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A decisão do STF sobre a união estável homoafetiva: Uma concepção de democracia à luz da hermenêutica filosófica

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28/10/2011 às 13:20
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3 BREVES REFLEXÕES SOBRE UMA DEMOCRACIA EM CRISE

Quando falamos em democracia, logo pensamos em algo bom. Alguma coisa de significado diferente de ditadura. O antagonismo entre democracia e ditadura que nos vem à mente, por si só já justificaria a associação do termo democracia a um sentimento bom, de liberdade, igualdade, enfim, de uma sociedade, senão perfeita, bem próxima da perfeição. Talvez assim seja se considerarmos um conceito formal de democracia, já que o aspecto material merece algumas reflexões.

A origem etimológica da palavra democracia é grega, sendo a junção de demos, que significa povo, com kratos, que vem a significar poder ou governo. A junção nos traz o que comumente se entende por democracia: governo do povo. É o governo do povo, que o pode exercer diretamente ou por meio de representantes eleitos para tal, que é o mais comum.

Apesar de não nos dedicarmos, neste breve estudo, aos aspectos históricos da democracia, podemos destacar que ela é um regime de governo surgido na Grécia antiga, tendo sido referenciada por Aristóteles, mas que é própria do século XX. Isso porque, até então, era mais comum o poder estar concentrado nas mãos de um soberano, normalmente um rei ou imperador, que decidia pelo povo.

José Afonso da Silva [22] nos ensina que, equivocadamente, a doutrina afirma que a democracia se apoia em três princípios fundamentais: o da maioria, o da igualdade e o da liberdade. O equívoco, segundo o jurista, estaria no fato de não se tratar a maioria de princípio e sim de uma técnica para justificar a tomada de decisões pelo governante, uma vez que a técnica eleitoral utiliza o critério da maioria no processo de escolha política. Com relação aos aspectos da igualdade e liberdade, afirma também que não são princípios, e sim valores democráticos. A democracia seria, na verdade, um instrumento para a realização da liberdade e da igualdade no plano prático.

O mais correto, segundo o referido autor seria dizer que:

A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; nos casos em que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação. [23]

Com base no trecho acima transcrito, passemos a uma breve análise crítica do caso brasileiro, basicamente com relação aos aspectos soberania popular e participação.

Iniciemos pela análise do princípio da soberania popular. Entendemos que tal princípio está intimamente relacionado com o conceito de democracia proposto por Lincoln, referenciado por José Afonso da Silva [24], como sendo o governo do povo, pelo povo e para o povo. Assim preceitua a Constituição Federal em seu art. 1º, parágrafo único [25].

Nesse sentido nos esclarece José Afonso da Silva:

Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princípio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental de todo regime democrático. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva pela técnica da representação política (o poder é exercido em nome do povo). Governo para o povo há de ser aquele que procure liberar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança e bem-estar.

A crítica que podemos fazer ao aspecto soberania reside no fato de que, materialmente, a decisão sobre os rumos da nação se encontra nas mãos de poucos, que são, teoricamente, os representantes desse povo. Ocorre que, como é sabido, o processo eleitoral brasileiro, a despeito de ser aberto, em termos de elegibilidade passiva, ou seja, da capacidade de ser eleito, é um processo caracterizado pelos elevados custos das campanhas eleitorais. O que estamos querendo dizer é que, no Brasil, não é muito incomum termos notícias de campanhas eleitorais financiadas por grupos minoritários de grande poder econômico, político e social. É claro que exceções ao que acabamos de afirmar existem, mas não são em grande número.

Deixando de lado o aspecto econômico, um outro ponto que podemos destacar no que toca ao processo de representação democrática no Brasil diz respeito ao fator educação. Em um país em crescimento, mas ainda com baixos índices de educação no seio de sua população, hão de ser considerados alguns aspectos.

Em primeiro lugar, a educação é a porta de entrada ao mundo da informação. Ora, a melhor escolha em termos de representação política será feita por aquele que melhor estiver inteirado de como funciona o regime democrático, dos direitos inerentes ao exercício direto e indireto do poder pelo povo, enfim, vota melhor quem conhece todas as regras do jogo democrático. Não estamos aqui a falar do analfabetismo formal total, aquele que exclui pelo fato de não se saber ler ou escrever, estamos nos referindo ao analfabetismo intelectual, ou seja, aquele que exclui em face da baixa capacidade de autovalorização, de autoestima, aquele que exclui em razão da falta de vontade de luta por uma vida melhor, pelo conformismo em ser subjugado por quem tem conhecimento e domina a linguagem. E conhecimento, em pleno século XXI, é poder.

Um segundo aspecto, no que diz respeito à educação, está relacionado com a diferença de realidade entre aquele que vota e aquele que se elege. Aqui mais uma vez entendemos que existem exceções ao que se vai afirmar, mas, como já dito, não são em número expressivo. Em face do baixo nível de educação da grande maioria que vota, podemos perceber que há uma grande diferença da realidade social daqueles que são votados. Normalmente, o nível sociocultural dos representantes do povo é bastante diferente ( o dos representantes, na maioria dos casos, é superior) do dos integrantes da grande massa votante. Tal distanciamento entre as duas realidades acaba por causar um descompasso entre o atendimento das necessidades do povo e as necessidades de grupos socioeconômicos mais privilegiados, que acabam sendo atendidos prioritariamente.

Considerando o que arriscamos a afirmar acima, o povo, já numericamente diminuído em face das limitações da Constituição no que toca à elegibilidade ativa, acaba por ser representado por pessoas que na verdade não fazem parte e não vivem a mesma realidade da grande maioria da população de um país, frisemos, em desenvolvimento, mas admitamos, ainda subdesenvolvido, notadamente no aspecto humano.

São essas as críticas que estendemos ao aspecto participação, ou seja, a participação na democracia brasileira acaba por ser um processo que, apesar de formalmente democrático, é materialmente a participação de um povo que, na verdade, não tem acesso ou conhecimento de todo o aparato de poder que envolve as campanhas eleitorais.

Diante das críticas que acabamos de tecer, podemos dizer que nossa democracia está em crise. A crise se mostra quando os parlamentares não comparecem às sessões de votação, quando as votações de projetos importantes para o povo dependem de alianças políticas e de ofertas de cargos públicos, quando os escândalos de corrupção aparecem e não são sequer investigados. Ora, tudo isso está nos jornais, como notícia quase que rotineira. No processo de escolha dos seus representantes, será que tal quadro foi o desejado pelo povo na sua opção democrática? E não estamos a nos referir a períodos estanques, tudo se repete a cada mandato e a cada legislatura.

Nosso Estado Democrático de Direito também pode ser formalmente perfeito, mas materialmente também se encontra em crise. Para explicar qual seria essa crise, examinemos o conceito de democracia apresentado por José Afonso a Silva [26]:

[...] a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.

Quanto à primeira parte do conceito, já apresentamos nossa crítica ao governo do povo, pelo povo e em proveito do povo, notadamente em face dos aspectos da soberania popular e participação. O que nos incomoda é a segunda parte no que toca ao respeito e à tolerância entre os conviventes. Ora, se o governo fosse realmente do povo e para o povo, deveríamos contar com uma legislação que proporcionasse a todos condições de concretização de tais aspirações democráticas. Mas não é que percebemos no mundo da vida.

Aqueles que são os representantes do povo acabam por se quedar inertes em determinados assuntos que dizem respeito a algumas minorias e não legislam com a velocidade necessária para que o mundo das leis acompanhe a evolução do mundo da vida. Tal descompasso gera angústia, discriminação e uma vida à margem do Direito por parte de alguns. Um exemplo bastante atual é a questão das uniões homoafetivas, em face do tratamento dado pelo Código Civil [27] ao assunto, só admitindo a união estável entre casais heterossexuais e negando caráter de entidade familiar às uniões homoafetivas.

Não podemos nos esquecer de que o Estado Democrático de Direito pressupõe um aspecto de extrema importância: o respeito à dignidade da pessoa humana implícito na própria palavra Direito.

Mas em uma democracia como a entendida por José Afonso da Silva como de respeito e tolerância, além se se basear na dignidade da pessoa humana, o direito a uma vida normal e amparada no Direito pelos parceiros homossexuais não deveria ser uma prioridade na agenda dos representantes do povo?

Na ausência de resposta por parte do Legislativo, quem e como se poderia corrigir o descompasso da legislação em um assunto tão relevante quanto o da união homoafetiva? A resposta só pode ser uma: o quem restou, constitucionalmente, ao Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal; o como ficou com a aplicação do processo hermenêutico, notadamente no que concerne à hermenêutica filosófica.


4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O STF: A RECENTE DECISÃO SOBRE A UNIÃO HOMOAFETIVA E A DEMOCRACIA

Podemos citar como um recente exemplo do descompasso entre o mundo dos fatos e o mundo legislativo a situação das uniões homoafetivas e seu tratamento, ou melhor, sua falta de tratamento pela legislação brasileira, deixando milhares de pessoas em situação marginal à Lei.

Não podemos tratar a questão da homossexualidade como algo recente e privativo do Brasil. Não nos atrevemos a traçar uma origem histórica para tal questão, mas nos arriscamos a dizer que se trata de um assunto ligado à própria humanidade. O que está em jogo ou são fatores ligados à biologia, envolvendo a genética, ou são outros ligados à liberdade de escolha de orientação sexual por cada pessoa. Mas em qualquer caso o que a referida minoria busca é algo intrínseco ao valor dignidade da pessoa humana: a felicidade, ou, ao menos, o direito de encontrar a própria felicidade.

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Em relação ao tema família, a Constituição de 1988 [28] inovou ao reconhecer como entidades familiares outros tipos de uniões que não fossem as relativas ao casamento. Foram tais novidades, ou seja, foram também reconhecidas como entidades familiares: a formada pela união estável e a família monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Frisemos que a união estável para o Constituinte de 1988 era aquela formada entre homem e mulher, ou seja, somente entre pessoas de sexos diferentes. É importante também ressaltar que, hoje, o conceito de afetividade ganhou corpo e destaque no debate jurídico.

Em busca de arrefecer sua angústia e ver reconhecidos seus direitos, em face de uniões baseadas no afeto e na convivência contínua, pública e duradoura, vários conviventes homossexuais recorreram ao Judiciário. Em primeira e segunda instâncias o reconhecimento de direitos patrimoniais, sucessórios, previdenciários e relativos à adoção começaram a não ser tão raros. Entretanto, algo deveria ser feito para que a questão fosse decidida de forma definitiva. E como o representante maior do povo, o Legislativo, não atuava, restou ao STF tal missão. A evolução jurisprudencial sobre o tema, notadamente no pioneiro Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, bem como o papel do Judiciário na correção do descompasso entre a Lei e os fatos foi retratada em obra de autoria de Maria Berenice Dias: [29]

A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas, como entidades familiares, é um marco significativo. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da justiça. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que necessita suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.

Em 5 de maio de 2011, em julgamento histórico, os Ministros do Supremo Tribunal Federal colocaram um ponto final na discussão relativa à regularização das uniões homoafetivas no Brasil.

Naquela data ocorreu a apreciação e julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ. A ADI, proposta pela Procuradoria-Geral da República, pedia o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, com a ampliação dos direitos conferidos aos companheiros heterossexuais nas uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. A ADPF, proposta pelo governador do estado do Rio de Janeiro, pedia, com amparo na isonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana, que o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil [30], fosse estendido às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis estaduais.

O Relator foi o Ministro Ayres Britto, que teve seu voto acompanhado por todos os outros integrantes daquela Corte Suprema. Dessa forma, o Plenário do STF decidiu pela procedência das ações propostas e com efeito vinculante, dando interpretação conforme a Constituição no sentido de excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que pudesse vir a impedir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

O que podemos constatar é que a decisão do Supremo só foi possível, no sentido em que se deu, se pensarmos no importante papel da hermenêutica filosófica, como processo interpretativo que insere o intérprete no mundo da vida, no mundo dos fatos, que faz com que o intérprete não se porte como mero espectador e que entenda aquilo que se põe à compreensão, bem como se autocompreenda.

Podemos destacar no julgamento do STF, em face do processo hermenêutico envolvido, um ponto de excepcional importância em sede da hermenêutica filosófica, notadamente a proposta por Hans-Georg Gadamer: a questão da linguagem e do diálogo hermenêutico.

Podemos dizer que, no caso específico em estudo, a linguagem e o diálogo hermenêutico funcionaram como legítimas formas de manifestação do princípio democrático em sede de um poder destituído de legitimidade democrática, mas detentor de legitimidade argumentativa, em face da fundamentação de suas decisões. Estamos a nos referir à presença dos diversos Amicus curiae que se pronunciaram durante o julgamento. Associações, entidades, ou seja, representações dos interesses de uma minoria tiveram voz e foram ouvidas por aqueles que tinham por dever a interpretação da norma legal. Aí percebemos claramente a presença da alteridade, do diálogo, o ouvir o outro. Foi o que aconteceu naquele julgamento, o outro, a minoria foi ouvida. O horizonte do intérprete se fundiu ao horizonte do Constituinte de 1988 e do legislador de 2002, no que toca ao Código Civil e, dessa forma, considerando o mundo dos fatos, chegou-se a uma compreensão: a partir daquele julgamento as uniões homoafetivas saíam da clandestinidade jurídica e passavam a ser tratadas como entidade familiar.

Foi a hermenêutica filosófica, com base principalmente na linguagem e no diálogo, que acabou por funcionar como instrumento de concretização do espírito democrático. Mas não um espírito democrático de uma maioria que elege seus representantes, e sim, um espírito democrático em que se deve ressaltar o respeito ao outro, a convivência pacífica, mesmo que esse outro viva de forma diferente da maioria.

Por meio da hermenêutica filosófica, uma minoria foi ouvida e passou a ter direito de buscar sua felicidade de uma forma plena, algo que não lhe fora proporcionado por aqueles legitimamente (ao menos formalmente) eleitos para legislar em nome do povo, heterogêneo e composto internamente por uma maioria e uma minoria em diversos aspectos e formas de viver e pensar.

Assim como a semente de uma árvore, que enterrada sob a terra, encontra a superfície guiada pela luz do sol; a semente da democracia, ainda que enterrada sob um processo representativo em crise, encontrou a superfície, guiada pelo poder da linguagem e do diálogo presentes na hermenêutica filosófica.

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Sobre o autor
Caio Lucio Monteiro Sales

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALES, Caio Lucio Monteiro. A decisão do STF sobre a união estável homoafetiva: Uma concepção de democracia à luz da hermenêutica filosófica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3040, 28 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20318. Acesso em: 26 abr. 2024.

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