7. Julgamento de atos de gestão em contas de governo.
Como antes debatido, irregularidades insanadas, são necessárias para que haja parecer pela rejeição de contas. Entretanto, por não serem suficientes a essa ocorrência, dada a carência de expressividade comprometedora, e principalmente em se tratando de contas de governo, pode ocorrer de serem apontadas irregularidades em determinados atos, específicos e destacáveis do contexto global.
Nesses casos, nada mais se tem do que atos de gestão, e que por sua natureza não comprometem, nem deveriam, a totalidade daquela prestação de contas de governo do Chefe do Poder Executivo. Não há de se admitir rejeição das contas de governo por conta de atos de gestão, mostrando-se correto, sim, a cisão desses atos do objeto de exame das contas governamentais.
A exemplo, a inobservância de procedimento licitatório adequado em determinado caso junto a uma Prefeitura que realiza dezenas senão centenas deles obviamente não tem força para viciar a globalidade da prestação; não tem o condão de interferir nos atos de governo, nem no orçamento com contundência; sendo assim, embora a falha venha a se mostrar insanada, pela constatação de dano ao erário, precisará ser destacada para exame próprio como ato de gestão.
Isso decorre de um critério objetivo de que contas de governo, que ensejam uma análise contextualizada, não podem ser rejeitadas por problemas específicos, localizados, de pouca extensão, e por isso perfeitamente cindíveis para análise autônoma, incapazes que são de interferir nos planos de governo ou nos atos de execução das finanças públicas de um determinado exercício.
Ressalvamos aqui o entendimento de que apenas os casos de irregularidades insanadas comprometedoras dos planos de governo haverá motivação para a rejeição da totalidade a prestação. Portanto, seja na fase de fiscalização e apreciação pelos Tribunais de Contas, seja naquela de julgamento perante o Poder Legislativo, surgindo discussões periféricas, sem repercussão geral sobre o equilíbrio da prestação, não devem elas conduzir a um juízo negativo de aprovação.
As hipóteses em que dimanam verdadeiras imputações de atos de gestão ao agente político Chefe do Poder Executivo, e que por vezes acabam aparecendo nos trabalhos de auditoria fiscal ou inoportunamente apenas nas manifestações das comissões de finanças e orçamento do Poder Legislativo, como a falta de algum processamento licitatório, ou irregularidades no processamento de despesas, ou despesas indevidas, dentre outras, não se ligando a matérias de orçamento autorizado nem sendo dotadas de expressividade, acabam por afastar a competência legislativa para seu julgamento, já demarcada pela anterior fase de apreciação feita pelo Tribunal de Contas, com a emissão do parecer.
Da mesma forma, conquanto seja perfeitamente possível que pareceres prévios consignem a ocorrência de irregularidades em atos de gestão, e ainda quando isso ocorra, porque é impróprio que falhas dessa natureza engendrem rejeição de contas de governo, não poderão servir de subsídio para endossar posicionamento legislativo em sede decisória.
Ora, condutas ou fatos perfeitamente destacáveis da prestação de contas de governo ou sem qualquer liame com o conceito de orçamento que a enreda, sem prejudicar ou interferir na identificação do equilíbrio ou desequilíbrio ocasionadores do juízo sobre sua aprovação ou rejeição, nada mais são do que atos de gestão, a merecerem instauração de procedimento próprio de apuração e julgamento junto aos Tribunais de Contas.
Do contrário, estar-se-ia conferindo ao Poder Legislativo, às avessas, a competência para julgamento de atos de gestão, a conflitar com preceituado no artigo 71, inciso II, da Constituição Republicana.
Exatamente por isso não se pode admitir que julgamentos de contas de governo ocorram fundamentadas em atos de gestão, seja porque carregam natureza particularizante que não coaduna com a generalidade afeta aos atos de governo; notadamente quando decorrente de falhas identificadas pelo Poder Legislativo somente em momento que sucede a delimitação do objeto de julgamento, fixada em parecer prévio quando da apreciação pelo Tribunal de Contas, extrapolando-o.
Assim, quando não constarem questionamentos de atos de gestão no âmbito das contas de governo, não caberá ao Poder Legislativo incluí-los para fins de julgamento, mas apenas representa-los às Cortes de Contas, para que haja fiscalização, apreciação e julgamento, em procedimento fiscal a ser regularmente inaugurado, com preservação das garantias do contraditório e à ampla defesa. Poderá ainda o Poder Legislativo representar a outras instituições, como o Ministério Público, ou buscar guarida junto ao Poder Judiciário, mas nunca sobre elas se pronunciar decisivamente no âmbito de julgamento de contas públicas governamentais.
Convém observar que normalmente as manifestações das Cortes de Contas, quando verificadas irregularidades de gestão, já colacionam determinação de abertura de procedimentos apartados, para exame destacado de atos constantes das contas de governo. Ou seja, de atos de gestão que mereceram apontamentos, motivo pelo qual não deixarão de ser analisados e submetidos a um melhor debruçar fiscal e posterior julgamento pelo órgão competente, o próprio Tribunal de Contas, observado o procedimento adequado.
8. Inelegibilidade por rejeição de contas decorrente de irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa.
Sendo competência dos Tribunais de Contas, dizer sobre irregularidades, o conteúdo de suas decisões ganha ainda mais importância no contexto jurídico atual pelas suas repercussões de índole eleitoral. As irregularidades insanadas passaram a ser pressuposto a atrair a causa de inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso I, do artigo 1º, da Lei Complementar nº 64/1990, com nova redação que lhe trouxe a Lei Complementar nº 135/2010, vulgo Lei da Ficha Limpa. Essas causas são aferidas no momento do registro de candidatura.
É certo que se viesse expresso nos pareceres a qualidade negativa das irregularidades verificadas, certamente se evitariam discussões infindáveis entrincheiradas por candidatos junto ao Poder Judiciário. Mas enquanto isso não ocorre, relevante traçar alguns critérios a serem lembrados no nebuloso campo da diferenciação entre irregularidades insanáveis e sanáveis assim não expressamente consignadas.
Na seara eleitoral, claro, outros pressupostos extravasam a configuração de irregularidade insanável – sendo que consideramos correto falar-se me irregularidade insanada pelo antes exposto – e precisam com ela se somar para materializarem uma inelegibilidade. Destarte, há necessidade também de rejeição de contas por decisão irrecorrível, proferida por órgão competente e a ocorrência de ato doloso de improbidade administrativa. O quarteto é cumulativo e obrigatório.
Por isso, não é somenos significativo reafirmar que também na seara eleitoral o órgão competente para o julgamento das contas ou atos de gestão é sempre Tribunal de Contas, mesmo nos casos de atos de gestão irregulares identificados quando da apreciação das contas de governo, que dela devem ser destacados. Isso está expressamente previsto na Lei de Inelegibilidade, na alínea g, do inciso I, de seu artigo 1º, ao prescrever que se aplica o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição.
Segundo dissemos, somente deverá ocorrer rejeição de contas por irregularidade insanada que as comprometa, assim entendida aquela relacionada a ato ocasionador de dano ao erário constatado, sendo forçoso frisar que verificado este, também haverá, nos termos da atual Lei nº 8.4229/1992, um ato de improbidade administrativa. Posto que o dano ao erário lhe é hipótese caracterizadora, como se nota do previsto pelo artigo 10, caput, da referida Lei de Improbidades.
Tal constatação vai ao encontro dos militantes do direito eleitoral que entendem ser a irregularidade insanável sinônimo de improbidade administrativa. Contudo, como prevê a Lei, nem todo dano ao erário decorrerá de conduta dolosa, exigida explicitamente pela Lei eleitoral.
Assim, ao mesmo tempo em que foi conferido ao Tribunal de Contas registrar a ocorrência de irregularidade, inclusive insanável, não se podendo presumi-la nem outro órgão se sobrepor à sua competência para julgamento; à Justiça Eleitoral, se reservou auscultar sobre a presença do elemento subjetivo dolo na conduta do responsável pelas contas de governo ou de gestão rejeitadas por decisão irrecorrível do órgão competente, durante o lapso temporal previsto, para somente assim restringir-lhe a capacidade passiva de elegibilidade.
Isto é, irregularidade insanável não pressupõe dolo, que deverá sempre restar identificado pela Justiça especializada. Evidente, também, que se as decisões ou pareceres das Cortes de Contas passassem a apreciar e registrar expressamente a presença ou não de dolo na conduta dos responsáveis por bens ou valores públicos, e ainda que isso fosse passível de revisão judicial, haveria maior segurança jurídica no meio.
9. Conclusão.
Categórica a importância dos Tribunais de Contas para a realização do controle de fiscalização, atuando em todos os procedimentos fiscais de julgamento de contas dos administradores de bens ou valores públicos ou em nome da Administração Pública.
Essas Cortes desempenham sua relevante função constitucional de controle externo, emitindo pronunciamentos técnicos, que em sede de contas de governo, acabam por delimitar o objeto de apreciação pelo Poder Legislativo, além de proceder à qualificação das irregularidades que venham a identificar como sanadas ou insanadas.
O conceito de irregularidades fiscais, longe de meramente estático e imodificável, é dinâmico, admitindo-se o saneamento da falha, pela reparação do dano ao erário ensejar de irregularidade insanável.
De se ressaltar que o julgamento de atos de gestão é de competência exclusiva dos Tribunais de Contas, mesmo dos titulares de mandato na condição de Chefe do Poder Executivo, inclusive quando forem identificadas irregularidades dessa natureza em sede de exame de contas de governo, para que seja preservado o disposto no artigo 71, inciso II, da Constituição Federal, sendo que sobre tais atos estará impedido de decidir o Poder Legislativo, por fugir-lhes da alçada conferida pelo inciso I do mesmo dispositivo supralegal.
Enfim, não se deve confundir irregularidade insanada, sujeita a qualificação pelos Tribunais de Contas, com ato doloso de improbidade administrativa. Isso porque, mesmo que a insanabilidade decorra de dano ao erário comprovado, que poderia ensejar a configuração de improbidade administrativa, a teor do artigo 10, caput, da Lei nº 8.429/1992, persiste a necessidade de averiguação do dolo na conduta do agente, cuja identificação foi conferida especialmente à Justiça Eleitoral, a ser realizada caso a caso, visto que nem todo dano ao erário é intencional. O que não afasta a possibilidade dos próprios Tribunais de Contas realizarem um exame sumário da matéria, com fito de emprestar maior segurança jurídica aos efeitos ou mesmo à interpretação de suas manifestações, especialmente junto à seara eleitoral, visto que cada vez mais passarão a trazer repercussões sobre a capacidade eleitoral passiva de candidatos às futuras eleições.
10. Referências bibliográficas:
Doutrinas
CALDAS, J. R. Furtado. Direito financeiro. 3º ed., ver. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum. 2012.
CASTRO, José Nilo de. Julgamento das Contas Municipais. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 4ª ed., ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011.
Legislação
Constituição Federal de 1988
Lei Complementar Federal nº 64/1990
Lei Complementar Federal nº 135/2010
Lei Ordinária Federal nº 8.429/1992
Constituição do Estado de São Paulo
Lei Orgânica do Município de São Paulo