De época em época, a Fazenda Pública cria estratégias para buscar a constrição dos bens dos “ditos” devedores de impostos. Recentemente, tanto a União quanto os Estados e Municípios credores, inovaram novamente, não bastando à famigerada penhora on-line via BACENJUD, desta vez estão pleiteando junto ao Poder Judiciário a penhora de recebíveis junto às administradoras de “cartão de crédito”. Ou seja, as Fazendas Públicas pleiteiam nos executivos fiscais a penhora sobre eventual crédito da empresa a ser repassado pelas operadoras de cartão de crédito, e via determinação judicial, sequestram os valores recebidos e/ou recebíveis que os devedores receberiam das operadoras com o desígnio de saldarem os supostos débitos que estes possuem com o fisco.
Em seu pedido, o Fisco alega que tais valores se equiparam a “dinheiro” e conforme disposição taxativa do Artigo 655 do Código de Processo Civil é possível tal constrição.
Ocorre que os processos de execução no Brasil, incluindo os de execução fiscal (normatizado pela Lei nº 6.830/80), são regidos pelo Principio da Menor Onerosidade - que obriga o magistrado a determinar que a Execução Fiscal tramite sempre pelo “modo menos gravoso para o executado”, conforme o Artigo 620 do Código de Processo Civil.
Especialmente para os comerciantes, os recebíveis das operadoras de cartão de crédito não se equiparam a dinheiro, pois em razão da sua imaterialidade momentânea (recebíveis), normalmente são alocados a outras finalidades - como pagamento de salários, fornecedores, e demais despesas, o que caracteriza uma medida extrema e capaz para interferir na atividade econômica da executada a ponto de reduzi-la à insolvência. Ademais, a figura do “cartão de crédito” não se enquadra no rol do Artigo 655 do Código de Processo Civil que trata da ordem dos penhoráveis.
Por mais que o avanço tecnológico em determinadas áreas faça com que o Direito tenha de se afeiçoar, em algumas situações essa adaptação não se sustenta, pois, por mais que se possa raciocinar por analogia (cartão de crédito = dinheiro), não podemos esquecer que Lei determina a menor onerosidade para o executado. Preceito que deve ser observado para preservar o equilíbrio sócio/econômico entre as partes, e assim não se agrave ainda mais a situação do executado, cabendo ao julgador estabelecer essa orientação.
Importante esclarecer, que a ordem prevista no Artigo 655 do Código de Processo Civil após a reforma da Lei nº 11.382/2006, criou uma ordem de “preferência”:
“Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
II - veículos de via terrestre;
III - bens móveis em geral;
IV - bens imóveis;
V - navios e aeronaves;
VI - ações e quotas de sociedades empresárias;
VII - percentual do faturamento de empresa devedora;
VIII - pedras e metais preciosos;
IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com cotação em mercado;
X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;
XI - outros direitos.
§ 1o Na execução de crédito com garantia hipotecária, pignoratícia ou anticrética, a penhora recairá, preferencialmente, sobre a coisa dada em garantia; se a coisa pertencer a terceiro garantidor, será também esse intimado da penhora.
§ 2o Recaindo a penhora em bens imóveis, será intimado também o cônjuge do executado.”.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência já entendiam que o caráter da ordem de preferência não seria “absoluta”. Conforme nos ensina o Prof. Humberto Theodoro Jr: “Admite-se, de tal sorte, a justificação da escolha dentro dos parâmetros (i) da facilitação da execução e sua rapidez, e (ii) da conciliação, quanto possível dos interesses de ambas as partes.”
Entendimento, inclusive, já sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça no ano de 2010 -Súmula 417: “Na execução civil, a penhora do dinheiro na ordem de nomeação de bens não tem caráter absoluto”.
Por conseguinte, o credor passou a ser titular da “faculdade” de indicar bens à penhora, contudo, respeitando a gradação legal. A ordem de preferência instituída pelo legislador dirige-se, inicialmente, a ele, porém restando ao devedor impugnar uma escolha que a desrespeite. Nesse condão, entendem os tribunais que a escolha do bem a ser penhorado deve ser feita considerando o direito da tutela efetiva do credor, somado a facilidade e a rapidez da execução, aquilatando o direito a menor onerosidade do devedor, harmonizando-se os dois princípios.
Sob essa ótica, temos que a penhora de valores a serem repassados por operadoras de cartão de crédito são um contrassenso as princípios legais pois:
1. Não se subsumem ao disposto no inciso I do artigo 655, do CPC;
2. Interferem ferozmente na atividade econômica da executada, podendo até mesmo inviabilizá-las.
Em suma, o pleito de penhora sobre hipotéticos valores a serem repassados pelas operadoras de cartão de crédito à devedora, é ilegal e insubsistente, essencialmente por não encontrar lastro no Artigo 655 do CPC e por ferirem flagrantemente o Principio da Menor Onerosidade do executado conforme determinação expressa do Artigo 620 do mesmo diploma.
Julgados nesse sentido:
EMENTA: PENHORA DE EVENTUAIS VALORES A SEREM REPASSADOS POR OPERADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO. IMPOSSIBILIDADE. A penhora sobre eventual crédito da empresa a ser repassado pelas operadoras de cartão de crédito não se subsume ao disposto no inciso I do artigo 655, do CPC. Ademais, o deferimento de tal medida, por interferir na atividade econômica da executada, poderá até mesmo inviabilizá-la. (TRF4, AG 5010621-02.2012.404.0000, Terceira Turma, Relatora p/ Acórdão Maria Lúcia Luz Leiria, D.E. 10/08/2012.
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. PENHORA. CRÉDITOS JUNTO A OPERADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO. ARTIGO 655, I, DO CPC. IMPOSSIBILIDADE. 1. Inviável a expedição de oficia de agências operadoras de cartão de crédito para que depositem em juízo eventual valor existente em favor da empresa executada, vez que referido crédito não caracteriza “dinheiro em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira”, conforme disposto no artigo 655, I, do Código de Processo Civil. 2. Agravo de instrumento improvido. (TRF4, AG 0002131-13.2011.404.0000, Terceira Turma, Relator Fernando Quadros da Silva, DJ 31/05/2012)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. CONTRATO BANCÁRIO. PENHORA. ATIVOS FINANCEIROS. OPERADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO. – O pedido de penhora de ativos financeiros da parte agravada que hipoteticamente constariam nas operadoras de cartão de crédito não encontra lastro no art. 655, incisos I e VII, do CPC. (TRF4, AG 0014193-85.2011.404.0000, Quarta Turma, Relator Candido Alfredo Silva Leal Junior, D.E. 18/01/2012)
EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ÀS OPERADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO PARA QUE DEPOSITEM EM JUÍZO EVENTUAL CRÉDITO A SER REPASSADO À DEVEDORA. IMPOSSIBILIDADE. A penhora sobre eventual crédito da empresa a ser repassado pelas operadoras de cartão de crédito não se subsume ao disposto no inciso I do artigo 655, do CPC. Ademais, o deferimento de tal medida, por interferir na atividade econômica da executada, poderá até mesmo inviabilizá-la. (TRF4, AG 0012597-66.2011.404.0000, Terceira Turma, Relatora Maria Lúcia Luz Leiria, D.E. 16/12/2011)
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENHORA DE EVENTUAIS VALORES A SEREM REPASSADOS POR OPERADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO. IMPOSSIBILIDADE. Não cabe ao Poder Judiciário diligenciar na busca de bens do devedor passíveis de constrição judicial. O pleito de penhora sobre hipotéticos valores a serem repassados pelas operadoras de cartão de crédito à devedora não encontra lastro no art. 655, incisos I e VII, do CPC. . Prequestionamento estabelecido pelas razões de decidir. . Agravo de instrumento improvido. (TRF4, AG 0000637-16.2011.404.0000, Quarta Turma, Relatora Silvia Maria Gonçalves Goraieb, D.R. 06/07/2011