2 O PODER CONSTITUINTE
2.1 O Estado e a Teoria do Poder Constituinte
Inicialmente, cumpre observar que as produções intelectuais a respeito do Estado surgem em duas vertentes, de um lado as teorias idealistas, que buscam a compreensão de um Estado a partir da imaginação de sua organização ideal, e de outro lado as teorias realistas, que buscam a compreensão do Estado a partir da experiência humana, a verdade efetiva que a história ensinou (BOBBIO, 2000b).
Das teorias realistas que se sobressaíram no decorrer da história, distinguem-se ainda duas outras que vale destacar neste ponto pela sua importância na evolução do pensamento sobre o Estado. De um lado há o modelo de compreensão do Estado como uma construção artificial, de outro como a natural evolução do estado de natureza, tendo a família como o primeiro núcleo organizado. O primeiro parte de um homem isolado e livre que passa a viver em sociedade, o segundo parte do homem como um “animal político”, conceito de Aristóteles de Estagira (BOBBIO, 2000b). O ponto de partida do jusnaturalismo e do contratualismo, dessa forma, nasce da concepção artificial do indivíduo isolado num estado de natureza conforme descrito por Rousseau na obra “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”.
À margem destas discussões possui relevante importância, ainda, a base racional presente em todas as teorias, mas que vem tomando ascendente posição na teoria do Estado. A razão sempre foi contraposta ao estado de natureza, tanto em Hobbes, quanto em Spinoza; enquanto o estado de natureza é visto como o império das paixões sobre a razão, dentro do Estado é posta a razão refreando as paixões. Enquanto no estado de natureza, no não-Estado, prevalece a guerra, a barbárie e a bestialidade, no Estado há o domínio da razão, da paz, da socialidade, da ciência (BOBBIO, 2000b). Mas esta transição não é instantânea como na teoria contratualista, mas passa por um processo. Segundo Bobbio (2000b, p. 121), “Podemos até mesmo afirmar que a racionalização do Estado se converte na estatização da razão, e disso nasce a teoria da razão de Estado, como a outra face do Estado racional.”.
A partir destas considerações importantes para o posicionamento teórico, tem lugar a análise da origem do Estado, sempre ligado, de alguma forma às lutas dos agrupamentos humanos pela hegemonia sobre os outros grupos. Neste ponto faz-se importante a visão de Weber sobre o tema, conforme segue:
‘Todo Estado se funda na força’, disse um dia Trotsky a Brest-Litovsk. E isso é verdade. Se só existissem estruturas sociais de que a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria também desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se denomina “anarquia”. A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado – não haja a respeito qualquer dúvida -, mas é seu instrumento específico. (WEBER, 2007. p. 56).
Embora seja verdade que o Estado não nasce de uma construção ideológica racional, que seja resultado da história em tentativas de simular justificações para o fato de o poder ser exercido através da força de quem a detém, é verdade também que ele depende de uma justificação, ao menos aparente, que legitime o seu funcionamento, justificação esta que, com o advento do Estado de Direito, deve estar disposta no ordenamento jurídico. Esta justificação, embora a princípio encenada, nos moldes do processo de racionalização histórica do Estado, conforme indicado anteriormente, implica necessariamente um aperfeiçoamento destes mecanismos de exercício do poder.
É neste contexto que emerge a democracia, juntamente com o poder constituinte do povo, como a justificativa que é, hoje, utilizada na quase totalidade do planeta e que é, segundo o desejo de Norberto Bobbio (2000b), o destino do mundo. A concepção da democracia trouxe uma reviravolta na tradição estatal, mudando o fundamento do Estado do poder, da força, da ordenação, para um fundamento mais racional e ético, o indivíduo racional como o juiz de seu melhor interesse e a vontade destes em conjunto como o melhor juiz do interesse coletivo, conforme a razão prática kantiana. Segundo Bobbio:
[...] o indivíduo racional, racional no sentido de ser capaz de avaliar as consequências não apenas imediatas, mas também futuras das suas próprias ações, e portanto de avaliar seus próprios interesses em relação aos interesses dos outros, e com estes compatíveis, em um equilíbrio instável mas sempre passível de ser restabelecido através da lógica, característica de um regime democrático, do compromisso. Para dar o habitual exemplo que está na base da moral racional que é a moral kantiana: eu posso ter interesse imediato em transgredir um pacto, e aproveitar-me desse modo do fato de que outro o observou, mas não posso enquanto homem racional querer viver em um mundo no qual todos os pactos sejam transgredidos, porque em um Estado assim seria impossível qualquer forma de convivência pacífica. [...] A justificação da democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como a melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz do seu próprio interesse. (BOBBIO, 2000b, p. 423-424).
Assim, a soberania do Estado foi-se diluindo segundo a evolução do racionalismo e o ganho de espaço dos diferentes grupos dentro do Estado no decorrer da história. A soberania do monarca passou a ser soberania do Estado, que passou a ser a soberania da nação, que passou a ser a soberania do povo.
Assim, a Constituição, entendida em sentido material como o conjunto de normas referentes à organização do poder, à composição e ao funcionamento da ordem política (BONAVIDES, 2011), passou a ter sua base de legitimação e, portanto, o titular do poder do Estado, como o povo. Essas mudanças trazem profundo caráter ideológico e que, na quase totalidade das vezes são encenações de um domínio real do poder por entidades outras que não o povo. De qualquer forma, atualmente, poder que não esteja racionalmente justificado pelo poder constituinte do povo, não é poder legítimo, portanto, inválido.
2.2 O Poder Constituinte Originário
A teoria do poder constituinte foi criada por Emmanuel Joseph Sieyès no final do século XVIII quando era grande o clima de mudança institucional, principalmente no que concerne ao poder estatal. Na análise do poder constituinte originário é necessário observar que o poder constituinte não se situa em qualquer código ou constituição, é político, está na realidade da vida, é anterior às normas e é dele que provêm todas elas, é a origem do ordenamento jurídico e do Estado. Neste ponto cumpre destacar que esta construção aparentemente dissociada da realidade é a única que satisfaz a razão e, embora possa, no mundo da vida, apresentar-se de forma diferente, haverá aí sempre uma construção da violência, de uma vontade que, embora prevaleça e gere efeitos, não possui uma justificação racional não sendo passível de admissão pelo indivíduo racional. Segundo Habermas:
Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do poder político, e sim, a ligação com o direito legitimamente estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade. (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 172).
Dessa forma, o poder constituinte, emanando do indivíduo racional, conforme explicação de Bobbio acima, não comporta limitações exteriores, nem mesmo pela ordem anteriormente produzida, pois não sai do indivíduo, mas dele emana e dele depende. Nas palavras de Bonavides (2011, p. 152), “ainda introduzido na Constituição, o poder constituinte se conservaria sempre originário e pleno, não conhecendo limitações materiais.”. É assim que, segundo Paulo Bonavides, o poder constituinte originário segue ativo após a feitura do texto constitucional vigiando a sua criação e a atualizando, ainda que de forma sutil. Nas palavras de Bonavides:
Não é o jurista profissional, de formação positivista, que descobre a variedade do poder constituinte em tela, senão aquele que, dotado de ampla visão sociológica, vislumbra nos acórdãos das cortes constitucionais o exercício de um tal poder constituinte, anônimo, silencioso, mas sumamente eficaz. Exercita-se por múltiplas vias. Fruto às vezes da função criadora dos juízes que interpretam a Constituição formal à luz de uma “compreensão prévia”, ele nasce impregnado de realidades existenciais, como os juristas da tópica excelentemente assinalaram em profundas reflexões de filosofia do direito. Manifesta-se também difusamente, fora dos tribunais, à margem do texto constitucional, com a mesma força normativa. Prende-se nesse caso a instâncias mais recuadas, familiaríssimas às Constituições costumeiras.
Faz ele a estabilidade e a permanência das criações constitucionais, mantém atualizada a Constituição, consolida o poder legítimo ou pelo menos tende a consolidá-lo e produz fenômenos de longevidade como a Carta de Filadélfia, que já comemorou duzentos anos de existência. É um poder constituinte material em contraste com o poder constituinte formal. (BONAVIDES, 2011, p. 187-188).
Essa visão de Bonavides é observável na prática atual dos tribunais constitucionais denominada mutação constitucional, todavia, em que pese o respeito ao autor, esta visão carece de justificação pós-positivista, pois apesar de haver casos onde esse pretenso poder siga o poder constituinte originário, atualizando o texto obsoleto em antecipação às formas jurídicas de o fazê-lo, há uma total falta de critério para a verificação dos casos onde ele vai contra o poder constituinte originário, fenômeno que faz voltar a incerteza do jusnaturalismo, e enseja uma atuação autoritária e ilegítima do judiciário. O judiciário não é, de forma alguma, campo para atuações de natureza política, muito embora seja imanente à interpretação a tarefa criadora de direito. Numa análise que extrapola o campo técnico jurídico, já ingressando no campo sociológico, mas que se mostra necessário fazer, percebe-se que a mutação constitucional inaugura algo que pode-se chamar de populismo do judiciário ou paternalismo do judiciário observado que, embora, muitas vezes (nunca todas), tal conduta reflita o real entendimento do povo e a caducidade da norma, produz também, inexoravelmente, a retirada da tensão entre norma e vontade popular, tensão esta que faz brotar os movimentos políticos genuínos pelas vias ordinárias permitindo que o povo reconheça o poder que possui, aperfeiçoando a democracia e o Estado.
Por outro lado, a visão meramente positivista, que excluiria esse caráter permanente do poder constituinte produz, também, a incongruência apontada por Friedrich Müller:
A legitimidade ser-lhes-ia insuflada uma primeira e única vez; a partir de então eles poriam e disporiam violentamente acerca do povo, de posse dos pouvoirs constitués por força da Constituição. Mas não há poder constituinte do povo onde o poder contempla o povo em alienação; onde o povo não encontra a si mesmo, mas apenas a violência de um Estado que mantém um povo para si. (MÜLLER, 2004, p. 26-27).
A antinomia positivista é clara, todavia, embora o texto legal não seja capaz de suprimir o poder constituinte originário, é nele que se sustenta o ordenamento jurídico. O pós-positivismo traz uma visão intermediária que, embora mantenha a base no ordenamento jurídico positivo, permite ao intérprete direcioná-lo no sentido do dever-ser na medida do permitido pela razão e a racionalidade do sistema jurídico, ou seja, o intérprete visa o dever-ser, ou seja, os valores impressos na Constituição do Estado, mas tem como limite de atuação o poder-ser, conforme os limites positivos traçados no próprio ordenamento jurídico (MARANHÃO, 2009).
O caráter ilimitado do poder constituinte é classicamente apontado pela doutrina, sendo uma importante forma de compreensão da natureza de tal poder, todavia outros questionam a sua validade enquanto atualmente a dinâmica internacional cria obrigações entre os Estados que estão num outro nível de normas, o que faz questionar se esta ilimitação é realmente plena. Na mesma senda ainda se confronta a ilimitação à teoria da vedação do retrocesso, teoria segundo a qual não é possível uma volta ao ordenamento jurídico de normas que violem os direitos humanos e fundamentais que já se encontram protegidos e que foram conquistas históricas. De qualquer o caráter da ilimitação do poder constituinte é um importante indicativo da natureza do poder que encerra, ainda seja questionável o alcance deste poder.
Dessa forma, é possível concluir que o poder constituinte originário é ilimitado, incondicionado, político (extrajurídico) e permanente, não se exaurindo no momento da criação da constituição, mas permanecendo junto ao seu titular na realidade da vida, dependendo apenas de instrumentos próprios para a sua manifestação, instrumentos estes que, segundo a Constituição brasileira são: o sufrágio, o voto, o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular.
2.3. O Poder Constituinte Derivado
O poder constituinte derivado é o poder de modificar a Constituição após a sua criação pelo poder constituinte originário, sendo condicionado e limitado às formas de manifestação e de objeto indicados no próprio texto constitucional, já que não possui caráter político como o originário, apenas o caráter jurídico. Segundo Silva (2011) ele existe apenas pela dificuldade de se convocar o poder constituinte propriamente dito (o originário) todas as vezes que houvesse necessidade de discussão de reformas à Constituição, assim o constituinte originário estabeleceu na própria constituição a competência de outro órgão para executar tal função, o que no Brasil é feito pelo Congresso Nacional. A doutrina também fala do poder constituinte derivado decorrente como o responsável pela estruturação das constituições estaduais, respeitando os princípios básicos que devem manter a unidade nacional (COSTA, 2001).
A reforma constitucional é o termo utilizado para qualquer alteração no texto e é subdividida em dois tipos: a emenda e a revisão. Segundo José Afonso da Silva (2011), a emenda constitucional é a modificação de certos pontos permitidos pelo constituinte originário enquanto a revisão é uma alteração anexável, exigindo formalidades e processos mais lentos e dificultados que a emenda.
A CRFB/88 pode ser classificada como uma constituição rígida já que exige um procedimento mais dificultoso para sua reforma do que o procedimento para alteração legislativa, dificuldade esta que consiste, no que se refere à emenda à CRFB/88, em limitações quanto à iniciativa, ao procedimento, quanto à circunstância e quanto à matéria, todas previstas no art. 60 da mesma.
Quanto ao procedimento, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) só é aprovada após discussão e votação em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional, ou seja, Câmara dos Deputados e Senado Federal, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. Quanto à circunstância, a Constituição não poderá ser emendada quando houver intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Quanto à matéria, é vedada a PEC tendente a abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.
No que se refere à iniciativa, a PEC só poderá ser proposta pelo Presidente da República, por um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação por maioria relativa de seus membros em cada uma delas.
Neste ponto faz-se interessante notar que em outros países as emendas aprovadas sujeitam-se ainda a referendo, como é o caso da Suíça e da Itália, sendo que neste primeiro e também em Portugal é admitida a proposta de emenda por iniciativa popular (cf. SILVA, 2011, p. 63). Esses instrumentos, conforme amplamente discutidos anteriormente fornecem maior grau de legitimidade ao ordenamento jurídico por ligarem diretamente o poder constituinte ao povo. Importante notar também que durante a elaboração CRFB/88 haviam projetos que admitiam a iniciativa e o referendo populares em matéria de emenda à Constituição, todavia os mesmos foram rejeitados pelo plenário (SILVA, 2011, p. 63), o que indica que estas formas não só deixaram de aparecer no texto, mas foram voluntariamente excluídas pelos congressistas da Assembleia Constituinte.
Vê-se, pois, que no Brasil o poder constituinte derivado se deposita no Congresso Nacional, sendo este um poder constituinte constituído já que seus poderes foram dados pelo poder constituinte propriamente dito, ou seja, o poder constituinte originário.