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A atuação do juiz da execução penal na preservação dos direitos do preso

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Ao juiz, não basta ser o homem ou a mulher travestida de justiça; deve ser o arquiteto das ações na satisfação dos direitos individuais e coletivos.

O apenado como sujeito de direito.

“Não te fiz nem celeste, nem mortal nem imortal, para que de ti mesmo, quase como livre e soberano artífice, te plasmasses e te esculpisses na forma que tivesses escolhido. Poderás degenerarte nas coisas inferiores, que são os brutos; poderás conforme teu querer, regenerar-te nas coisas superiores que são divinas”. (PICCO. 1999, p. 78).

A completude do trecho filosófico escrito por Pico della Mirandola em 1486, trás a dimensão do que seja o ser humano digno de identidade, liberdade e razão na direção de seu próprio destino no mundo moderno. A consagração da dignidade implica em considerar o homem como o centro do universo social e jurídico.

Esse reconhecimento abrange todos os seres humanos, considerando-os individualmente, de modo que a projeção dos efeitos da ordem jurídica, não há de se manifestar, a princípio, ante a duas ou mais pessoas. Daí importar na consequência de que a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto no que concerne na elaboração da regra de direito (igualdade na lei), quanto em relação a sua aplicação (igualdade perante a lei).

Com base nesse entendimento, pode-se dizer que a interferência do principio abrange três vertentes: a) reverência à igualdade entre os homens. A titularidade deste direito se estende a todos aqueles que se encontrem vinculados à ordem jurídica brasileira; b) impedimento à consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, a implicar na observância de prerrogativas de direito e processo penal e execução penal; c) garantia de um patamar existencial mínimo.

Neste contexto, lembra-se a opinião de Ernesto Brenda, citado por Luiz Roberto Barroso, quando diz:

 “a dignidade humana, como parâmetro valorativo, evoca inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto de ação estatal. Mas não é só. Igualmente, esgrime a afirmativa, de competir ao Estado a procura em propiciar ao indivíduo a garantia de sua existência material mínima”. (BARROSO, 2002, p. 32).

Diante do crescimento da criminalidade, questionar a dignidade do apenado, talvez cause repulsa a uma sociedade sobressaltada, constituída de famílias amedrontadas por ataques criminosos, de pessoas que já sofreram algum tipo de violência ou mesmo um de seus familiares. Porém, o propósito é mostrar a esta sociedade e às autoridades responsáveis pela custódia do preso de que é preciso tratá-lo, ainda que seja de forma desigual aos “homens de bem”, mas de maneira que o tratamento a ele dispensado não modifique a sua condição humana, não o despoje de seus direitos em razão do cumprimento de uma sentença condenatória. O tratamento degradante só ajudará a embrutecê-lo, contribuindo, para que ao sair do cárcere retorne em condições piores, trazendo mais mal à sociedade, pois, não havendo prisão perpétua e pena de morte no Brasil, todos os que se encontram cumprindo pena, a princípio, retornarão à convivência social, e repita-se, muito pior do que antes.

No início do século XX, as concepções jurídico-penais eram muito diferentes das atuais. Hoje graças a vários movimentos internacionais, e a uma verdadeira tomada de consciência que se iniciou na época do iluminismo, o preso deixou de ser, teoricamente, objeto do direito penal para tornar-se pessoa do direito penal. Porém, em plena época de redemocratização, onde o país assegura em sua Carta Magna os direitos fundamentais da pessoa humana, presencia-se todos os tipos de arbítrio contra a pessoa do prisioneiro.

O Estado Democrático de Direito elenca como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal/1988). Portanto, o homem deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal, onde o condenado será tido como sujeito de direito, e por isso deverá manter todos os seus direitos fundamentais que não foram lesados pela perda da liberdade, em caso de cumprimento de pena privativa. A pena é privativa da liberdade e não da dignidade, do respeito e de outro direito inerentes à pessoa humana.

Há mais de dez anos, cento e onze presos foram mortos no conhecido “Massacre do Carandiru”. Da mesma forma, todos os dias toma-se conhecimento através dos noticiários de atos de revolta de presos raramente sem morte e muitas delas praticadas por agentes do Estado. Na última visita feita ao Brasil por um emissário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), do seu relatório constatou-se, que em muitas prisões brasileiras, os detentos encontram-se em condições sub-humanas.

É certo que os presos no Brasil, vivem em constante associação para fins de rebeliões e motins, mas o que esperar de pessoas que vivem em cadeias fétidas, sem respeito a sua integridade física, a sua intimidade, sem trabalho, sem atendimento jurídico, a saúde, e ainda, consumidos por todo tipo de droga que, infelizmente, entram nas prisões. Degradar o preso, não irá diminuir o aumento da criminalidade, só provocará revolta, entre outros tipos de sentimentos ruins.

A criminalidade tem raízes sócio-econômicas e não bastará encrudelecer o sistema de penas e reprimir as ações criminosas se não houver políticas públicas eficazes para combater a miséria, oferecendo condições ao homem de acesso à saúde, educação e as necessidades básicas ao seu desenvolvimento. Um homem segundo os fundamentos constitucionais é digno desde o seu nascimento, porém dependendo do ambiente que nascer, sua dignidade será ou não efetivada.

Os prisioneiros são na maioria pobres, alguns miseráveis, de famílias desajustadas socialmente, quase sempre tem um familiar com história de prisão, e o que é mais triste, entram no Sistema Carcerário com idade variante entre dezoito e vinte e cinco anos. Vale trazer à lume, um trecho do livro de Francisco Freire, quando o autor assevera:

“A todos aqueles que neste momento habitam um ventre e nascerão na miséria, morarão nas ruas, terão como teto o tempo, sentirão frio, acostumar-se-ão com o medo, comerão lixo, cheirarão cola, conhecerão o sexo na infância, procriação na puberdade e, analfabetos, morrerão antes de atingir a idade adulta. Sua vida já é conhecida, antes de nascerem, filhos órfãos que são da cidade grande, a porta da prisão os aguardam”. (FREIRE, 1998, p. 54).

A destruição da vida humana e a supressão eterna da liberdade negam, a priori, o valor do homem como esperança de redenção e caracterizam reações desproporcionais ao delito, convertendo a pena em um instrumento de terror.  Ademais, é através da forma de punir que se verifica o avanço moral espiritual de uma sociedade, não se admitindo em pleno século XXI, qualquer imposição que fira a dignidade e a própria condição do homem, sujeito de direitos invioláveis, mesmo que se encontrem temporariamente privados de sua liberdade.


As características da pena e sua função ressocializadora.

A pena é personalíssima, não podendo ultrapassar a pessoa do delinquente; submete-se ao princípio da legalidade, não podendo ser aplicada sem prévia cominação legal; é inderrogável, não podendo deixar de ser aplicada, quando houver condenação; é proporcional ao crime, devendo guardar equilíbrio entre a infração praticada e a sanção imposta. A finalidade primordial da pena não pode ser outra senão a ressocialização do infrator.

Óbvio que não se alcança estes objetivos na estrutura atualmente apresentada, com um contingente prisional muito além da capacidade dos estabelecimentos existentes, sem contar que estes, em sua grande maioria, estão em situação de precariedade absoluta, não oferecendo as mínimas condições necessárias.

Esta tarefa está distante de nossa realidade devido às deficiências do nosso sistema penitenciário, somente tornará possível, primeiramente, quando o sentenciado tiver a consciência do erro praticado e deliberadamente assumir sua culpa, depois, com o efetivo acompanhamento do processo de execução, assegurando ao preso os direitos que lhes são indissociáveis. Sem estas condições a execução penal será sempre forma de segregação e discriminação, já que a ressocialização do condenado não passará de fantasia oficial. O notável jurista italiano Francesco Carnelutti, com enfoque extremamente cristão, ainda no ano de 1959, escreveu:

“... se a pena deve servir de intimidação aos outros, deveria junto servir para redimir o condenado; e redimi-lo quer dizer curá-lo da sua enfermidade. A tal propósito se deveria saber em que consiste a enfermidade. Aqui as coisas a se dizerem são as mais simples e as mais amargas: enquanto a medicina do corpo alcançou progressos maravilhosos, a medicina do espírito está ainda em estado infantil”.(CARNELUTTI, 1995, p.32).

Se, portanto, o fim maior é a ressocialização do infrator para retorno à convivência fraterna no seio social, é fundamental que se faça opção por uma sanção que melhor atinja esse objetivo. A pena de prisão, ninguém mais contesta, é um remédio opressivo e violento, de conseqüências devastadoras sobre a personalidade, e só deve ser aplicada, “ultima ratio”, aos reconhecidamente perigosos. É iniludível que o encarceramento do homem não o melhora, nem o aperfeiçoa, nem corrige a falta cometida, nem o recupera para o retorno à vida da sociedade que ele perturbou com a sua conduta delituosa.

Esta linha de raciocínio traz a sensata conclusão: é preciso encontrar maneiras de punir, de reprimir, mas é preciso, sobretudo, encontrar maneiras de prevenir o crime. Vale dizer, não basta satisfazer a fome por um dia ou uma semana, são necessárias políticas públicas de geração de emprego e renda, de saúde, educação, segurança e outras prementes necessidades. O homem não quer só comer, ele quer se sentir cidadão útil e viver numa sociedade justa.


Os limites de atuação do juiz no contexto da realidade do sistema prisional.

Ao compulsar os enunciados do Código Penal constata-se no artigo 38: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”.

A Lei de Execução Penal (Lei n.7.210 de 11.07.84), reguladora desta matéria, reforça o conteúdo do artigo 38 e em capítulos posteriores, enumera os deveres e direitos dos presos. O primeiro desafio do magistrado é atingir o objetivo da LEP “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Tal dispositivo é complexo por sua natureza, já que envolve duas atividades distintas, judicial e administrativa, embora com o mesmo objetivo. Ao juiz compete o fiel cumprimento da sentença condenatória. Ao Estado, reunir condições satisfatórias que favoreça o cumprimento da pena, de forma que propicie um retorno pacífico à sociedade.

Torna-se cada vez mais perceptível a precariedade do sistema penitenciário brasileiro, encontrando-se casas penais abandonadas e em grande parte aproximando-se do ápice da deterioração. Celas insalubres, instalações elétricas e hidráulicas imprestáveis e refeitórios sem adequada condição de higiene, emolduram o quadro carcerário nacional. Verifica-se que a progressiva degradação da pessoa humana manifesta-se quase que concomitantemente à da estrutura física, refletindo-se na promiscuidade da convivência (ou sobrevivência) de presos provisórios e sentenciados.

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Neste sombrio horizonte penitenciário, o ser humano é compelido a abdicar de sua cidadania, e personalidade, passando a internalizar condicionamentos infra-sociais da comunidade carcerária. Lamenta-se dizer que este fenômeno atinge não somente os reclusos, como também parte dos funcionários do sistema penitenciário.

Apenas repetir que a atual realidade carcerária do País não oferece condições satisfatórias para reeducar e/ou ressocializar os apenados, torna-se cansativo e desestimulante, é necessário que se faça algo, sonhar com dias melhores, para se buscar em tais sonhos o alento para bem desenvolver a árdua missão.

O Juiz da Execução por mais que disponha de infra-estrutura necessária à desenvolver o seu dever indeclinável, que é cumprir e zelar pelo cumprimento da Lei de Execuções Penais, ainda assim, terá que ultrapassar limites, por não contar com um Sistema Carcerário aparelhado, capaz de oferecer ao apenado condições de sobreviver com dignidade ao cumprimento de sua pena, subtraindo-lhe oportunidade de trabalho, educação, saúde e sociabilidade. Nesse pensar, para os clientes da execução penal, executa-se a vida em nome da execução penal.

João Baptista Herkenhoff assevera:

 “A violência oficial pode ser exercida contra a lei ou à sombra da lei. (...) Violência à sombra da lei é a prisão em si, um anacronismo em face do estágio atual das mais diversas Ciências Humanas. Violência contra a lei é a prisão como a temos aqui, que corrompe o corpo e degrada o espírito dos que são por ela vitimados (....).”(HERKENHOF, 1999, p.41-2).

Diante de tal quadro, não se pode admitir, dentre outras situações, que presos em regime semi-aberto permaneçam no regime fechado porque inexistem vagas, devendo-se conceder o aberto. Vale dizer, não se pode aceitar passivamente estabelecimentos penais em condições precárias e sem habitabilidade, devendo-se interditá-los. Deve-se propiciar aos apenados analfabetos a assistência jurídica. Necessita-se, repensar a constitucionalidade dos aspectos subjetivos para concessão de benefícios, diante das condições que se propicia, deixando-se de exigir-se verdadeiros processos de canonização dos segregados.

O artigo 66 da LEP estabelece em nove incisos a competência da execução. Porém, os incisos VI, VII e VIII são os mais difíceis de serem satisfeitos, por se revestirem de roupagem administrativa no momento em que seja necessário promover a apuração de responsabilidade, pelo não cumprimento dos preceitos fundamentais da execução da pena. A interdição de estabelecimento penal é um ato extremo, quando a precariedade de suas instalações levarem ao comprovado perigo à vida do interno, ou quando as decisões administrativas constituírem em atos que promovam a degradação da pessoa do preso. O inciso VI remete a uma série de providências, não só de natureza jurídica como de natureza social, formando um conjunto de medidas capazes de satisfazer a harmonia do preceito estabelecido.

Ao juiz, não basta ser o homem ou a mulher travestida de justiça; deve ser o arquiteto das ações na satisfação dos direitos individuais e coletivos. Com esta visão pode-se unir forças com a sociedade, através dos Conselhos da Comunidade, Patronatos, com os operadores do direito, profissionais da área psicossocial, do Sistema prisional e áreas afins, em busca de uma Execução Penal onde a direção primordial seja o próprio preso e a dignidade humana seja a regra e não a exceção.


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Sobre o autor
Henrique Viana Bandeira Moraes

Servidor público federal. Bacharel em Direito pela UNEB. Especialista em Ciências Criminais pela UFBA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Henrique Viana Bandeira. A atuação do juiz da execução penal na preservação dos direitos do preso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3512, 11 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23626. Acesso em: 19 abr. 2024.

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