RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a contribuição da hermenêutica filosófica para a concretização do princípio democrático, haja vista a crise da democracia representativa. Para tanto faremos uma breve exposição sobre a evolução da hermenêutica, da tradicional à filosófica. Em seguida procuraremos realizar uma breve análise acerca do conceito de democracia e iremos tecer críticas à democracia representativa. Por fim, com base no julgamento do STF no que toca à união homoafetiva no Brasil, procuraremos relacionar a hermenêutica filosófica à manifestação do princípio democrático, notadamente em razão da importância da linguagem e do diálogo.
ABSTRACT: This article aims to demonstrate the contribution of philosophical hermeneutics to the realization of the democratic principle, given the crisis of representative democracy. For this is a brief presentation on the evolution of hermeneutics, of the traditional to the philosophical. Then try to make a brief review about the concept of democracy and we will make criticisms of representative democracy. Finally, based on judgments of the Supreme Court regarding the homoaffective union in Brazil, try to relate philosophical hermeneutics for expression of the democratic principle, especially because of the importance of language and dialogue.
PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica Filosófica – Democracia – União Homoafetiva – Linguagem
KEYWORDS: Philosophical Hermeneutics - Democracy - Homoaffective Union - Language
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Breves noções sobre Hermenêutica: 2.1. Breves apontamentos sobre a evolução da hermenêutica; 2.2. A Hermenêutica Filosófica – 3. Breves reflexões sobre uma Democracia em crise – 4. A Hermenêutica Filosófica e o STF: a recente decisão sobre a união homoafetiva e a democracia – 5. Considerações Finais – Referências
1 INTRODUÇÃO
Ver. Ouvir. Falar. Ler. Entender. Compreender. Enfim, viver. A vida nada mais é do que um emaranhado de sentimentos, sensações, descobertas, conceitos, pré-conceitos. A vida nada mais é do que uma eterna espera pelo amanhã, tendo o passado como lição ministrada. A vida nada mais é do que um estar junto, um pensar sobre, um escolher entre, enfim, um ser e estar livre. A vida nada mais é do que um constante aprender, um constante interpretar.
Quando pensamos em liberdade, estamos a pensar em ausência de amarras, ausência de limites. O único limite razoável é o alter, o nosso semelhante. Mas e quando o nosso semelhante é, na verdade, diferente? Diferenças podem existir de vários tipos. Mas e quando essa diferença os transforma em uma minoria? O que fazer em um país de regime democrático, ao menos conceitualmente, um governo da maioria, quando uma minoria vive à margem da Lei?
Estamos a nos referir aos milhares de parceiros homossexuais existentes no Brasil e que viviam de forma clandestina no que dizia respeito ao mundo jurídico, uma vez que seus direitos como pessoas humanas iguais a todas as outras não eram respeitados. O pior é que tal desrespeito partiu da própria Lei que, no caso, não reconheceu a união entre homossexuais como entidade familiar desde a edição do Código Civil de 2002.
Pois bem, a única saída seria a alteração dessa Lei. Entretanto, a quem cabia, constitucionalmente e por legitimidade democrática, tal mister, quedou-se inerte em relação ao tema. Mas e aquela minoria, ficaria entregue à própria sorte? A saída foi ler a Lei de forma diferente, não literal, adaptando o sentido da norma aos fatos da vida, à evolução dos valores sociais, oxigenando aquele enunciado normativo em descompasso com a vida, enfim, um fato social patológico, para citar o conceito proposto por Émile Durkheim [01]. Essa nova leitura nada mais foi do que o resultado de um processo interpretativo, em outras palavras, um processo hermenêutico.
Com a nova leitura do dispositivo legal, aquela minoria passou a ter seus direitos reconhecidos: nascia, jurídica e formalmente, uma nova forma de entidade familiar: aquela resultante de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. E o mais interessante: em nada se alteraram os direitos da maioria. Não seria esse o verdadeiro sentido da democracia, ou seja, não a vontade da maioria, mas o alcance do bem estar de todos, incluindo o de uma minoria? E qual o papel da hermenêutica nessa busca por um novo padrão de democracia?
Pretendemos, com o presente ensaio, refletir acerca do papel da hermenêutica filosófica no processo de fortalecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil, notadamente em face das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhecem direitos a minorias, especificamente a recente decisão referente às uniões homoafetivas. Para tanto, discorreremos sobre a evolução da hermenêutica de forma geral, sobre a hermenêutica filosófica, passaremos por uma breve noção sobre o conceito de democracia, a crise que entendemos atingí-la e, finalmente, apresentaremos uma leitura da decisão do STF à luz da hermenêutica filosófica.
Nosso foco será a hermenêutica filosófica, entretanto, para chegarmos até ela, imprescindível que façamos um pequeno retorno, mesmo que breve, às origens e ao significado do termo em estudo.
2 BREVES NOÇÕES SOBRE HERMENÊUTICA
2.1 Breves apontamentos sobre a evolução da hermenêutica
Inicialmente, façamos um pequeno esforço no sentido de conhecer as raízes etimológicas do termo hermenêutica. Segundo Richard Palmer [02], "As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por <<interpretar>>, e no substantivo hermeneia, <<interpretação>>."
Existem correntes que relacionam o termo hermenêutica à mitologia grega. O deus alado Hermes teria um papel de mensageiro, aproximando os deuses dos homens e realizando como que uma transmutação das mensagens dos habitantes do Olimpo. Afinal, a linguagem dos deuses não era completamente inteligível aos seres mortais e, assim, necessitava ser traduzida, ou melhor dizendo, interpretada. Daí a relação entre o termo hermenêutica e a atividade de interpretação. Confirmando a etimologia e a origem mitológica do termo, Palmer continua:
A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Esta palavra, o verbo hermeneuein e o substantivo herrmeneia, mais comuns, remetem para o deus-mensageiro-alado Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou vice-versa?). E é significativo que Hermes se associe a uma função de transmutação - transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender. [03]
Podemos dizer que, no início, a hermenêutica se encontrava essencialmente relacionada a métodos de interpretação e entendimento de textos escritos, notadamente os textos sagrados. Seria o que poderíamos chamar de Hermenêutica Tradicional, em diferenciação à Hermenêutica Contemporânea, como veremos adiante.
Ligada ao judaísmo, a interpretação dos textos bíblicos estava mais centrada na literalidade dos textos, na exegese, com o objetivo de se chegar ao entendimento das palavras de Deus. Como podemos averiguar, tal interpretação ainda não era tida como uma interpretação de cunho jurídico.
Para chegarmos ao marco histórico da interpretação com um viés jurídico, podemos tomar por empréstimo a pesquisa de Silvério Carvalho Nunes [04], quando o autor se refere à origem da Hermenêutica Tradicional e diz que " Teve sua origem remota no pandectismo, que compilou os fragmentos que deram origem ao Corpus Juris Civilis, compreendendo o Digesto (Pandectas), as Institutas, o Código e as Novelas."
Acerca da Hermenêutica Tradicional, Silvério Carvalho Nunes, como fruto de sua pesquisa, ainda nos mostra que:
Esta orientação interpretativa inclui variado número de escolas, em que prevalece o fetichismo da lei e a visão isolada do texto, sem sua correlação necessária com o ordenamento e a realidade social. Os intérpretes desta escola, qualquer que seja sua denominação, colocam-se de frente para o texto da lei e de costas para o fato social. Com isso, transformam a interpretação em mero silogismo abstrato distante da realidade. Não consideram o fato social, que é próprio da dinâmica do Direito. Terminam por transformar o ordenamento positivo em algo estático, eterno, imutável, incapaz de resolver os conflitos sociais na sua plenitude, que se avolumam, em escala geométrica, no interior da sociedade. Resulta do método uma interpretação álgida do texto legal. [05]
Vale neste ponto, a título de esclarecimento, destacar que Nunes se vale do conceito de fato social, entretanto, pensamos, num sentido diferente do definido pelo francês Émilie Durkheim [06]:
"[...] toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais."
Entendemos que o fato social a que se refere o jurista brasileiro é, na realidade, a vida real, ou seja, o comportamento prático de uma sociedade, enfim, os fatos da vida. Aí reside a grande crítica a tal fase da hermenêutica, qual seja a de desconsiderar a evolução da vida, da consciência das pessoas, dos valores. Enfim, o Direito não pode estar apartado das coisas da vida, afinal, o próprio Direito faz parte da vida.
Aquele que interpreta precisa estar inserido no contexto, ou seja, não pode ser apenas um espectador. Como ainda veremos neste breve ensaio, felizmente, a hermenêutica filosófica acabou por romper com a visão matemática e cartesiana da hermenêutica tradicional. Contra essa visão matemática e lógica da hermenêutica tradicional assim se pronunciou Luiz Rohden [07]:
O ser humano não pode ser reduzido a uma máquina ou a um simples animal comandado por seus genes, instintos, carências, condicionamentos, forças culturais. Na concepção de filosofia que se reduz a um conjunto de símbolos matemáticos não há espaço para a liberdade, a criatividade, a ética, a política, a metafísica. Uma concepção de filosofia que não leva a sério esses aspectos antropológicos deveria ser revista e ampliada; afinal, o homem não vive ‘apenas de pão’ [...]
Como fica claro, a arte da interpretação merecia uma radical mudança, não no sentido de se desconsiderar totalmente a hermenêutica tradicional, mas complementando-a, adaptando-a à realidade social, da qual o intérprete não poderia estar dissociado. Foi o que aconteceu com a introdução da Hermenêutica Filosófica no mundo da interpretação jurídica.
2.2 A Hermenêutica Filosófica
Como dito, a hermenêutica filosófica veio a complementar a hermenêutica tradicional, basicamente em face das limitações do raciocínio cartesiano e reducionista relacionados a esta última. Nas palavras de Luiz Rohden [08]: "A hermenêutica filosófica não se legitima pela mera oposição quixotesca ao reducionismo da filosofia moderna, mas ela nasceu e desenvolveu-se justamente também pela limitação desta."
Podemos dizer que o primeiro grande expoente da hermenêutica filosófica foi o filósofo e teólogo protestante alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Schleiermacher trouxe a grande contribuição de desvincular a hermenêutica da exclusiva interpretação de textos escritos, notadamente os religiosos, concedendo ao seu projeto hermenêutico um viés de universalidade. Segundo o filósofo alemão:
[...] a hermenêutica não deve estar limitada meramente às produções literárias; pois eu me surpreendo seguidamente no curso de uma conversação (familiar) realizando operações hermenêuticas, quando eu não me satisfaço com o nível ordinário da compreensão, mas procuro discernir como, em um amigo, pode se dar a passagem de uma idéia à outra, ou quando questiono acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que ele se expresse, sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro. [09]
A hermenêutica geral ou universal de Schleiermacher se dividiu em duas partes: a gramatical e a técnica, aí incluída a psicologia. [10] No que toca à parte gramatical, podemos dizer que nesse ponto o filósofo alemão acabou por lançar a semente de algo que, como veremos, representou o coração da hermenêutica filosófica como a trabalhamos hoje: a linguagem. E é o próprio Schleiermacher que nos dá esse sinal quando diz que: "A divisão principal, portanto, fica assim: primeiro a interpretação gramatical, depois a técnica. Gramatical sempre, porque obviamente no final tudo o que é pressuposto e tudo o que se encontra é linguagem". [11]
Com base em sua divisão conceitual da hermenêutica em duas partes, a gramatical e a técnica (ou psicológica), o projeto de Schleiermacher nos indicou que "para entender um texto, deve-se entabolar um colóquio como ele e, dessa forma, chegar ao fundo daquilo que suas palavras expressam de modo imediato [...]". [12]
Em tal colóquio com o texto, Schleiermacher entendia que assim se iria atingir a intenção do autor, considerado como o seu todo. Segundo os ensinamentos do teólogo alemão, a determinação desse todo se daria por dois caminhos, os quais seriam correspondentes à dúplice divisão de seu conceito hermenêutico. Pelo caminho gramatical ou objetivo, o todo seria o gênero literário do qual estivesse brotando o particular, ou seja, a passagem, a obra. Já pelo caminho técnico, subjetivo ou psicológico, a passagem ou a obra deveria ser vista como a ação daquele que é o autor, devendo a interpretação ter como ponto de partida o todo da vida do autor. [13]
Resumidamente, para Schleiermacher, a interpretação teria um caráter de universalidade, não estaria restrita a textos escritos, muito menos aos religiosos, e o método hermenêutico não se restringiria à matemática e lógica, importando uma identificação e contextualização da vida do autor, aí incluído o viés psicológico do projeto hermenêutico de Schleiermacher.
Outro grande representante da hermenêutica moderna, antes de chegarmos a Heidegger e, finalmente, a Gadamer, foi Wilhelm Dilthey (1833 - 1911). Resumidamente, o filósofo, psicólogo e pedagogo alemão, com amparo no historicismo, defendia que a compreensão de um texto dependia da compreensão do contexto histórico em que estivesse inserido o autor. Em outras palavras, não bastava apenas a compreensão com base na psicologia e vida do autor, deveria ser também investigado o contexto histórico no qual o autor estivesse inserido quando da produção de sua obra. Nesse sentido, podemos dizer que Dilthey chegou a complementar o pensamento de Schleiermacher.
Até agora verificamos que a interpretação, notadamente em Schleiermacher e Dilthey, esteve centrada na pessoa do autor, na compreensão do que o autor pretendeu transmitir, considerando sua vida, seus aspectos psicológicos e o contexto histórico em que estivesse inserido. E no que toca ao intérprete? O intérprete deveria manter uma posição externa, neutra, de observador, ou deveria se inserir no mundo que se desejasse interpretar? Pois bem, chegamos a Heidegger.
Martin Heidegger (1889-1976) foi um pensador alemão que trouxe enorme contribuição ao pensamento filosófico do século XX. Com a sua fenomenologia da existência, dedicou-se ao estudo do ser, ao qual chamou de Dasein. Influenciou sobremaneira o pensamento hermenêutico de Gadamer, como ainda se verá neste breve estudo.
Inicialmente, cabe ressaltar que o ponto principal no pensamento de Heidegger diz respeito à compreensão do ser, o Dasein como um ser no mundo, estar no mundo, ou seja, a infinitude do ser se relaciona com as diferentes condições de tempo e lugar a que se expõe tal ser no decorrer de sua história, de sua vida. A fenomenologia da existência se contrapõe à fenomenologia da essência ( o eidos, de Edmund Husserl [14]) basicamente no que toca à relação entre o ser e o tempo. Um exemplo para tentarmos esclarecer: para a fenomenologia da essência, um homem, em essência, é um ser humano; para a fenomenologia da existência, aquele mesmo homem, a depender do tempo e do espaço, poderá ser um pai, um avô, um marido, um aluno, um médico, ou seja, o ser no mundo dependerá das condições de tempo e espaço em que cada um esteja vivendo.
No que toca ao pensamento de Heidegger, quatro questões, que foram aproveitadas por Gadamer, hão de ser por nós destacadas: a questão da inserção do intérprete no mundo; a questão da visão prévia e concepção prévia; a questão da tradição e a questão do círculo hermenêutico.
Primeiramente vejamos a ideia de ser no mundo, de Heidegger, no sentido de que não há como dissociar o ser do mundo em que está inserido, dos valores sociais do grupo a que pertence. Uma análise do ser dissociado do mundo seria uma análise afeta à fenomenologia da essência, proposto por Husserl, e contraposta pela fenomenologia da existência, de Heidegger, conforme já dissemos e exemplificamos anteriormente.
Com relação à visão prévia e concepção prévia, no pensamento de Heidegger elas existem justamente pela inserção do ser no mundo. Não havendo como dissociar o ser do mundo, não há como isolar seu conhecimento prévio acerca daquilo que o cerca.
No que concerne à tradição, ela se encontra presente no pensamento de Heidegger no que diz respeito ao aspecto historicidade, pois o ser é conhecido a partir da linha dos acontecimentos de sua trajetória.
A questão concernente ao círculo hermenêutico foi uma das principais contribuições de Heidegger para a hermenêutica gadameriana. O intérprete possui uma pré-compreensão daquilo que vai procurar compreender. A compreensão se constitui a partir da tradição do intérprete (não só a história já vivida pelo intérprete, mas também a história sendo vivida, numa ideia de movimento, nunca de estaticidade). Como a vida é dinâmica e a sociedade também, ao atingir a compreensão, a pré-compreensão é trazida ao confronto com os fatos da vida. A partir daí, a pré-compreensão é mantida ou expandida, alargando o círculo hermenêutico. Luiz Rohden [15] assim resumiu seu entendimento acerca do círculo hermenêutico:
Se para os lógicos a circularidade da hermenêutica é viciosa e deve ser eliminada, para nós ela assume uma dimensão positiva e deve ser conservada, retificada e ampliada. O pré-conceito, a pré-compreensão podem ser retificados, ratificados e/ou ampliados, e o processo filosófico comporta uma circularidade inelutável que não é viciosa, porque não pretende esconder ou simplesmente confirmar os pré-juízos e pré-concepções, mas trazê-los à luz, no confronto com o real (sujeito, mundo), corrigindo-os e/ou alargando seus horizontes. Não é vicioso porque a hermenêutica não trata de problemas estritamente lógicos, mas está às voltas com a totalidade de sentido da existência humana, das ciências.
Como já tivemos a oportunidade de dizer, outro filósofo alemão seguiu a linha heideggeriana e se despontou como o grande nome da hermenêutica filosófica do século XX – Hans-Georg Gadamer. Gadamer viveu de 1900 a 2002 e teve em sua obra Verdade e Método, publicada na Alemanha em 1960, o grande marco de sua hermenêutica filosófica. Como dito, alguns pontos do pensamento de Gadamer são advindos do pensamento fenomenológico existencialista de Heidegger: a questão da inserção do intérprete no mundo, a questão da visão prévia e concepção prévia, a questão da tradição e a questão do círculo hermenêutico.
No entanto, alguns pontos inseridos por Gadamer em seu modelo de hermenêutica filosófica merecem ser comentados, mesmo que de forma sucinta: a fusão de horizontes, o enquanto hermenêutico e a experiência da linguagem, talvez o ponto mais importante da hermenêutica filosófica gadameriana e que mais irá nos interessar nestas breves reflexões.
Quando o intérprete se põe a interpretar algo, sua pré-compreensão, ou seja, seu horizonte de percepção acerca daquele algo acaba por se contrapor ao sentido do mundo dos fatos, do mundo da vida, bem como à percepção do autor daquele algo que se pretende interpretar. Aí, o intérprete é incluído no processo interpretativo: é a fusão de horizontes. Sobre a fusão de horizontes, assim lecionou Lênio Streck [16]:
O caráter da interpretação de Gadamer é sempre produtivo. É impossível reproduzir um sentido. O aporte produtivo do intérprete forma inexoravelmente parte do sentido da compreensão. Como já se viu, é impossível o intérprete se colocar em lugar do outro. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes [...]
O enquanto hermenêutico é, na verdade um nome dado por Luiz Rohden à dinamicidade do processo interpretativo. A pré-compreensão se transmuta em compreensão, a qual poderá se modificar, a depender da evolução do mundo da vida. Assim se pronunciou Luiz Rohden [17] sobre o enquanto hermenêutico:
Gadamer mostrou que, para Heidegger, o aspecto fundamental da compreensão, ‘o que é expressamente compreendido, tem a estrutura de alguma-coisa-como-alguma-coisa’, designando-a estrutura-como. A estrutura ‘como’ pertence à ‘constituição existencial a priori da compreensão’. Nós preferimos utilizar a expressão enquanto – termo que indica movimento, inapreensibilidade, sem um ponto fixo, onde princípio e fim implicam-se e, por outro lado, apontam um algo ainda não dito a se dizer. O enquanto, o Zwischen, entre o dito e o não-dito possui tanto a conotação de tempo (devir) quanto de essência (ser), isto é, tanto de provisório quanto de intermediário, sem repouso, por um lado, e definitivo, por outro. (grifos do autor)
A experiência da linguagem é o que podemos considerar o ponto mais importante tendo em vista o que procuramos demonstrar neste ensaio. Para a hermenêutica filosófica a linguagem pode ser comparada ao ar, que sustenta o voo da pomba, mas que não somente sustenta, como também é imprescindível para a própria vida da pomba. [18]
Acerca da importância da linguagem no processo hermenêutico, assim ensinou Gadamer [19]:
[...] a linguagem humana deve ser pensada como um processo vital particular e único, pelo fato de que no entendimento lingüístico se torna manifesto o ‘mundo’. O entendimento lingüístico coloca aquilo sobre o que ele ocorre diante dos olhos dos que participam nele, como se faz com um objeto de controvérsia que se coloca no meio das partes. O mundo é o solo comum, não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos, que une a todos os que falam entre si. Todas as formas da comunidade de vida humana são formas de comunidade lingüística, e mais ainda, formam linguagem.
Frisando a importância da linguagem na hermenêutica filosófica gadameriana, assim foram as palavras de Luiz Rohden [20]:
A linguagem não constitui um meio entre outros, uma ferramenta que os seres humanos utilizam apenas para se comunicar. O conhecimento de nós mesmos e do mundo realiza-se na e com a linguagem, que é a nossa própria, da qual não podemos nos desvencilhar como de um instrumento qualquer.
Por fim, cabe ressaltar que não há como falarmos em linguagem de forma divorciada do diálogo. Conforme a hermenêutica de Gadamer, para interpretar é imprescindível ouvir o outro. A partir daí, ouvindo o outro, as pré-compreensões do intérprete poderão ser mantidas, ou não. Em resumo, "a linguagem e o diálogo constituem o núcleo central da hermenêutica filosófica gadameriana". [21]
Pois bem, após essa uma breve noção acerca de aspectos de tamanha relevância, quais sejam a linguagem e o diálogo hermenêutico, dentre outros expostos, podemos nos dedicar a um breve estudo sobre um tema que muito interessa em um Estado Democrático de Direito e que tem no processo de interpretação do Direito e das coisas do mundo a sua principal forma de manifestação – a Democracia.