I-INTRODUÇÃO
A Lei n.º 12.403/11[1] acarretou inúmeras reflexões nas atividades de polícia judiciária, pois alterou vários dispositivos de nosso ordenamento adjetivo criminal. Trouxe o termo medida cautelar como gênero e como espécies as prisões provisórias, além das medidas cautelares diversas da prisão.
Desta forma, as prisões provisórias nas modalidades preventiva e em flagrante delito, tornaram-se institutos de existência ou mantença excepcionais, pois subsistirão somente se as outras medidas cautelares não forem aptas a dispensar a segurança necessária para preservar a ordem pública e a paz jurídica.
De tal modo a prisão em flagrante delito deixou de ser instituto capaz de manter no cárcere o autor surpreendido praticando a infração penal.
Isto mesmo. Quando o Juiz recebe o auto de prisão em flagrante delito, há que fundamentadamente adotar uma das três providências: relaxar a prisão; converte-la em preventiva ou conceder a liberdade provisória com ou sem fiança.
Aliás, caberá ao magistrado ainda, se necessário para a investigação e acaso ausentes os requisitos que autorizem a decretação da prisão preventiva, aplicar as medidas cautelares diversas da prisão, de forma isolada ou cumulativa, fazendo-o por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do ministério publico. Mas apenas aos delitos que prevejam a pena privativa de liberdade.
Entretanto, a revogação dessa benesse ocorrerá sem que a autoridade policial tenha representado, ou seja, pela redação do § 4.º, do art. 282, do CPP[2], fica claro que malgrado possa postular tal medida, não poderá o delegado de policia pedir a sua revogação. Parece-me um contra senso, pois pode postulá-la, mas não poderá aspirar diretamente a sua revogação.
Não é só. Pela norma do parágrafo único do art. 310, caberá somente ao juiz conhecer a exclusão da ilicitude e ao fazê-lo, conceder a liberdade provisória do autuado. A verificação ocorrerá ao compulsar o auto de prisão em flagrante delito.
Infelizmente o legislador perdeu a oportunidade de corrigir o cometimento de eventuais injustiças contra aquele que jamais praticou uma infração penal, eis que apenas realizou o fato típico, mas não antijurídico, isto é, não cometeu, segundo a teoria finalista da ação de Hans Welzel (fato típico, antijurídico e culpável) nenhum delito e mesmo assim será autuado em flagrante, permanecendo preso e recolhido até a ulterior deliberação judicial.
Uma espera contraproducente, haja vista que o delegado de polícia estaria legitimado a reconhecer a excludente de antijuridicidade e deste modo impedir transtornos ao investigado.
Enfim, é deste modo que pensa o legislador.
Noutra ocasião já havia comentado sobre as mudanças trazidas pela mencionada legislação no texto intitulado Prospecções policiais sobre a prisão interstício implementada pela Lei 12.403/11[3].
Na oportunidade evidenciei que a prisão preventiva somente poderia ser determinada como ultima ratio, ou seja, exclusivamente quando não fosse cabível a sua substituição por outra medida cautelar ou estas fossem descumpridas.
Ainda salientei que a decretação magistral somente poderia ser de ofício quando tramitasse ação penal (denúncia recebida). Asseverei que durante a investigação policial, o Juiz não possuía legitimidade para decretá-la de ofício, mas apenas a pedido das pessoas legitimadas a postula-la.
Afirmei que acaso o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante delito convertesse a prisão em preventiva, sem que houvesse a postulação dos legitimados, estaria criando a prisão interstício, não prevista em nosso ordenamento.
Além do mais, se o Juiz não relaxa a prisão, não concede a liberdade provisória, não converte o flagrante em preventiva e nem aplica as medidas cautelares diversas da prisão, o autuado permanece recolhido em flagrante delito, ou seja, prisão interstício.
Mas, as dúvidas não se resumem a tais questionamentos.
Nesta pesquisa abordarei a questão da concessão pelo delegado de polícia da fiança na fase policial, levando-se em conta que por vezes a pena máxima abstratamente cominada no preceito secundário fica a mercê dos inúmeros casos de aumento ou até diminuição.
Levando-se em consideração julgados e a doutrina existente sobre o assunto, bem como o empirismo da atividade policial como delegado de polícia e membro do corpo docente do ensino superior, passo a discorrer sobre o assunto.
II-PENA CONSIDERADA PARA A FIANÇA
Ante as mudanças, a autoridade policial passou a conceder a fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 04 anos.
A situação é de fácil resolução quando for cometido um único crime.
Basta verificar a pena máxima abstratamente definida pelo legislador no preceito secundário e deliberar sobre a concessão ou não da fiança policial.
Todavia no caso da infração penal perpetrada ter sido cometida em concurso de crimes ou haverem casos de aumento de pena, o papel hermenêutico da autoridade policial deve ser exercitado.
No Estado de São Paulo, a Polícia Civil, por meio da Delegacia Geral de Polícia, editou a Recomendação DGP -4 e transmitiu a seu pares que o Delegado de Polícia tem o poder dever de conceder a liberdade provisória mediante a fiança e neste mister, com supedâneo em seu convencimento e de forma motivada e fundamentada, estão aptos a analisar os institutos do concurso de crimes e os demais casos de aumento e diminuição de pena.
Abaixo o mencionado ato[4]:
POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DELEGACIA GERAL DE POLÍCIA
Recomendação DGP-4
A liberdade provisória mediante fiança em face do limite estabelecido no art. 322 do Código de Processo Penal. O Delegado Geral de Polícia, considerando que compete ao Delegado de Polícia a análise do fato que lhe é apresentado, a adequação típica e a consequente decisão sobre a possibilidade de colocação em liberdade do conduzido; considerando que, nos termos do art. 322, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, o Delegado de Polícia tem o poderdever de conceder liberdade provisória mediante fiança ao preso que tenha praticado infração cuja pena privativa de liberdade não exceda a quatro (4) anos; considerando que os Tribunais já se manifestaram no sentido de que o somatório das penas deve ser considerado para a aplicação dos institutos trazidos pela Lei 9.099/95 (Súmula 723, STF; Súmula 243, STJ e Súmula 82, TJSP), demonstrando a compreensão do tema que deverá guiar as inovações trazidas pela Lei 12.403/2011; considerando, finalmente, que o Delegado de Polícia é o agente a quem o Estado instituiu competência para analisar a relevância do fato apresentado, sob a ótica jurídico-penal, decidindo imediatamente a respeito sempre em a defesa da sociedade e tendo como norte a promoção dos direitos humanos, recomenda: As Autoridades Policiais, ao decidirem sobre da liberdade provisória mediante fiança prevista no art. 322 do Código de Processo Penal, poderão analisar, de acordo com seu convencimento jurídico, concurso material e outras causas de aumento e/ou de diminuição de pena, decidindo motivada e fundamentadamente, a respeito da possibilidade ou não da concessão do benefício legal.
Ao calcular, entendo que o delegado de polícia deva realizar o cúmulo material ou a exasperação pelo percentual mínimo, pertinentes ao concurso de crimes. No caso do aumento, elevá-lo também no mínimo. Depois disso acaso ultrapassado o limite máximo de 04 anos da pena abstrata não poderá a autoridade policial fixar a fiança.
A mencionada interpretação tem por escopo a análise da redação anterior do Inciso I, do art. 323, do CPP. Na época, ante aos fundamentos da Súmula 81 do STJ[5], o Tribunal entendia que no caso de concurso material não era possível conceder a fiança quando o somatório das penas extrapolava o limite máximo previsto, que era de 02 anos de reclusão.
Assim, compreendo que ainda seja esta a diretriz a ser seguida, aplicável também ao caso de concurso formal e de crime continuado, ou até mesmo quando houver qualquer outra causa de aumento de pena.
Então, a autoridade policial há que considerar tais situações para verificar se é possível fixar a fiança, ou seja, se considerando todas as causas de aumento de pena, a reprimenda máxima em abstrato permanecer até 04 anos, poderá conceder o instituto da caução, nos demais casos não poderá conceder o valor da fiança.
A outro turno, o delegado de polícia igualmente necessita apreciar as causas de diminuição de pena. Para tanto, no caso de existir um percentual variável, deverá levar em conta a redução máxima em favor do autuado e no caso da pena em abstrato ser reduzida para 04 anos ou menos, há que fixar o valor da fiança.
III-DOSIMETRIA EXTRAPROCESSUAL
Não obstante o já exposto resta saber a partir de qual pena se inicia o parâmetro para os cálculos, ou seja, nas situações mencionadas nos casos de concurso material, formal e crime continuado, ou até mesmo quando houver qualquer outra causa de aumento ou diminuição de pena, a incidência dos seus percentuais variáveis ou a somatória, terá como marco a pena mínima ou a máxima abstratamente cominada.
Como é sabido no sistema trifásico da dosimetria magistral o julgador primeiro realiza o cálculo da pena base, levando-se em conta as circunstâncias judiciais. Depois de quantificar a pena base, parte da mesma para as demais fases.
Agora, o delegado de polícia não possui este marco penalístico. Não tem uma pena, a não ser a abstratamente cominada pelo legislador.
Então, em obediência aos comandos de otimização que regulam a matéria, para os casos da exasperação e os demais de aumento, o seu marco deve ser sempre a pena mínima abstratamente considerada.
Deste modo, no caso de exasperar ou aumentar, o índice deve partir e incidir da pena mínima. Encontrando o valor, este é que será acrescido da pena máxima do delito principal para se chegar a análise do que o legislador limitou em até 04 anos.
Exemplo no caso de furto praticado durante o repouso noturno. O delito de furto simples é punido com a pena de 01 a 04 anos de reclusão e multa. No caso do repouso noturno há o aumento da pena em 1/3. Este índice é calculado sobre a pena mínima. Assim, acrescentaremos mais 04 meses (1/3 de 01 ano são 04 meses) na pena máxima. Deste modo a pena máxima é de 04 anos e 04 meses. Incabível a concessão da fiança policial.
Outro exemplo. O delito de dano qualificado praticado em concurso material com a desobediência. A pena do dano qualificado é de 06 meses a 03 anos de detenção e multa. No caso da desobediência é de 15 dias a 06 meses de detenção e multa. A regra do concurso material manda que se realize o cúmulo material (soma das penas). Assim, acrescentaríamos 06 meses (pena máxima da desobediência) ao delito de dano qualificado que é de 03 anos. Deste modo a pena máxima é de 03 anos e 06 meses. Cabível a concessão da fiança policial.
Já no caso da diminuição, segue o exemplo. No delito de roubo (art. 157, do CP) a pena é de 04 a 10 anos de reclusão e multa. Em se tratando de tentativa, o parágrafo único do inciso II, do art. 14, do CP, preconiza que haverá a diminuição de 1 a 2/3 da pena do delito consumado. Assim, partindo da pena máxima de 10 anos, se incide o maior percentual que é 2/3. Chega-se ao quantum de 6 anos e 06 meses a ser diminuída. Resta então 3 anos e 06 meses. Cabível a concessão da fiança.
Apesar disso, mesmo que seja possível fixar o valor depois dos cálculos dosimétricos extraprocessuais, o delegado de policia não irá concedê-la nas situações proibidas pelo ordenamento, ou quando presentes os pressupostos e fundamentos para a representação visando a decretação da prisão preventiva.
Mas, o delegado de polícia não poderá analisar as circunstâncias atenuantes ou as agravantes para o cálculo da pena abstrata apta a justificar a fixação da fiança. Isto porque a legislação não fornece o quantum aplicável nesse processo matemático, ficando a análise apenas do magistrado no momento de buscar a pena em concreto, cujo percentual se convencionou na ordem de 1/6.
De sorte que, usando como referência a Lei 9099/95, a qual considera como menor potencial ofensivo as infrações penais cuja pena máxima abstratamente cominada seja de até 02 anos, há que se questionar se poderia igualmente a autoridade policial levar em conta todos os casos de aumento da pena para desconsiderar uma infração penal como de menor potencial ofensivo?
Acredito que não. O entendimento exposto quanto a consideração da pena máxima para a concessão da fiança se trata de instituto para deixar ou não o autor da infração preso. Já a realização da dosimetria para se chegar a desclassificação da infração que era de menor potencial ofensivo para a categoria de infração penal visa a tornar mais gravosa a situação do autuado. Assim, por ser possível levar alguém ao cárcere ao invés de mantê-lo no cárcere, entendo não ser possível tais análises na Lei 9.099/95.
Outrossim, usando o mesmo raciocínio e levando-se em conta as causas de diminuição da pena abstrata, poderia a autoridade policial partir de uma infração penal comum e ante aos cálculos redutores, chegar a um delito de menor potencial ofensivo?
Considerando que a lei criadora dos juizados especiais criminais estabeleceu critérios diferenciadores para a sua conciliação, processo, julgamento e execução nas causas de sua competência, buscando sempre que possível a conciliação ou a transação, acredito que o marco da pena deva ser sempre aquela abstratamente fixada de forma primária no preceito secundário, sem a influência de qualquer causa de diminuição ou aumento. Por isso, o delegado de polícia não poderia fazer esta análise para eventual classificação da sua potencialidade lesiva (menor potencial ofensivo).
IV-CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que até então a doutrina tenha indicado que o processo dosimétrico era ato exclusivo do magistrado, praticado no final da ação penal e como forma de aplicar a prestação jurisdicional, entendo que esta compreensão ficou adstrita a situação endoprocessual.
A partir de agora cabe aos nobres e combatentes delegados de polícia, os primeiros profissionais da carreira jurídica a tomarem contato com as infrações penais, realizar o juízo de valor para mensurar e dosar extraprocessualmente a pena abstratamente prevista e deliberar quanto aos seus casos de aumento ou diminuição e ato contínuo, fixar ou não o valor da fiança.
Mesmo que posteriormente a prestação jurisdicional a ser imposta aplique dosagem diferenciada, isto não pode ser óbice ao reconhecimento jurídico a ser dado pela autoridade policial, pois este cálculo dosimétrico extraprocessual servirá apenas para conceder a liberdade àquele que o Estado investigação passou a dispensar atenção.
Notas
[1] Lei 12.403/11. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm. Acesso em 14.03.2012.
[2] Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em 14.03.2012.
[3] LUENGO, André Luis. Prospecções policiais sobre a prisão interstício implementada pela Lei 12.403/11.Clube jurídico do Brasil. Disponível em: http://clubejus.com.br/?artigos&ver=2.35877. Acesso em 14.03.2012.
[4] Polícia Civil do Estado de São Paulo. Delegacia Geral de Polícia. Recomendação DGP 04. Disponível em http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=/2011/executivo%2520secao%2520i/julho/21/pag_0036_C3U8VVRARVPHFe6PSOVK5CHBQ7N.pdf&pagina=36&data=21/07/2011&caderno=Executivo%20I&paginaordenacao=100036. Acesso em 13.03.2012.
[5] Superior Tribunal de Justiça. Súmula 81. Disponível em: http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stj/stj__0081.htm Acesso em 13.03.2012.