Policy. Right to Health.
SUMÁRIO: Apresentação. 1. A Escolha dos Debatedores. 2. O Grande Debate Imaginário; 2.1 Preparativos; 2.2 O Debate; 2.3 Depois do Fim. Referências
APRESENTAÇÃO
A discussão acerca da concretização judicial do direito constitucional à saúde está longe de ter fim. Tanto o Supremo Tribunal Federal (STF), como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm encontro marcado com este debate. Isso é bom para o país, pois permite a fixação das diretrizes que devem ser seguidas por todo o Judiciário.
O Professor Eric C. Christiansen tem se dedicado, nos Estados Unidos, ao estudo acerca do direito à saúde, especialmente quanto à realidade da África do Sul. Ele realiza inúmeras pesquisas sobre a atuação da Corte Constitucional sul africana na determinação de fornecimento de medicamentos contra a AIDS. O Professor Eric nos diz que "a abordagem da Corte ajuda a evitar demandas fragmentadas e em série concernentes a circunstâncias similares, e também permite à Corte exigir a melhoria dos programas de governo, mesmo quando não haja remédio individual adequado" [01]. Daí a vantagem de o STF e o STJ ingressarem nessa discussão tentando, por meio dela, estabelecer critérios gerais utilizáveis em situações que girarem em torno das variadas formas de concretização do direito constitucional à saúde.
O STF reconheceu a repercussão geral da controvérsia relativa à obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo [02] e ainda não apreciou o mérito do caso. Até agora tudo o que foi feito, em regra, foi em sede precária, resultado da mera negativa de suspender decisões tomadas pelo Judiciário, Brasil à fora.
O STJ definiu como tema representativo da controvérsia na sistemática dos recursos repetitivos a questão referente ao fornecimento de medicamento necessário ao tratamento de saúde, sob pena de bloqueio ou seqüestro de verbas do Estado a serem depositadas em conta-corrente [03].
Outro tema escolhido cuida da obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria n. 2.577/2006 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais) [04].
Há ainda, também no STJ, a discussão sobre a legitimidade do Ministério Público para pleitear medicamento necessário ao tratamento de saúde de paciente, bem como acerca da admissão da União Federal como litisconsorte passiva necessária, nesta modalidade de demanda [05].
Vê-se que o momento é propício para se debater as maneiras factíveis de concretização do direito à saúde no Brasil, uma vez que, tanto no STF, como no STJ, temos a iminência da discussão definitiva acerca de pontos cruciais relativos ao tema.
Dentro dessa perspectiva, o presente texto tenta criar um debate imaginário travado por dois importantes teóricos que discorrem acerca da concretização judicial de políticas públicas, tudo com base nas ideias lançadas por ambos.
O caminho trilhado rumo à concretização do direito à saúde é variado. Todavia, não há duvidas de que um deles é o constitucional. Acreditando nisso, escolhi, como marco teórico um constitucionalista. Falaremos, no próximo tópico, sobre isso.
1. A ESCOLHA DOS DEBATEDORES
Nos Estados Unidos, um dos professores mais brilhantes na área constitucional é Lawrence Tribe, que leciona em Harvard. Tribe, sem dúvida, é um dos advogados mais influentes entre os que já atuaram perante a Suprema Corte norte-americana. Para Ronald Dworkin, se trata de um "extraordinário constitucionalista e advogado" [06].
Tribe é humilde. Muita gente passa a vida tentando criar algo de surpreendente. Tribe, que é surpreendente, costuma dizer que "não tem nenhuma teoria da jurisdição constitucional, e que tampouco pretende desenvolver coisa semelhante" [07].
No Brasil, há também um grande constitucionalista e advogado. Falo de Luís Roberto Barroso. Tenho-o como o Lawrence Tribe brasileiro.
Tribe nasceu em Xangai, em 1941. Barroso nasceu em Vassouras, em 1958. Tribe é professor de Direito Constitucional de Harvard. Barroso é professor de Direito Constitucional da UERJ. Tribe plagiou um colega [08]. Barroso não.
O Professor Barroso é presença cativa nos debates perante o STF, incluindo as causas mais polêmicas. Livre – Docente na UERJ, Doutor e mestre em Direito Constitucional, com passagem pela afamada Yale, é, sem dúvida, uma voz a ser sempre ouvida quando se trata de uma discussão constitucional.
Ele percorre o Brasil dando palestras, tem um conceituado escritório de advocacia, ministra aulas em cursos de mestrado e doutorado em universidades renomadas - no Brasil e no exterior -, tem um ritmo de publicações intenso e, como já disse, é presença cativa nos mais importantes debates realizados no STF.
Recentemente esteve na Faculdade de Direito da Universidade de Yale debatendo, com Bruce Ackerman, a transição do Brasil para um Estado constitucional de Direito, bem como as dificuldades enfrentadas pela democracia brasileira [09].
Ackerman tem uma estranha opinião sobre o exercício da jurisdição constitucional, especialmente no que diz respeito ao caso Brown v. Board of Education [10]. Todavia, não há dúvida de que debater com ele, em Yale, é uma honraria.
Por reputar o Professor Barroso um expert na área constitucional, e por achar esta área fundamental para a discussão acerca da reação judicial contra a falta de concretização do direito à saúde, utilizarei os elementos trazidos por ele. Irei me basear no trabalho de sua autoria: Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial.
Esse trabalho parece ter sido escrito no Brasil. Nem todos os são.
O artigo Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, foi escrito em Boston, nos Estados Unidos. Já o artigo Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, foi escrito em São Francisco [11], também nos Estados Unidos.
As conferências de Barroso costumam ser divertidas. Ele conta piadas, discorre sobre o tema de modo didático e faz coisas complexas parecerem simples. A historinha mais conhecida contada por ele é aquela na qual o professor diz que estuda direito constitucional desde quando esta área do conhecimento jurídico não conferia qualquer status a quem por ela se interessava: "Lembro do meu pai dizendo: ‘Meu filho, tem três coisas que você faz que não vão lhe levar para a frente. Pare de torcer para o Flamengo, pare de fumar e esqueça direito constitucional" – costuma rememorar o Professor Barroso em suas palestras. Dizem, contudo, que o Professor é vaidoso. Mas, como diria o Ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, que é um vaidoso confesso: "sou mais inteligente do que vaidoso, e afaste-se de mim este cálice" [12]. Talvez o mesmo se aplique a Barroso.
Por tudo isso, o Professor servirá como marco teórico a ser apresentado a respeito da concretização judicial do direito à saúde no Brasil.
Todavia, sinto a necessidade de um marco teórico estrangeiro. Dentro da temática constitucional no Brasil, escolhi o Professor Barroso. Entretanto, ainda deveria encontrar um doutrinador estrangeiro para que esse debate ganhasse um revestimento teórico internacional.
Há um outro jurista que me faz lembrar, nas suas conferências, o Professor Barroso. Esse jurista é norte-americano. Dotado de um raciocínio muito rápido, ele faz de suas apresentações verdadeiros espetáculos de ironia, sarcasmo, criatividade e demonstração de preparo intelectual. Falo de Richard Posner.
Posner é juiz federal. No plano acadêmico, formou-se em letras na mesma universidade na qual o Professor Barroso fez o seu L.L.M: Yale. A formação jurídica de Posner veio de Harvard. Ele é Professor na Universidade de Chicago.
As linhas de pesquisa, estilo de trabalho e formação jurídica de Barroso e Posner são diversas. Barroso caminha pelo direito constitucional. Posner, apesar de também discorrer muito sobre esta área, o faz, quase sempre, com os olhos na economia. As opiniões nas temáticas cotidianas do constitucionalismo são diferentes. Um debate entre ambos seria uma apoteose.
Pensei como poderia ser o debate. Ambos discorreriam a respeito da judicialização de políticas públicas, em geral, e, também, acerca da formulação de políticas públicas da saúde que são arrastadas para os tribunais.
Esse debate nunca aconteceu. Mas eu queria que ele ocorresse. Em razão disso, colhi um texto do professor Barroso sobre o qual já fiz referência e estudei o pensamento de Posner registrado em dois livros de sua autoria que ganharam recentemente tradução no Brasil. São eles: Direito, Pragmatismo e Democracia [13]; e Problemas da filosofia do direito [14].
Cotejando o pensamento de ambos, irei confrontá-los. É fato que um ou outro argumento contraposto foi escolhido a dedo com a finalidade de forçar, ao máximo, a ideia de confrontação. Todavia, como todos os trechos foram retirados de textos por eles escritos, há, em verdade, a contraposição fiel das idéias do Professor Luis Roberto Barroso e do Professor Richard Posner, fazendo com que tenhamos um debate imaginário entre esses dois juristas.
Preciso que entendam que apesar de os adereços serem fictícios, tais como o local onde o debate teria se realizado, as piadas contadas por um e pelo outro ou a roupa que vestiam, as ideias confrontadas são fidedignas.
Vamos aos preparativos do debate.
2. O GRANDE DEBATE IMAGINÁRIO
2.1 Preparativos
Inicialmente, tínhamos de definir onde aconteceria. Nisso, Barroso e Posner concordavam. Ambos escolheram um local onde se sentiam à vontade e que freqüentavam constantemente. Achavam que um tema dessa envergadura deveria ser discutido num local reputado por eles como sério. Acho que imaginavam um local que fosse, para os dois, como sua própria casa.
Ficou definido que o debate seria nos Estados Unidos. Mas onde?
Barroso escolheu Yale. Achou que seria um retorno em grande estilo, uma vez que foi lá onde ele fez o seu mestrado. Posner não concordou. Ele preferia que a discussão ocorresse no auditório da Universidade de Chicago, onde dá aula por meio período. Barroso não aceitou que fosse em Chicago.
Nesse momento, lembrei do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil, da Ação que questionava o monopólio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos em explorar os serviços postais.
Após o placar de 5 x 5, Barroso, patrono da causa, se dirigiu à tribuna e iniciou uma questão de ordem a respeito do que ele chamava de "empate". Imediatamente, a Ministra Ellen Gracie respondeu: "Não há empate!", no que o Professor Barroso, rapidamente, concertou: "Eu falei ‘impasse’" [15]. Não se dá uma resposta desta sem se ter um raciocínio incrivelmente rápido.
A definição quanto ao local onde se realizaria o debate estava igual ao julgamento da Ação do monopólio postal dos Correios brasileiros: havia um impasse.
Sugeri, então, uma saída honrosa. Faríamos o debate em Harvard. Não tinha como dar errado. Posner era formado em direito por lá e Barroso acabara de concluir o programa como Visiting Scholar na renomada universidade.
Formulado o convite, ambos concordaram. "Tudo certo" - pensei. Nada certo. Quem acabou com a conversa foi um filósofo prestigiado que não concordava com a presença de Posner em Harvard. Refiro-me a Ronald Dworkin.
Posner havia me advertido sobre o que seria possível encontrar nos egos acadêmicos nos Estados Unidos. Lembro de ele ter me dito que "Sócrates estava errado ao pensar que as pessoas são egoístas e cruéis só porque são ignorantes. Ninguém familiarizado com as universidades cometeria o erro de Sócrates. A educação é uma coisa boa, mas não melhora o caráter" [16].
Eu estive, ficticiamente, com Dworkin em Nova Iorque. Achei-o bem exótico, especialmente quando seus cabelos passaram a cobrir praticamente todo o olho direito enquanto ele falava asperamente sobre Posner. Foi uma decepção aquele encontro. Não sabia que, no mundo acadêmico, professores falam mal uns dos outros. Achei que todos fossem amáveis, generosos e prestativos entre eles. Como é no Brasil.
Dworkin disse que as conferências de Posner eram, de fato, "divertidas, impetuosas, e picarescas" [17], mas que, contudo, as achava "confusas, cheias de digressões, referências e insultos que vêm e que não vêm ao caso" [18].
Ele disse, em referência a Posner, que "os argumentos que ele apresenta em defesa de suas teses principais são espetacularmente malsucedidos" [19]. Dworkin estava possesso. Falou, em voz alta, que "os argumentos de Posner estão a serviço de um movimento antiteórico populista que hoje é poderoso na vida intelectual norte-americana – a desastrosa concepção de ciência sobre a qual ele se debruça ao longo de sua argumentação é apenas mais um exemplo dessa tendência" [20].
Ao final da reunião, antes que eu lhe estendesse a mão, Dworkin resmungou: Richard Posner! Ora! "Um juiz preguiçoso, que escreve um livro antes do café-da-manhã, decide vários casos antes do meio-dia, passa a tarde dando aulas na Faculdade de Direito de Chicago e faz cirurgia do cérebro depois do jantar" [21]. O filósofo norte-americano fechou questão: o debate não ocorreria em Harvard.
Quando comentei o encontro com Posner ele se mostrou profundamente triste. Parecia decepcionado e magoado. Falou que achava muito estranho os comentários do Professor Dworkin. Posner me disse que, no seu artigo intitulado Bush v. Gore as Pragmatic Adjutication, que aparece em A Badly Flawed Election: Debating Bush v. Gore, ele havia feito questão de "agradecer a Ronald Dworkin, por sugerir que eu enfatizasse os aspectos pragmáticos da minha percepção do caso e por suas críticas ao artigo" [22].
Posner estava realmente triste. Ele disse que por mais que perdoasse Dworkin, ele jamais sairia da sua triste condição: "Dworkin é um detrator do pragmatismo legal [23]. Mas creio que ele está certo ao ver o pragmatismo como um desafio à sua postura jurisprudencial" [24] – disse Posner.
Mesmo assim, um fato estava diante de mim: não tínhamos um lugar para realizar o debate.
Lembrei que, numa das conversas com o Professor Posner, ele me interrompera para pedir à sua secretária que lhe trouxesse uma bebida. Quando a secretária entrou na sala, o que tínhamos era um copo grande de leite. Posner bebeu e, ao final, limpou o bigode de leite que ficou sobre o seu lábio superior.
Recordei que o pai do Professor Barroso era um homem do interior, proprietário de uma fazenda próxima a Vassouras, em Miguel Pereira, no Estado do Rio de Janeiro. Ele é membro aposentado do Ministério Público do Rio de Janeiro. O Professor Barroso costumava visitá-lo e se sentia muito bem naquele ambiente rural.
Veio, daí, a grande ideia!
Senti que eles queriam sair daquele eixo formado pelos melhores centros de referência em ensino jurídico dos Estados Unidos. Nada daquele ambiente inglês de Boston, ou a loucura de Nova Iorque ou o poder que há em Washington. O ideal seria um lugar que contasse com os ares respirados por Posner e Barroso em seus momentos de informalidade.
Leite e vacas. Esses seriam os temperos daquele duelo de gigantes.
Sugeri a cidade de Madison, no Estado de Wisconsin.
Wisconsin é o maior produtor norte-americano de leite. É próximo a Chicago, logo, bastaria o Professor Richard Posner pegar o trem ou então, caso preferisse ir de carro, seguir 55 milhas pela interestadual I-94. Ele estaria lá rapidamente.
Como o Estado de Wisconsin também tinha um dos maiores rebanhos de gado bovino do país, esse ar poderia dar ao Professor Barroso a mesma sensação que sentia ao visitar seu pai na fazenda que ele possuía em Miguel Pereira, no Rio de Janeiro.
Em relação a Barroso, não teria problema. Ele estava hospedado em Boston (desde sua atuação como Visiting Scholar em Harvard) e poderia ir rapidamente.
Fiz o convite. Ambos ficaram surpresos, mas reagiram bem aos incentivos que lhes dei ao falar do leite e do rebanho bovino do Estado de Wisconsin.
Estava tudo resolvido.
No dia do debate, o Professor Posner apareceu com o corpo esguio, cabeça calva, óculos grandes e com uma armação pesada à frente dos olhos, trajando um terno barato tendo, por dentro, uma camisa velha (aquelas que têm botões para fixar a ponta da gola na própria camisa).
Seus olhos eram azuis (ou verdes?) [25]. Ele era muito magro. Posner veio sozinho. Não trouxe nem sua esposa, Charlene, nem sua gata, Dina.
Já o Professor Barroso parecia ser o inverso. Nada de corpo esguio, careca ou óculos. O terno era impecável e a gravata certamente tinha custado uma fortuna. Ela era amarela com estampas e parecia ser Ermenegildo Zegna. A barba estava impecavelmente bem feita. Fiquei orgulhoso em perceber como os professores brasileiros são elegantes.
Estavam lá! Richard Posner e Luís Roberto Barroso, frente à frente, prontos para iniciar suas discussões acerca das políticas públicas e o Poder Judiciário.
Vamos ao debate.
2.2 O Debate
O Professor Barroso iniciou sua fala afirmando que "o estudo que se segue procura desenvolver uma reflexão teórica e prática acerca de um tema repleto de complexidades e sutilezas" [26].
Nem bem iniciou sua frase, Posner o interrompeu pedindo que Barroso não sugerisse, como saída honrosa para esse caso, a atuação do juiz Hércules de Dworkin. "Hércules é uma quimera [27]" – disse ele.
Barroso não respondeu. Pareceu não entender aquela intervenção - para os nossos padrões tropicais repletos de ‘data venia’ - rude. Ele, então, deu continuidade à sua exposição.
Segundo o Professor "o sistema (da judicialização da saúde) começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos". Isso porque, "no limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas" [28].
Ele também afirmou que em muitos casos das questões chamadas por ele de ‘judicialização da saúde’, "o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados" [29].
Na seqüência, disse que "quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres" [30].
Nesse ponto, o Professor Barroso parecia não ter a exata dimensão do que tem ocorrido no Brasil.
Uma anciã pleiteou fraldas geriátricas porque não conseguia reter sua evacuação [31]. Mães pobres de crianças com síndromes graves tentam alcançar a cura para seus filhos [32]. Um idoso diabético não teve acesso a um remédio que constava expressamente na lista de medicamentos fornecidos pelo SUS no Estado do Rio Grande do Norte [33]. Em Sobral, no Ceará, mesmo após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão do caos nos manicômios do município [34], recém nascidos eram expostos a bactérias mortais [35]. No Piauí, pessoas morriam à espera de atendimento médico junto ao SUS pelo fato de não terem sido cadastradas no Sistema no Estado do Piauí, mas em outros Estados [36].
Parece que a maioria que bate as portas do Judiciário tentando ver garantido o direito à saúde não compõe a classe média.
Outro ponto que está à caça de investigação empírica é a afirmação de que os casos de concretização judicial do direito à saúde têm a autoria daqueles que, segundo as palavras do Professor Barroso, "possuem acesso qualificado à Justiça", "por poderem arcar com os custos do processo judicial".
No caso do fornecimento de medicamentos de combate à AIDS, por exemplo, o próprio Ministério da Saúde afirma que "são as organizações não-governamentais com assessoria jurídica as principais responsáveis pelo ajuizamento das ações individuais visando o acesso aos medicamentos e exames para o tratamento do HIV/AIDS" [37].
A atuação do Ministério Público também é destacada pelo Ministério da Saúde: "Vale destacar aqui também a atuação do Ministério Público (MP), ator importante da reivindicação dos direitos dos portadores de HIV/AIDS, seja como autor de ações civis públicas relevantes, seja como fiscal da lei, nas ações em que se manifesta. São do MP ações civis públicas fundamentais, por exemplo, buscando o acesso ao exame de genotipagem e ao exame rápido" [38].
Uma investigação quantitativa provaria que o Ministério Público, a Defensoria Pública e assessorias jurídicas de entidades não-governamentais voltada para a defesa de grupos vulneráveis, ocupam boa parte dos casos desta natureza. Não tenho dúvidas de que é possível refutar a afirmação do Professor Barroso.
Barroso disse ainda que "havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção" [39].
Nesse ponto, Posner reagiu. Foi sua segunda intervenção. Disse que não fazia sentido o que Barroso estava falando. Falou mansamente, como quem tinha acabado de pedir uma xícara de café. Esse é o estilo de Posner. Barroso silenciou.
Na seqüência, Posner disse que "o juiz que concebe seu papel nos casos difíceis como o de um formulador de políticas públicas, e não o de canal de decisões sobre políticas públicas tomadas em outras partes do sistema político, não precisa, a esse propósito, ser um ativista judicial" [40].
O Professor Barroso insistiu na sua afirmação segundo a qual "havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção" [41], mas Posner continuou afirmando que "a autoconstrição judicial, no sentido de hesitação em derrubar as decisões de outros ramos do governo, pode ser parte da concepção que o juiz tem da boa sociedade" [42].
Posner sabia do que estava falando. Ele se voltou para a postura de autocontenção judicial quando o debate ingressa na formulação de políticas públicas.
Ele tentou demonstrar que não é a ousadia ou a timidez judicial que determinará o acerto da decisão do julgador. Para Posner "a autoconstrição judicial é uma teoria política, e não um resultado de um raciocínio jurídico; não pode ser deduzida a partir dos materiais jurídicos ou, de outra maneira, rigorosamente (ou mesmo de modo bastante convincente) deles derivada. Esses materiais podem determinar quão ampla é a área de discricionariedade do juiz, mas não irão determinar quão ousado ou tímido o juiz deve ser nessa área ao tomar decisões que incomodem outros segmentos do governo" [43].
Olhando da platéia, me pareceu que o Professor Barroso tentava, na verdade, sugerir que a postura de autocontenção diante de casos devidamente previstos pela legislação e pela Administração Pública evitaria excessos que trariam efeitos deletérios para o sistema de saúde pública. Não achei que estava falando bobagem. Mas o Professor Posner não recebeu bem a colocação.
Ainda sem deixar o Professor Barroso falar, Posner afirmou: "Outras maneiras de tentar estabilizar a doutrina jurídica incluem o princípio da autoconstrição do juiz, as regras que limitam as circunstâncias em que os juízes se consideram livres para anular casos anteriores (isto é, o stare decisis) e a conversão de testes de múltiplos fatores em fórmulas ou algoritmos" [44].
Olhando para o Professor Barroso - que balançava a cabeça afirmativamente como que concordando com o que ouvia – Posner arrematou sua fala dizendo: "Nenhum desses artifícios irá fechar totalmente a área aberta, e todos se baseiam em juízos sobre políticas públicas que podem ser e são contestados" [45].
O Professor Barroso decidiu ir para o tudo ou nada. O tema suscitado por ele foi a análise econômica do Direito. Imagina só debater análise econômica do Direito com Richard Posner.
Ao me ver ali, ouvindo um debate sobre direito à saúde que descambaria para a análise econômica do Direito, pensei em voz alta: "Friedrich Hayek deve estar se remexendo no túmulo". Isso porque o filósofo, para mim até então, não concordava com a análise econômica do direito [46].
Posner viu meus lábios mexendo. Impressionante!
Ele imediatamente olhou e falou, diante de todos: "Seria precipitado descrever Hayek como um ‘inimigo’ da análise econômica do direito, pois o máximo que disse até agora é que ele rejeita uma análise econômica que diz que os juízes devem usar a economia para ajudá-los a decidir seus processos e, na proporção em que essa rejeição está baseada em fundamentos econômicos, isso só quer dizer que a dele é teoria econômica do direito diferente da de pessoas como eu" [47].
Fiquei espantado. E calado. Mas Barroso me salvou passando para o próximo ponto da discussão. Sou eternamente grato ao nosso constitucionalista. Ele me salvou evitando que eu fosse trucidado por Posner.
Barroso afirmou que "no contexto da análise econômica do direito, costuma-se objetar que o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aqueles que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde pública, como é o caso, por exemplo, das políticas de saneamento básico e de construção de redes de água potável" [48].
O Professor Posner respondeu dando uma estocada em Ronald Dworkin.
Ele disse que, nem mesmo Dworkin, que defende uma idéia sobre direito à saúde inaplicável no Brasil, pensa assim. Isso porque o filósofo norte-americano teria chamado de "erro flagrante" as instruções de um comitê do Oregon que queriam definir prioridades médicas que preferissem obturações dentais a apendicectomia, porque é possível obturar muitos dentes pelo preço de uma operação [49].
Em seguida, Posner afirmou que "o juiz de um caso difícil é mais um formulador de políticas públicas do que um advogado convencional e, dentro de sua esfera de liberdade ou discricionariedade, pode ser tão livre de regras quanto um legislador" [50].
Posner acabou com a ideia de separar formulação de políticas públicas do trabalho judicial. Ele, que é juiz federal, disse que diante de casos difíceis, a decisão do julgador não tem como não passar pela análise de políticas públicas. O resultado final seria, na verdade, uma escolha entre políticas públicas possíveis.
De acordo com Posner, "a decisão dos casos jurídicos difíceis é, muito frequentemente, uma forma de análise de políticas públicas, e não o produto de uma metodologia específica de raciocínio jurídico" [51].
O Professor Barroso retrucou afirmando que o "constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei. Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição" [52].
Posner refutou a ideia de democracia trazida por Barroso. Segundo ele, "nossa democracia tem mais a ver com apaziguar minorias eleitorais estrategicamente situadas e vociferantes do que agregar preferências por toda a população adulta" [53].
O Professor Barroso reiterou seu pensamento afirmando que "constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria" [54], mas Posner rebateu valendo-se da sua verve irônica: "Um ditador eleito é ainda um ditador, não um democrata. Os Estados Unidos forçaram a democracia à Alemanha no final da Segunda guerra Mundial; os governos formados sob esta coerção foram democracias verdadeiras, não obstante sua falta de raízes na soberania popular" [55].
Posner disse que há registros históricos indicando que o mundo não pára mesmo que não tenhamos uma democracia. Segundo ele, "entre o final da democracia ateniense no século IV a.C. e a ascensão do governo reunido em cidadelas na Nova Inglaterra, na América do século XVII, um período de 2000 anos, a democracia não fez parte de qualquer agenda política séria" [56].
Mas Barroso estava bem à vontade. De acordo com ele "o Chefe do Executivo e os membros do Legislativo são escolhidos pelo voto popular e são o componente majoritário do sistema. Os membros do Poder Judiciário são recrutados, como regra geral, por critérios técnicos e não eletivos" [57]. Em seguida, o Professor afirmou que "a idéia de governo da maioria se realiza, sobretudo, na atuação do Executivo e do Legislativo, aos quais compete a elaboração de leis, a alocação de recursos e a formulação e execução de políticas públicas, inclusive as de educação, saúde, segurança etc’ [58].
Posner pediu a palavra e disse: "O voto não é nem mesmo um método confiável de agregar preferências" [59].
Após tomar um gole de água natural (a marca era Polar), e ajustar seus óculos que já estavam na ponta do nariz, o Professor Posner disse: "O juiz deve fazer uma escolha entre políticas públicas, e a escolha é ditada pelos resultados do levantamento e da avaliação das conseqüências das opções alternativas: conseqüências para o Estado de Direito, para as partes, para a economia, para a ordem pública, para a civilização, para o futuro, em suma, para a sociedade" [60].
Nesse momento, o Professor Barroso sacou um lenço do bolso do seu terno e passou-o sobre a testa. Em seguida, devolvendo o lenço ao bolso, aproximou-se do microfone e interrompeu Posner dizendo: "Há ainda a crítica técnica, a qual se apóia na percepção de que o Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde" [61].
Posner retrucou afirmando que o argumento seria uma abordagem pedigree.
Barroso, retomando a palavra disse "o Poder Judiciário não tem como avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida. Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública" [62].
Posner, colocando os dentes para fora, riu e afirmou que Barroso defendia a abordagem pedigree. Pediu permissão para explicá-la.
Daí em diante teve início a explicação: "O argumento mais forte a favor da abordagem pedigree e contra uma abordagem pragmática ou ‘realista’ pode ser, ele mesmo, pragmático: os juízes não são suficientemente sagazes para tomar decisões sábias sobre políticas públicas, sopesando uma miríade de considerações conflitantes que incluem os argumentos do Estado de Direito contra o sopesar" [63].
Exatamente - disse o Professor Barroso, no que ouviu de Posner "Estou de acordo; e as regras realmente reduzem o ônus da reflexão" [64].
Barroso comentou que não havia divergência entre eles nesse ponto. Mas havia.
Posner disse que "a escolha não se dá entre decisões pouco sábias definindo políticas públicas e decisões sábias que aplicam regras. A sabedoria na aplicação de regras exige uma percepção de quando as regras expiram e (o que não é, necessariamente, outra questão) de quando seria um grave erro aplicar uma determinada regra ‘da maneira como ela está escrita’. A decisão de aplicar uma regra, e de como aplicá-la, é uma decisão sobre políticas públicas" [65].
Posner, então, perguntou qual seria a primeira alternativa que o Professor Barroso apontaria para a judicialização da saúde no Brasil. Barroso respondeu que "o Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos".
Dessa vez quem se mexeu na cadeira fui eu.
O que são medicamentos de eficácia comprovada? Seriam aqueles que curam? Os que põem termo à doença? Será que o conceito de cura não poderia abranger, também, melhoras nas condições de vida? Essa é uma pergunta fundamental, uma vez que, a depender da resposta a que se chegue, a situação do modelo de saúde pública no Brasil persistirá.
Vi que logo após o fim daquele memorável debate eu iria convidar o Professor Barroso para conhecer a Corte Constitucional da Colômbia.
Isso porque, em 1995 [66], a Corte, a partir de uma leitura ampla do conceito ‘cura’, adotou a tese segundo a qual esta "não necessariamente implica erradicação total dos sofrimentos, senão que envolve as possibilidades de melhoria para o paciente, assim como os cuidados indispensáveis para impedir que sua saúde se deteriore ou diminua de maneira ostensiva, afetando sua qualidade de vida" [67].
Em 2000, a Corte "estendeu os benefícios da prestação da saúde às atividades de instrução e educação no tratamento de reabilitação de menores deficientes" [68].
Em 2003 a Corte "reconheceu, dentro do conteúdo do direito à saúde do menor afetado por surdez, as terapias necessárias para sua integração à sociedade" [69].
A jurisprudência da Corte Constitucional colombiana tem "estendido estes benefícios também, a maiores de idade em situação de debilidade que, não obstante sua idade biológica os tornam maiores, de acordo com os médicos que os tratam, sua idade mental corresponde à de uma criança pequena" [70].
Quando terminei de raciocinar estava pensando alto novamente, igual como fiz com Posner ao lembrar de Hayek. Desta vez quem leu meus lábios foi o Professor Barroso. Ele me respondeu, mesmo eu estando na platéia e ele em cima do tablado onde o debate estava ocorrendo.
Segundo Barroso, "exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito. Na América Latina, o caso da Colômbia é um dos mais significativos" [71].
Barroso tinha conhecimento da revolução judicial operada na Colômbia. Eu não estava pensando nada de novo para ele. Segundo o Professor - que continuava falando comigo em pleno debate que mantinha com Richard Posner - "algumas das mais importantes hipóteses de judicialização da política na Colômbia envolveram: a) luta contra a corrupção e para mudança das práticas políticas; b) contenção do abuso das autoridades governamentais, especialmente em relação à declaração do estado de emergência ou estado de exceção; c) proteção das minoriais, assim como a autonomia individual; d) proteção das populações estigmatizadas ou aqueles em situação de fraqueza política; e e) interferência com políticas econômicas, em virtude da proteção judicial de direitos sociais". [72]
Prometi que não falaria, e nem pensaria, mais nada até o final daquele debate.
As demais alternativas propostas pelo Professor Barroso, foram: b)O Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no Brasil; c)O Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de menor custo; e d)O Judiciário deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida [73].
Há casos, no Judiciário, de autocontenção quando o que está em debate é a concretização do direito constitucional à saúde. Um juiz da 7a. Vara da Fazenda Pública de São Paulo, ao indeferir a antecipação de tutela pleiteada para obtenção de medicamentos e realização do exame de genotipagem, registrou: "(...) não há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Todos somos mortais. Mais dia menos dia, não sabemos quando, estaremos partindo, alguns, por seu mérito, para ver a face de Deus. Isto não pode ser tido por dano [74]".
No caso acima, autocontenção judicial maior é impossível. Não creio ser esta a postura exigida pela Constituição Federal de 1988 quando o que está em discussão é a concretização de direitos sociais.
Barroso defendeu que alguns pontos da discussão acerca do esforço judicial para a concretização do direito à saúde deveriam se dar por meio de discussões coletivas ou abstratas, que exigiriam "um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas (o que em regra não ocorre, até por sua inviabilidade, no contexto de ações individuais) e tornará mais provável esse exame, já que os legitimados ativos (Ministério Público, associações etc.) terão melhores condições de trazer tais elementos aos autos e discuti-los" [75].
Posner não só concordou com a proposta como a encampou afirmando que "em todos os níveis do Judiciário, os juízes exercem poder discricionário, o que quer dizer que dois juízes diferentes, ao encararem a mesma questão, podem chegar a diferentes resultados sem que nenhum dos dois seja reformado" [76].
Na seqüência, Barroso continuou afirmando que discutindo coletiva e abstratamente o tema no Judiciário, sua atuação não "tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal. Com efeito, uma decisão judicial única de caráter geral permite que o Poder Público estruture seus serviços de forma mais organizada e eficiente" [77].
Após Posner congratular-se com Barroso acenando com a cabeça em tom afirmativo, ele emendou: "o destino de um litigante pode ser determinado pela ocasionalidade com a qual um juiz ou juízes calham de se pronunciar nos sucessivos estágios do seu processo, conforme este vai seguindo seu caminho pelo sistema judicial. Isso é lamentável e até mesmo aterrorizante" [78].
Nesse momento, o debate mais parecia um encontro de compadres. Mas o argumento de ambos não me convenceu.
Lembrei-me do que escreveu o Professor Eric. C. Christiansen, referindo-se à realidade da África do Sul no esforço judicial de concretização do direito à saúde para combate à AIDS. Segundo o professor: "Focar mais no programa governamental do que na parte prejudicada, gera a possibilidade de que a Corte não proveja justiça ao indivíduo que pleiteie perante ela" [79]. Isso porque, para ele, "Na ausência de remédios individuais, o autor deve esperar pela modificação do programa governamental antes de ter suas necessidades atendidas, isto é, antes que seus direitos constitucionais sejam concretizados". Eric prevê a consequência de tal postura: "Essa é uma conseqüência pertubardora da jurisprudência à luz da aplicação da Constituição sul-africana, que visa fomentar a cultura dos direitos humanos" [80].
Foi uma lembrança passageira. Nem bem eu me deliciava com ela, Posner já retomava a discussão.
O derradeiro golpe de Posner foi certeiro. Ele pensou que havia, nos Estados Unidos, a tradição de escrever notas de rodapé nos acórdão da Suprema Corte. A mais famosa nota de rodapé da história dos Estados Unidos seria a Nota de Rodapé nº 4, Carolene, nome dado aos comentários feitos pelo justice da Suprema Corte norte-americana, Harlan Fiske Stone, no caso United States v. Carolene Products Co, segundo a qual temas voltados para a regulação econômica não deveriam ser apreciados pelo Judiciário, mas pelo Executivo e Legislativo.
Posner continuou pensando que todas as notas de rodapé que havia lido, nenhuma seria tão conclusiva, franca e arrebatadora quanto a Nota de Rodapé que ele havia lido no trabalho do Professor Barroso.
O trabalho era repleto de notas de rodapé. Tinha 67. Se Posner tivesse revelado o seu pensamento, certamente Barroso indagaria qual daquelas notas ele achava conclusiva, franca e arrebatadora.
Dando um palpite, talvez Barroso achasse que era a nota de rodapé nº 63. Nela, ele faz referência à obra de Richard Posner intitulada Economic analysis of law.
Posner, rindo, diria que não era aquela nota, que se tratava de um livro que ele havia escrito há quase 20 anos.
A Nota de Rodapé à qual Posner se referia era a Nota de Rodapé nº 1 do texto de Barroso, na qual estava escrito: "Trabalho desenvolvido por solicitação da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro" [81].
Dentro da cabeça de Posner, conclusividade, franqueza e arrebatamento maiores, seria impossível. Mas isso ficou só no pensamento. Jamais foi revelado.
2.3 Depois do Fim
Ao final do debate, os debatedores se cumprimentaram e cada um saiu numa direção. Posner certamente deve ter ido pegar o seu trem. Carregava umas folhas consigo e dois livros. Barroso, por sua vez, acenou para seu motorista que saiu rapidamente para posicionar o seu carro à frente da saída principal.
Eu simplesmente não acreditei que tinha participado de um momento tão apoteótico. Richard Posner e Luís Roberto Barroso debatendo a judicialização das políticas públicas de saúde.
Inesquecível!