Resumo:
A União, por lei e em atendimento ao princípio da descentralização, previsto na Constituição, não é capacitada para executar diretamente ações previstas no bloco de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar. Não obstante, é crescente a quantidade de decisões judiciais que lhe impõem a obrigação de realizar essas ações. Demonstrou-se, por meio de análise da jurisprudência atual, como as determinações judiciais desorganizam o modo como o SUS é estruturado, no que tange às ações previstas para o mencionado bloco de financiamento. Por outro lado, explanou-se como o Poder Judiciário, ao considerar o princípio da descentralização, em suas decisões, pode se tornar um aliado na concretização do Sistema, a fim de garantir a realização, de modo mais efetivo, das ações de saúde no bloco da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar.
Descritores: Sistema Único de Saúde. Princípio da Descentralização. Bloco de Financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar. Políticas Públicas. Ações Judiciais.
Introdução
É bastante árduo, atualmente, para a União lidar com decisões judiciais que lhe obrigam a realizar, diretamente, ações previstas no bloco de financiamento do sistema único de saúde chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH). Como exemplos dessas condenações, podem-se citar aquelas para que a União proceda à internação de uma determinada pessoa em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), à realização de exames e/ou de cirurgias, bem como ao aumento da quantidade de leitos disponíveis em UTI em uma determinada localidade.
A dificuldade no atendimento a essas determinações judiciais decorre de sua prolação sem a necessária observância de como se estrutura o Sistema Único de Saúde (SUS). Em geral, impõe-se a obrigação à União, que não possui estrutura para cumpri-la, já que aquele ato não se encontra dentro de suas atribuições previstas na legislação que rege o Sistema.
Assim, por ausência de previsão legal, a União não possui o arcabouço para materialmente executar de forma direta e efetiva esse tipo de ação. Resta-lhe a possibilidade de contatar o gestor local (estadual ou municipal) do Sistema Único, para tentar que ele cumpra o ato, o que é seu dever. Porém, variadas vezes, esse contato resta frustrado. Nesses casos, o único meio que a União possuirá para satisfazer a decisão judicial será mediante a realização de um depósito judicial no valor do objeto demandado.
No entanto, isso gerará o dispêndio em duplicidade pela União de verbas para esse tipo de atendimento, caracterizando um duplo financiamento: em primeiro lugar, porque ela possui a obrigação de repassar recursos para esse fim ao gestor local, para que ele o concretize, e, em segundo lugar, porque realiza os mencionados depósitos, como único meio que lhe resta para cumprir as decisões judiciais.
Estão cada vez mais freqüentes demandas judiciais com esse objetivo, o que torna imprescindível uma abordagem mais cautelosa sobre o tema. Essas lides, por suas naturezas, carregam uma forte carga emocional, visto que versam sobre pessoas fragilizadas física e, muitas vezes, financeiramente também. É preciso, apesar disso, estudar racionalmente como se organiza o SUS nessa matéria, a fim de se impor a obrigação a quem é diretamente responsável pelo seu atendimento e, dessa forma, possibilitar o tratamento, da melhor maneira, a quem dele necessita.
Na maioria dos casos, o Poder Judiciário tende a condenar, de forma solidária, a União, o estado e o município a fornecerem o tratamento médico pleiteado. Variadas vezes, outrossim, em lides como essas, apenas a União é arrolada como parte ativa ou somente ela é condenada.
Objetivar-se-á demonstrar como esse tipo de demanda e de determinação vai de encontro à normatização do SUS. Ao mesmo tempo, essas condenações dificultam, atrasam ou, até mesmo, impossibilitam o atendimento da ordem judicial, ao contrário, paradoxalmente, do que desejava o magistrado ao proferi-las.
A solução de se cumprir a decisão por meio de depósito judicial, por sua vez, pode até resolver o caso concreto pontual, mas não colabora na regulamentação do Sistema, desorganizando suas previsões e dificultando seu funcionamento. A micro-justiça acaba ignorando completamente a macro-justiça.
Ademais, pode gerar uma acomodação do gestor de saúde, o qual, talvez, não procure adotar uma determinada política pública, pois sabe que uma parcela do erário deverá ser reservada para o atendimento das determinações judiciais. Nasce um círculo vicioso, em que o magistrado decide, devido a uma insuficiência nas ações do gestor e este não age, preventivamente, como deveria agir, pois necessita de se precaver para ter meios de atender às determinações judiciais.
Outrossim, caso os magistrados impusessem a obrigação ao gestor local, responsável por lei pela sua realização, poderiam contribuir para a formação de dados estatísticos sobre a falha na prestação de serviço, para que o gestor pudesse se programar, de modo a corrigir o problema. Todavia, com a condenação imposta à União, o gestor local não precisa de se preocupar com esses dados, nem com a melhora da sua prestação do serviço, pois sabe que se encontra resguardado, devido às condenações impostas à União.
Em geral, os juízes se satisfazem ao fundamentar suas decisões com base nas garantias constitucionais à saúde e à vida ou com base na solidariedade entre as pessoas políticas em matéria sanitária, muitas vezes, meramente citando o artigo 196 da Constituição, para alegar que a saúde é dever do Estado.
No entanto, os magistrados, comumente, falham em analisar a fundo a diretriz constitucional da descentralização do Sistema, que faz parte da política pública do SUS. Esquecem-se de que o artigo 196 da Constituição da República estatui que a saúde é, realmente, dever do Estado, porém, "garantido mediante políticas sociais e econômicas", dentre as quais se encontra a política da descentralização e regionalização.
Os julgadores carecem também em considerar a legislação ordinária e as diversas normas que regulam, especificamente, o bloco de financiamento do SUS chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH). Devido a essa freqüente ausência de fundamentação nas decisões judiciais, objetiva-se explicar a normatização do SUS acerca dessa matéria.
Não se busca afirmar que a União não possui nenhuma atribuição com relação ao atendimento dos pedidos de realização de exames, cirurgias e internações em UTI’s. Aduz-se, porém, que, caso seja condenada em uma ação judicial, que o seja de acordo com suas competências legais, estabelecidas em obediência à descentralização, prevista na Constituição da República.
1 Do Bloco de Financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar- AMACAH
Inicialmente, necessário explicar que o SUS é financiado pelos três entes da federação: União, Estados e Municípios.
O financiamento do Sistema, no que tange especificamente à responsabilidade da União, ocorre por meio de blocos de financiamento, com repasse aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal de recursos, conforme regulamentação da Portaria nº 204 de 29 de janeiro de 2007
O art. 4º da referida Portaria estabelece os seguintes blocos de financiamento: Atenção Básica; Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar; Vigilância em Saúde; Assistência Farmacêutica; Gestão do SUS e Investimentos.
O bloco de financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar
é composto por ações e serviços que visam a atender aos principais problemas e agravos de saúde da população, cuja complexidade da assistência na prática clínica demande a disponibilidade de profissionais especializados e a utilização de recursos tecnológicos, para o apoio diagnóstico e tratamento.
Também pode ser definido como "conjunto de procedimentos que, no contexto do SUS, envolve alta tecnologia e alto custo, objetivando propiciar à população acesso a serviços qualificados, integrando-os aos demais níveis de atenção à saúde."
Como exemplos das principais áreas que compõem a alta complexidade do SUS, organizadas em redes, temos: assistência ao paciente oncológico, cirurgia cardiovascular, procedimentos de neurocirurgia, assistência aos pacientes portadores de queimaduras, distrofia muscular progressiva, dentre outros.
Os recursos federais são transferidos, com regularidade, do fundo federal, para os fundos estaduais e municipais, para a execução dos procedimentos previstos para esse bloco de financiamento. O valor transferido pela União pode ser conferido por meio do sítio eletrônico www.fns.saude.gov.br.
Releva mencionar que o montante a ser repassado é objeto de pactuação nas Comissões Intergestoras Tripartite (CIT) e Bipartite (CIB). Dessa forma, é acordado por todos os representantes das esferas federais. Ao mais, o artigo 35 da Lei 8080/90 estabelece critérios para se definir esse montante, como, por exemplo, dentre outros, a série histórica, o perfil epidemiológico e a capacidade instalada.
2 Da divisão de competências entre os entes federados no SUS, considerando-se a descentralização, prevista constitucionalmente.
A concretização do SUS, conforme o disposto na Constituição da República, é de responsabilidade dos três entes da federação, de acordo com suas atribuições específicas. Nossa carta magna estatui que o SUS perfaz um sistema único, organizado como uma rede regionalizada e hierarquizada, sendo o princípio da descentralização uma diretriz dos serviços públicos de saúde (artigo 198, I), veja-se:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo
A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), em atenção à Constituição, possui disposição neste sentido:
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
(...)
IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;
Como se depreende da transcrição acima, a descentralização do sistema ocorre com ênfase na municipalização (princípio do SUS, inserido no inciso IX, artigo 7º, da Lei 8.080/90, supra transcrito).
O princípio da descentralização pode ser conceituado como
o processo de transferência de responsabilidades de gestão para os municípios, atendendo às determinações constitucionais e legais que embasam o SUS e que definem atribuições comuns e competências específicas à União, estados, Distrito Federal e municípios..
A Lei atribuiu aos municípios responsabilidade pela execução e prestação direta dos serviços de saúde (art. 18, incisos I, IV e V, da Lei n.º 8.080/90). Isso também compatibiliza o sistema com o estabelecido pela Constituição da República, no seu artigo 30, VII: "Compete aos Municípios (...) prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população".
Relevante frisar que é vontade constitucional que a prestação direta dos serviços de atendimento à saúde da população seja da competência dos municípios, pela proximidade com as necessidades dos cidadãos, podendo, assim, melhor assisti-los.
O desenvolvimento da regionalização e hierarquização das ações de saúde é crucial para se alcançar a integralidade da assistência, em atendimento ao comando constitucional.
Os sanitaristas, no processo de implantação do Sistema Único de Saúde previram a descentralização das ações sanitárias, uma vez que não seria plausível, em um país enorme como o Brasil, que a execução das políticas públicas permanecesse dependente de um único comando, distante da realidade e necessidades de grande parte dos cidadãos.
Os principais instrumentos de regionalização existentes são o Pacto pela Saúde, o Pacto de Gestão (componente do Pacto pela Saúde), o Plano Diretor de Regionalização, o Plano Diretor de Investimento e a Programação Pactuada e Integrada.
A linha executiva do SUS estatui que a realização das ações de saúde deve ser implementada por seus gestores locais, de acordo com suas características regionais, demográficas e epidemiológicas.
Essa configuração restou formalizada definitivamente em 26 de janeiro de 2006, pelos Gestores do SUS, por ocasião de reunião da Comissão Intergestores Tripartite, culminando no Pacto pela Saúde.
A Portaria/GM nº 399, de 22 de fevereiro de 2006, dispôs sobre as diretrizes do Pacto pela Saúde, o qual, por haver nascido de uma CIT, confirma que gestores dos três entes federados concordaram com a descentralização e assumiram espontaneamente a responsabilidade de concretizá-la.
Visando à concretizar a descentralização, destaca-se que uma das competências do Ministério da Saúde é "promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os municípios, dos serviços e das ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal" (incs. XV, do art. 16). Do mesmo modo, entre as competências das Secretarias Estaduais de Saúde, encontra-se: "promover a descentralização para os municípios dos serviços e das ações de saúde" (art. 17, inc. I).
De qualquer maneira, a fim de buscar um atendimento universal e preencher lacunas de prestação dos serviços de saúde pelos municípios, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) dispõe, como cautela, que competirá aos estados executar supletivamente as ações e serviços de saúde:
Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
III - prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde;
IV - coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços:
a) de vigilância epidemiológica;
b) de vigilância sanitária;
c) de alimentação e nutrição; e
d) de saúde do trabalhador; (grifos inseridos)
Em suma, verifica-se que a obrigação legal de executar diretamente os serviços de saúde é dos municípios e, supletivamente, dos Estados.
À União, quanto às ações relativas ao bloco de financiamento do SUS chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH), caberá o financiamento do sistema, além de sua fiscalização e avaliação técnica de sua qualidade, conforme descrito no artigo 16, da Lei 8.080/90.
Portanto, percebe-se que, dentre as competências legais da União, referente aos serviços relativos ao bloco de financiamento AMACAH, não se encontram a execução e prestação direta ao cidadão, uma vez que isso é atribuição do gestor local (estadual ou municipal).
Nesse sentido, ressalta-se a explicação constante em nota técnica, proveniente da Coordenação Geral da Média e Alta Complexidade da Secretaria de Atenção à Saúde, órgão do Ministério da Saúde:
Ressalto que cabe às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde identificar suas necessidade e fazer o planejamento de sua Rede de Saúde, bem como possibilitar exames aos usuários do SUS. Compete ao ministério da Saúde o papel normativo, provedor de recursos da sua competência, elaborador de políticas públicas e gerenciador de sistemas de informações, e, aos Estados, Municípios e Distrito Federal, identificar suas necessidades, estipular cotas, credenciar e controlar os serviços de suas Redes assistenciais, bem como disponibilizar a assistência aos seus usuários.
Dessa forma, o papel da União, quanto a esse bloco de financiamento, restringe-se a definir políticas públicas, a fiscalizar e a repassar os recursos para os gestores locais para financiar as ações de Média e Alta Complexidade. Por conseguinte, não é adequada a inclusão da União como legitimada passiva em demandas judiciais, cujo objeto é a realização dos procedimentos referentes à AMACAH, uma vez que é da competência do gestor local a sua realização efetiva.
Quando a União argumenta que não possui atribuição para prestar materialmente um serviço de saúde e alega que isso é atribuição do gestor local, não está a tentar escapar de um dever. Em verdade, a União assim o declara, a fim de que a Constituição seja obedecida, de modo a se cumprir o princípio constitucional da descentralização, bem como, em conseqüência, atender ao objetivo dessa diretriz: uma prestação mais efetiva ao cidadão necessitado.
Freqüentemente, os juízes demonstram compreender que há divisão de competências, entre os entes federados, na organização do SUS. Contudo, mesmo assim, insistem em condenar, igualmente, os três entes federados a realizar um determinado procedimento de saúde, sem se preocupar em observar de quem seria aquela atribuição. Outras vezes, a condenação incide em apenas um deles, aleatoriamente, sendo que, com bastante freqüência, a condenação recai apenas na União, talvez por ser considerada a pessoa política mais solvente.
Os magistrados assim agem por interpretarem que o artigo 196 da Constituição da República impôs a saúde como dever do Estado, genericamente, englobando, sem distinções, as três pessoas políticas. Ao mais, por entenderem que a descentralização prevista no artigo 198, apenas reforça o caráter solidário da responsabilidade entre os entes federativos.
Nesse sentido, observe-se essa parte do julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Segurança n. 3.335, DJe 30.4.2010, em que o relator Ministro Gilmar Mendes aduziu que:
União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde.
O fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da Federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles.
Todavia, é preciso deixar claro que, em nenhum dispositivo, a Constituição determina expressamente que há obrigação solidária entre as pessoas políticas, para a prestação de ações de saúde. Por outro lado, há a previsão explícita da descentralização.
Fica a indagação: a descentralização realmente reforça a obrigação solidária e subsidiária entre os entes, como comumente entendem os magistrados? Ou, na realidade, a previsão constitucional da descentralização apenas demonstra que o mais adequado para o funcionamento do Sistema seria a consideração de que cada um dos entes é responsável por realizar suas tarefas do SUS, conforme suas competências legais e constitucionais e, dessa forma, deveriam ser condenados a prestarem os procedimentos de saúde de acordo com suas atribuições?
Entender-se como correta a última alternativa, certamente, contribuirá para o melhor funcionamento do SUS, aclarando qual pessoa política é responsável por cada ação, tornando-se mais simples, assim, corrigir e punir as falhas do ente que não prestou um serviço de saúde como deveria. Somente assim estar-se-á a se observar, também, a macro-justiça, ao invés de apenas se considerar a micro-justiça.
É preciso lembrar que o artigo 196 realmente estatui que a saúde é dever do Estado em sentido geral, porém, "garantido mediante políticas sociais e econômicas", dentre as quais se encontra a política da descentralização e regionalização.