Resumo: O artigo tem como objetivo a análise de caso da construção do Aproveitamento Hidrelétrico Cachoeira com o auxílio das teorias constitucionalistas contemporâneas de Habermas e Dworkin e da Teoria Crítica do Direito.
Palavras-chave: AHE Cachoeira, comunidades quilombolas, princípios, teoria crítica do direito.
1. Introdução
A crescente demanda por energia elétrica nas sociedades contemporâneas tem feito com que se busquem cada vez mais meios para supri-la. No Brasil, devido a seu grande potencial hidráulico, a principal fonte de eletricidade são as usinas hidrelétricas. Elas são consideradas fonte de energia limpa, mas a despeito disso a construção de barragens para a viabilização desses empreendimentos provoca grandes impactos ambientais e sociais.
O governo brasileiro, com o seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem patrocinado a construção de diversos empreendimentos com o objetivo de dar ao Brasil a infraestrutura necessária para atrair empresas e acelerar a economia visando o desenvolvimento nacional.
Aproveitamento Hidrelétrico - AHE Cachoeira é um dos empreendimentos do PAC. Ele será implantado na região Nordeste do Brasil, no curso do rio Parnaíba, imediatamente a jusante da foz do riacho Grande e a montante do riacho Surucuju, nos municípios de Floriano (PI) e Barão de Grajaú (MA).
Empreendimentos como esse precisam, para ser aprovados, passar antes por um estudo no qual serão avaliados os impactos ambientais e sociais e serão apontadas as medidas mitigadoras que devem ser tomadas. Por isso existe o instituto do EIA-RIMA, um estudo detalhado que avalia desde o impacto ambiental, até consequências sociais, culturais e de danos ao patrimônio histórico. É importante salientar que esses estudos devem ser feitos do modo mais cuidadoso possível, visitando as áreas e comunidades afetadas de modo a não apresentar dados alheios à realidade. No entanto, não foi isso o observado no que tange o caso em questão. Várias irregularidades forma encontradas, tendo sido inclusive feita uma ação civil pública pelo Ministério Público.
De acordo com o EIA-RIMA a obra implicará no remanejamento de 117 famílias ou, aproximadamente, 46 pessoas, todas residentes na área inundada. Existem, porém, evidências de que o número de afetados foi subestimado. Os principais núcleos populacionais afetados serão Vila da Manga do Maranhão e Manga do Piauí, localizadas em ambas as margens do rio. Essas comunidades são protegidas por uma legislação especial, pois se caracterizam como comunidades quilombolas.
O caso AHE Cachoeira deve ser analisado com cuidado, pois se trata de um caso multifacetado, típico da complexidade da sociedade contemporânea. Essa complexidade deve ser absorvida pelo Direito para que a melhor resposta seja dada ao caso. No entanto, o Direito burguês- liberal, muito eficiente para lidar com contratos ou conflitos entre particulares, se revela insuficiente quando entram em jogo questões como essas, que envolvem diversos fatores socioeconômicos, ambientais, culturais. Sendo assim é preciso um Direito que leve em conta todos os fatores, prezando em especial pelos direitos inalienáveis do ser humano protegidos pela Constituição e por operadores sensíveis à realidade, que não estejam presos ao formalismo e aos papéis, se esquecendo de que o direito surge do social para voltar a ele. Como ciência aplicada o Direito tem um compromisso com as relações reais. O Direito emerge do social e voltará a ele através de suas decisões que influenciarão diretamente a vida das pessoas e a teia social.
Um caso como esse toca em pontos importantes que dizem respeito a toda a comunidade formadora de opinião, na medida em que todos são de alguma forma intérpretes da constituição e conhecedores de seus direitos e prerrogativas. O meio ambiente é um direito difuso que vem sendo protegido constitucionalmente e também na legislação ordinária por conta da mobilização de algumas organizações e da própria tomada de consciência de que se continuarmos tratando o ambiente de uma maneira predatória as consequências serão gravíssimas e se farão sentir na vida de todos. Daí a importância de levar tudo em consideração quando se projeta um empreendimento que fará grandes intervenções no meio natural. A construção de uma barragem afeta a flora, a fauna, o patrimônio histórico, toda a forma de viver da população, afetando em atividades como a pesca e a agricultura. Grandes áreas serão alagadas, áreas que correspondem ao espaço de vivência de pessoas que lá construíram a sua história e identidade. Esse aspecto não deve ser subestimado quando analisado o caso.
A proposta do artigo é enxergar a construção da barragem Cachoeira primeiramente através do constitucionalismo contemporâneo de Habermas e Dworkin, acentuando a importância dos princípios constitucionais e da participação democrática através de um discurso pautado no melhor argumento. A outra parte apresentará as contribuições da Teoria Crítica para a construção de um Direito que perceba e seja sensível ao social e não se tranque em um autismo formalista. Para isso recorreremos às contribuições de cunho marxista de Roberto Lyra Filho e do Direito Alternativo, à teoria do pluralismo jurídico do professor Antônio Carlos Wolkmer e ao surrealismo jurídico de Warat.
2. O Constitucionalismo de Dworkin e Habermas
O papel da Constituição na garantia dos direitos das populações afetadas pelo empreendimento AHE Cachoeira é primordial. Existem vários direitos garantidos constitucionalmente que não estão sendo observados na construção dessa obra. Entre eles pode-se citar o art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. As comunidades quilombolas de Manga do Maranhão e Manga do Piauí não estão tendo esse direito respeitado. Elas nem sequer são consideradas comunidades quilombolas, apesar de se reconhecerem como tal.
O princípio da dignidade humana é um princípio basilar na nossa Constituição. A resposta dada ao caso AHE Cachoeira deve levar em conta a dignidade das pessoas afetadas, pois isso constitui em um direito inalienável. Esses povos, além de estarem amparados por uma legislação especial, são protegidos constitucionalmente porque são seres humanos detentores de todos os direitos enumerados pelo art. 5 da Constituição Federal. Não se pode tirar um povo de seu meio sem garantir a ele condições adequadas de vida e principalmente sem ouvi-lo a respeito disso.
O principal argumento utilizado para justificar a construção do empreendimento é o do desenvolvimento nacional. Já o argumento que protege o interesse dos afetados é o da dignidade da pessoa humana. Haveria nesse caso uma colisão de princípios? Qual deveria prevalecer no caso? Para Dworkin os princípios não colidem, apenas aparentemente existe uma colisão e é possível chegar à única resposta correta para o caso observando o Direito em sua integridade. Sendo assim não cabe a quem analisa o caso apontar qual princípio prevalece, mas observar o caso em toda a sua particularidade, todos os seus detalhes, todas as variáveis econômicas, sociais, ambientais, culturais. Através desse trabalho hercúleo será possível então saber como se resolver o problema. Não existem colisões, o que existem são casos difíceis que não devem ser simplificados, mas destrinchados em toda sua complexidade.
No que tange os argumentos legitimadores das duas posições, é importante salientar a distinção que Dworkin faz entre princípios e políticas. Para o autor princípios são normas que dizem respeito a questões de justiça e de equidade, uma dimensão de moralidade. A dignidade da pessoa humana é um princípio, pois remete a um direito inalienável intrínseco ao ser humano. Já as políticas têm como objetivo o bem estar geral (econômico, político ou social). Os princípios não devem ser sacrificados em nome de políticas, pois caso contrário, se corre o risco do desrespeito dos direitos fundamentais e do sacrifício de uma minoria em nome do possível benefício de uma maioria. Mas se assim for nunca estaremos garantidos, pois nunca estaremos certos de quando seremos nós a minoria que terá seu direito desrespeitado. Daí a importância dos direitos que garantem nossa dignidade como pessoas humanas: em um “Estado de Direito” onde eles não são respeitados poderemos ter a qualquer momento nossos direitos mais básicos usurpados em nome de “algo maior”.
Também vale mencionar que, para Dworkin, os princípios constitucionais têm caráter normativo e podem ser aplicados diretamente, a despeito do que sustentou durante muito tempo a doutrina tradicional. Sendo assim, um juiz pode dar resposta para um caso tomando como base princípios constitucionais, sem ter que necessariamente recorrer à legislação ordinária.
De acordo com a tese de Habermas, os direitos fundamentais e o princípio democrático majoritário são complementares. Nesse sentido, o privado e o público, os direitos do indivíduo e o bem comum se completam. Observando na perspectiva habermasiana, o argumento da supremacia do interesse público para a construção do empreendimento AHE Cachoeira não se sustenta, pois não se deve passar por cima de direitos fundamentais do indivíduo para garantir um desenvolvimento que beneficiaria a todos. A questão é que as populações afetadas também estão incluídas nesse “todos”, elas também são formadas por cidadãos sujeitos de Direito. Nesse caso, os direitos privados dos cidadãos devem ser garantidos e não convém argumentar que o interesse público se sobrepõe ao privado, já que o fim último do público é a garantia do bem estar dos particulares. Como garantir esse bem estar desrespeitando direitos fundamentais?
A autonomia pública sugerida na supremacia do interesse público não pode suplantar o caráter da autonomia privada, da dignidade da pessoa humana, pois foi através do exercício desses direitos privados que é possível o procedimento democrático que legitima o político e o jurídico. Assim, de acordo com Habermas, autonomia privada e pública se pressupõe.
Outro ponto importante para o caso é a teoria do discurso de Habermas. A teoria do discurso habermasiana é baseada na sua teoria da ação comunicativa e bebe da fonte da filosofia da linguagem. Nela os sujeitos sustentam um discurso buscando o entendimento e o consenso, baseados no pressuposto de que se diz a verdade e de que todos têm iguais condições discursivas. Isso abriria o espaço para um debate democrático com a vitória do melhor argumento. Trazendo isso para o caso discutido, os participantes que debatem o caso na esfera pública teriam que ser considerados iguais e capazes de sustentar um discurso.
Devemos salientar que os principais envolvidos no caso AHE Cachoeira são as populações afetadas. São elas que estão sofrendo influência em suas vidas e interesses. Não cabe ao governo ou à academia saber o que é melhor para elas, mas é indispensável que elas sejam ouvidas em seus medos, anseios, expectativas. Tirar delas esses direito é tirar-lhes o direito de participação, de ser de fato sujeito de direito e agente de seu próprio destino. Por isso é importante a lição do discurso habermasiano, de forma a incluir a população nas discussões através de um debate público.
Instrumentos que serviriam para dar voz à população, como as audiências públicas, estão tendo sua finalidade subvertida e se revelam cerimônias meramente informativas. Além do excessivo formalismo e de uma linguagem inacessível que intimidam a manifestação da população, o tempo destinado para a fala das comunidades é ínfimo.
Através de Dworkin e Habermas observamos a importância da Constituição e dos direitos fundamentais para o bom funcionamento de um Estado Democrático de Direito e para responder os casos que surgem no contexto contemporâneo.
3. A teoria crítica de inspiração marxista: Lyra Filho e Direito Alternativo
A teoria de Roberto Lyra Filho faz uma crítica ao dogmatismo cego que transforma o Direito em uma ficção, tornando-o alienado em relação à realidade. O dogma se caracteriza por ser uma verdade absoluta que se pretende erguer acima de qualquer debate; e assim captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-la ou a ela propor qualquer alternativa (Filho, 1980).
Esse Direito dogmático se protege na sua autoridade para não ser colocado em contestação, e a cristalização de ideologias e não problematização das questões tende a mascarar interesses de alguns grupos. O subjetivismo, individualismo e idealismo do Direito liberal-burguês não consegue vislumbrar o direito emergente da dialética social.
O Direito tem como ponto de partida e de chegada o social. Assevera Lyra Filho:
Toda a vez que se examina a teorização positivista, nota-se que o ponto de partida é um fato social- a norma posta à mesa do jurista- e o desfecho é outro fato social- a eficácia da norma, cuja mera existência e aplicação se pretende legitimar, pelo consenso. De qualquer forma, a dialética real de imperativos e aplicação fica em suspenso, uma vez que o dogmático se coloca de permeio, para tirar do papo idealista , como uma aranha, o fio ideológico da sua teia de exegese. (Filho, 1980).
Fica claro nesse trecho a insuficiência de uma posição jurídica meramente dogmática para abarcar a dialética social. O dogmatismo serve como um fio ideológico exegético que, por conta de seu idealismo cristalizado, não percebe as intrincadas relações da sociedade de onde surgem os direitos.
Essa lição é importante na reflexão do caso AHE Cachoeira. Por ser um caso complexo que envolve muitas questões sociais é ainda mais indispensável que o aplicador do Direito esteja atento para a dialética social e sensível a ela. É preciso não se isolar nos dogmas para perceber que a natureza do Direito não se caracteriza por uma autoridade engessada. O direito positivo não deve ser lido com o “delírio declamatório” de algo incontestável, pois ele é mais que isso. O Direito provém dos conflitos do social, das demandas, das misérias, das esperanças, e da luta real. Lyra Filho acredita em um direito libertador, enxerga nele a capacidade para o revolucionário.
Outra contribuição de cunho marxista importante para o caso é a do Direito Alternativo. O movimento do Direito Alternativo surgiu no Rio Grande do Sul, quando juízes passaram a decidir de modo diferente do geralmente decidido na tradição, de modo que assumiam diretamente a causa dos menos afortunados e oprimidos. Nesse sentido, adotam métodos hermenêuticos que atendem aos interesses das classes mais pobres. Tais métodos hermenêuticos privilegiam interpretações sociais e teleológicas das leis, tendo como referência a Constituição e seus princípios.
Assim como Lyra Filho, os juristas alternativos são críticos do positivismo jurídico e atacam seus pontos basilares. O positivismo jurídico concebe o Direito segundo uma estrutura formal, completa e neutra. Para os positivistas, o Direito é o conjunto de normas formalmente válidas que permitem resolver todos os problemas da sociedade, tendo como única fonte a legislação escrita; a aplicação dessas normas válidas se dá através de uma interpretação neutra e mecanicista.
Os juristas alternativos concebem o Direito segundo uma perspectiva mais próxima do materialismo do que do formalismo, isto é, prioriza-se o conteúdo em detrimento da forma. Os adeptos do Direito Alternativo também veem o Direito como axiológico, desde a sua estrutura, montada para atender aos interesses das classes detentoras do poder, até sua aplicação, já que a escolha do método de interpretação também é um ato de ideologia. Os alternativos criticam ainda a pretensão de completude e coerência do Direito, pois este não consegue regular todos os aspectos da vida social, assim como não consegue cumprir todas as suas determinações.
Essa crítica ao positivismo é perfeitamente aplicável ao caso AHE Cachoeira. As comunidades atingidas representam a parte mais fraca e oprimida da população. O Direito pretensamente neutro não consegue exercer essa neutralidade, pois tanto o campo do Direito é ainda elitista, com a maioria de seus operadores pertencendo à classe social dominante e tendendo a levar consigo as ideias e os interesses de sua classe, como a própria estrutura do Direito é direcionada para proteger com mais afinco os valores caros à burguesia. Tem-se o exemplo da propriedade, muito protegida pela legislação brasileira, quando direitos importantes como os referentes à vida e os difusos não recebem toda a atenção que lhes seria devida.
Um juiz tradicional tenderia a resolver o caso Cachoeira no sentido do interesse burguês da construção do empreendimento, e não daria a devida atenção àquelas pessoas simples e sem meios que estão tendo seus interesses afetados. Na perspectiva de um juiz alternativo estaria clara a necessidade de resolver de uma forma em que as populações ribeirinhas afetadas tivessem seu direito e dignidade protegidos.
No caso AHE Cachoeira pode ser aplicado o positivismo de combate do Direito Alternativo. Muitas vezes a luta não é para conquistar direitos, mas para dar eficácia a direitos que já são válidos. No caso estudado muitos direitos garantidos constitucionalmente e na legislação ordinária são desrespeitados, como já citado anteriormente.
Observar o direito nas perspectivas críticas de inspiração marxista de Lyra Filho e do Direito Alternativo nos alerta de que nem sempre o Direito é o que pretende ser e que muitas das pretensões imputadas a ele são absurdas. Como ser totalmente imparcial? Como conseguir um Direito completo e coerente capaz de captar todos os aspectos do social? O Direito não é perfeito, não constitui em um livro sagrado onde encontraremos a resposta de todos os problemas, e tratá-lo dessa forma só renderá prejuízos. Pelo contrário, é preciso considerar o Direito como algo necessário, mas repleto de conflitos e incoerências. É necessário construir um Direito que leve em conta essas incoerências e não feche os olhos para elas formando uma ficção tão perfeita quanto apartada da realidade. Apesar de o Direito não poder abarcar o todo social é preciso se fazer o máximo para conhecer os conflitos e situações que permeiam cada caso, falando como Dworkin cada caso deve ser visto na sua integridade. Quanto às incoerências, não devem ser escondidas, mas percebidas, e o Direito ensinado a conviver com elas e sobreviver apesar delas. Negar as incoerências e os conflitos só terá como resultado um Direito morto que não consegue acompanhar a complexidade do social e serve somente como meio de legitimação para a dominação de alguns e a submissão de outros.
4. O caso AHE Cachoeira e o pluralismo jurídico
O pluralismo jurídico desenvolvido pelo professor Antônio Carlos Wolkmer realiza uma crítica à visão do Direito estatal como único. Existem novas formas de produção jurídica com que o Estado tem de conviver. Não convém mais enxergar como Direito apenas aquele que emana das vias oficiais, através dos processos legislativo e jurisdicional, mas vislumbrar o Direito que surge da ação concreta e da atuação de atores coletivos, corpos intermediários que lutam pelas suas demandas e necessidades.
Wolkmer faz uma diferenciação entre antigos e novos movimentos sociais. Para ele os antigos movimentos sociais são os de caráter anarquista e marxista. Eles são classistas, clientelistas, assistenciais e assentados no autoritarismo. Eles possuem uma relação de subordinação em relação às instituições (Estado, partido, sindicato). Essas organizações têm como ponto central de sua luta interesses econômicos e classistas. Já os novos movimentos sociais se caracterizam por uma institucionalização mínima e por relações horizontais.
Os novos atores coletivos, compartilhando valores e ideais comuns, se organizam com o objetivo de realizar suas necessidades fundamentais. É importante notar que os novos movimentos sociais estão sempre relacionados com a realização de necessidades humanas fundamentais, que podem ser: existenciais, materiais, culturais, sociopolíticas, difusas (meio ambiente e consumidor), entre outras. Nas palavras de Wolkmer:
os novos movimentos sociais devem ser entendidos como sujeitos coletivos transformadores advindos de diversos estratos sociais e integrantes de uma prática política cotidiana com certo grau de “institucionalização”, imbuídos de princípios valorativos comuns e objetivando a realização de necessidades humanas fundamentais. (WOLKMER, 2001).
Nesse sentido, o Direito é fato social e, como tal, deve refletir a sociedade na qual está inserido. Dessa forma, os novos movimentos sociais e suas reinvindicações devem ser entendidos como fontes de direito, já que a fonte estatal e as instituições clássicas não conseguem atender às demandas de uma sociedade plural. O Direito, absorvendo fontes mais próximas da realidade social, torna-se mais democrático.
O movimento quilombola atuante no caso AHE Cachoeira pode ser caracterizado como um novo movimento social, pois ele possui reinvindicações culturais e de identidade. No caso trabalhado também aparece a questão ambiental, que se constitui em um direito difuso, e as questões econômicas dos atingidos. Como acentua Wolkmer a questão econômica ainda é uma forte reinvindicação em países em desenvolvimento como o Brasil, pois ainda existe muita carência nesse aspecto.
A crítica ao monismo estatal faz perceber que o Direito não é privilégio do Estado e sim algo que surge das demandas, carências, e necessidades das pessoas. O Direito é algo que pode ser conquistado na luta dos movimentos sociais e se constitui legítimo, pois é um exercício de autonomia e democracia dos cidadãos.
Os movimentos sociais podem assumir uma postura reivindicatória que visa pressionar o Estado à obtenção de melhores condições de vida e de direitos básicos que não são atendidos (Wolkmer, 2001). Essa postura foi adotada pelo movimento quilombola para conquistar direitos junto ao aparelho Estatal e muitos direitos, inclusive constitucionais, foram conquistados. No entanto, como assevera Wolkmer, essa forma de luta tem um alcance limitado no que tange a oferecer soluções criativas para superar impasses. Isso não quer dizer que essa forma de luta não deve acontecer, pelo contrário, ela é essencial, mas também existem outras formas de atuação. No caso AHE Cachoeira, por exemplo, os direitos não estão tendo a devida aplicação e isso exige uma denúncia que pode ser realizada através de uma postura contestatória.
Na postura contestatória, o movimento se atém a denunciar a ausência de respostas concretas e utiliza as carências e privações materiais como forma de mobilizar as grandes massas para realizar uma oposição sistemática ao poder estatal instituído. Nesse caso, a denúncia pode ser feita não só pela falta de respostas, como também pela ineficácia na aplicação das respostas dadas, o que as torna apenas simbólicas e não efetivas.
A terceira postura enunciada por Wolkmer é a participativa, que é de extrema importância nos novos movimentos sociais, pois constitui em um exercício de autonomia e de democracia. É através dela que os cidadãos conseguem assegurar o controle do Estado e a descentralização do poder. No caso AHE Cachoeira, os canais de participação popular formados pelas comunidades atingidas no contexto do movimento quilombola se caracterizam por outras fontes de emanação do poder que não a estatal. A postura participativa é fundamental na construção de uma perspectiva pluralista do Direito.
O Estado já não consegue tornar realidade sua pretensão de ser a fonte única do Direito. No caso estudado existem não só as influências de estruturas infraestatais, como a do movimento quilombola, como também a influência internacional, a exemplo da Convenção 169 da OIT, que assegura o direito de consulta prévia para comunidades como as em questão, sendo que nada pode ser construído em suas terras sem que elas sejam consultadas e concordem com o empreendimento.
Perceber o Direito na perspectiva do pluralismo jurídico é essencial para a resolução de casos que envolvem complexidades que vão além do Direito Estatal. Daí a importância das contribuições dessa corrente para o caso analisado.