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A proposta de Emenda Constitucional de iniciativa popular no direito brasileiro

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21/03/2013 às 15:10
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3 A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL DE INICIATIVA POPULAR

3.1. A Iniciativa Popular no Brasil

A Iniciativa Popular é prevista na CRFB/88, art. 14, III, como um instrumento da soberania popular, termo este que já traz, num Estado Democrático, um pleonasmo ínsito vez que todo o poder emana do povo: se não há poder que não emane do povo, a única soberania possível é a soberania do povo ou soberania popular. Neste sentido, segundo José Luiz Quadros de Magalhães (2002), soberania na ordem interna significa poder supremo, ou seja, que não existe qualquer poder paralelo ou acima daquele poder. Na mesma senda Kildare Gonçalves de Carvalho (2005, p. 381) identifica soberania como “o poder de mando de última instância numa sociedade politicamente organizada”. Aqui fica clara a semelhança de características do poder soberano do povo e do poder constituinte originário permanente, conforme indicado no capítulo anterior, o que permite concluir pela identidade de conceitos, sendo, um e outro, o mesmo. Parece indicar tal identidade de conceitos a conclusão de Hermann Heller: “É soberano o Poder (Constituinte) que cria o direito = a organização estatal” (HELLER, 1968, p. 336 apud FARIAS, 1988, p. 54). No que se refere à soberania, nunca é demasiado relembrar o valor dado a este fundamento na CRFB/88 posicionando-a no primeiro inciso do artigo primeiro que lista os fundamentos do Estado brasileiro.

Neste sentido, parece reforçar a ideia de identificação dos instrumentos da soberania com a manifestação do poder constituinte do povo, incluindo a iniciativa popular, o fato de a Lei 9.709/98, que regulamenta os incisos do art. 14 da CRFB/88, estabelecer que o projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por qualquer vício de forma, em identificação clara com a característica incondicionada do poder constituinte originário.

Voltando, entretanto, a visão do poder constituinte soberano para o poder constituído limitado, nota-se que não aparece na CRFB/88 a Iniciativa Popular para assuntos constitucionais, mas apenas para propostas de lei, oportunidade em que o art. 61, §2º da CRFB/88 estabelece as condições para tal iniciativa consistentes em subscrição da proposta por, no mínimo um por cento do eleitorado nacional distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. E não é só isso, conforme indica José Afonso da Silva (2011) a emenda constitucional por iniciativa popular era prevista no Projeto apresentado pela Comissão de Sistematização em seu art. 74, § 2º, todavia tal previsão foi derrubada no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, excluindo expressamente tal instrumento do texto da Constituição Federal de 1988.

Outro ponto de destaque na situação da iniciativa popular no ordenamento jurídico brasileiro diz respeito à eficácia da sua norma definidora. Com efeito, conforme doutrina de Paulo Bonavides (2011), as normas constitucionais diferem quanto à eficácia, podendo ser classificadas em: normas programáticas, normas de eficácia diferida e normas imediatamente preceptivas. As primeiras estabelecem programas de comportamento ao legislador, vinculando-o, não sendo criadora de institutos ou nem determinam com clareza as bases das relações jurídicas, as últimas são as normas que diretamente regulam as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado. Já as normas de eficácia diferida, entre as quais se encontra o artigo 14 da CRFB/88, trazem definida, intacta e regulada a matéria que têm como objeto, aguardando, entretanto, apenas meios técnicos ou instrumentais a serem definidos na lei para exaurirem a sua regulação, ou seja, lhe darem inteira eficácia, dessa forma, a iniciativa popular é uma forma de exercício da soberania popular, cabendo à lei definir a sua instrumentação e meios técnicos de realização. A classificação de Bonavides não difere essencialmente à clássica separação feita por José Afonso da Silva que divide as normas em: normas de eficácia limitada, dentre as quais se encontram as normas de princípio institutivo e as normas de princípio programático; as normas de eficácia plena; e as normas de eficácia contida. Neste ponto cabe a lição de José Afonso da Silva sobre as normas de eficácia contida: “Enquanto não sobrevier legislação posterior que a restrinja, sua eficácia é plena” (SILVA, 1987 apud CARVALHO, 2005, p. 215).

No caso da iniciativa popular a regulação veio através da Lei 9.709/98 que limita-se a determinar que é possível apenas um assunto ao projeto de lei, que ele não padecerá de vício de forma, conforme referido acima, no mais, repete a redação do art. 61, § 2º da CRFB/88 que determina que o projeto de lei de iniciativa popular deve ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

3.2 A PEC de Iniciativa Popular

Iniciando a discussão sobre a possibilidade de PEC de iniciativa popular no direito brasileiro, independentemente de qualquer alteração legislativa, faz-se oportuno trazer o que sustenta José Afonso da Silva, doutrinador segundo o qual, os institutos da soberania popular, a saber, plebiscito, referendo e iniciativa popular são institutos cujo uso vai depender do desenvolvimento e da prática da democracia participativa, mas que a partir de uma interpretação sistemática com base em normas gerais e princípios fundamentais da Constituição admite-se a iniciativa popular de emendas, caso em que as percentagens previstas no §2º do art. 61 serão invocáveis (SILVA, 2011, p. 64).

A primeira afirmação do autor parece confirmar toda a teoria que se tem atualmente em torno da democracia, entendendo-a como processo em aperfeiçoamento dinâmico em direção à, cada vez melhor, ampliação dos instrumentos de participação.

No que se refere à interpretação sistemática, é necessário retomar os princípios da hermenêutica constitucional que permitam avaliar a construção de José Afonso da Silva para que possa se afirmar com segurança a permissão constitucional da PEC de iniciativa popular.

3.2.1 A Hermenêutica Constitucional

Segundo Mendes, Coelho e Branco (2008), pode-se identificar um grande princípio hermenêutico que baliza todo o ordenamento jurídico, sendo verdadeiro princípio mor para a compreensão do direito, trata-se do postulado do legislador racional. Segundo este postulado deve-se entender o legislador como ente racional, o que acarreta o seu entendimento como um ente singular, coerente, consciente, onisciente, preciso e operativo, dentre outros predicados que permitam entender o direito como a instância da razão da sociedade. Estas construções remontam às teorias do Estado-razão que entendem o Estado como domínio da razão. Hegel, teórico da razão, colocava o Estado como o “racional em si e por si”, Hobbes em sua obra “De cive” escreve: “Fora do Estado é o domínio das paixões, a guerra, o medo, a pobreza, a incúria, o isolamento, a barbárie, a ignorância, a bestialidade. No Estado é o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decência, a socialidade, o refinamento, a ciência, a benevolência” (BOBBIO, 2000b, p. 120-121)[1]. Nesta mesma senda, Spinoza arremata que o Estado, e apenas o Estado, consente ao homem aplicar a suprema lei da razão, que é a lei da própria conservação, ele deve comportar-se, se quer sobreviver, diversamente do que acontece aos homens no estado de natureza, racionalmente (BOBBIO, 2000b, p. 120-121)[2].

Deste preceito extraem-se outros princípios de interpretação que descrevem e identificam as propriedades racionais de todo o ordenamento jurídico (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 112).

Unidade da constituição: segundo este princípio interpretativo, a Constituição deve ser entendida como um corpo único, formando um conjunto todo coerente indicador de uma só vontade para cada questão posta sob seu cotejo. Esse princípio indica também que todas as contradições no texto constitucional são apenas aparentes, devendo ser feito um juízo de adequabilidade onde todo o corpo se harmonize em um só mandamento coerente para os problemas que surgirem (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 114).

Concordância prática: decorre do princípio da unidade da Constituição e indica que as normas constitucionais, em situações de concorrência entre bens e valores, adotará solução que otimize estes sem que acarrete a negação de qualquer destes bens ou valores. Assim, ainda que uma norma textualmente contradiga outra norma constitucional nunca haverá supressão de uma delas ou anulação de seu significado, mas uma concordância entre ambas até o melhor ponto possível que preserve ambas (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 114-116).

Máxima efetividade: trata-se de princípio que indica a procura pela otimização da eficácia das normas constitucionais, indica ao intérprete que procure densificar os preceitos constitucionais, que não esqueça qualquer pedaço do texto ou o trate, como diria Ferdinand Lassale, como uma mera folha de papel, mas lhe dê efetividade (CARVALHO, 2005, p. 249; MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 118-119).

Interpretação conforme: este princípio indica que, entre os diversos sentidos que possa adotar uma norma, deve-se adotar aquele que torne esta norma constitucional, abandonando aquele significado que a eive de inconstitucionalidade, buscando sempre a preservação das normas em respeito ao legislador e à presunção de constitucionalidade das normas. O limite da interpretação conforme, que tem ampla aceitação e uso no Supremo Tribunal Federal, é a inversão dos objetos, ou seja, em vez de interpretar a lei em face da Constituição, interpreta-se a Constituição em face das leis, muitas vezes quebrando a hierarquia das normas e desprestigiando a máxima efetividade (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 119-120). Sobre a interpretação conforme ainda pode-se frisar as considerações de Bonavides:

Os limites entre a interpretação e a criação do direito são fugazes, inseguros, movediços, passando-se às vezes quase imperceptivelmente da interpretação declaratória para a interpretação constitutiva, e por via desta – o que é mais grave – para a interpretação contra legem. Corre o juiz ou o intérprete o risco de não interpretar a lei, mas de reformá-la. De sorte que, em assim acontecendo, suprime-se uma das maiores vantagens de interpretação conforme a Constituição, qual seja, a de afiançar a sobrevivência da lei, não lhe declarando a nulidade. (BONAVIDES, 2011, p. 523).

Além desses princípios consagrados no direito constitucional, Carvalho (2005) ainda aponta métodos desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência a partir de critérios ou premissas filosóficas, metodológicas e epistemológicas, o que se passa a identificar.

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O método jurídico leva em conta os cânones tradicionais da hermenêutica consistentes, entre outros, no elemento filológico (literal, gramatical, textual), no elemento histórico e no elemento teleológico (racional) (CARVALHO, 2005).

O método tópico-problemático, surgido à partir de uma corrente específica que propunha uma nova forma de pensar a solução de questões jurídicas, tendo como foco o problema concreto e métodos de sugestão de soluções, desprivilegiando, entretanto, o sistema jurídico (CARVALHO, 2005).

O método hermenêutico-concretizador parte de uma compreensão do texto constitucional iniciado pela pré-compreensão do seu sentido pelo intérprete e direcionado à concretização da norma para e a partir de uma situação histórica concreta. Busca, enfim, destacar a forma como o intérprete reúne texto e contexto (CARVALHO, 2005).

O método científico-espiritual indica uma conduta do intérprete no sentido de buscar o sentido e a realidade dos valores subjacentes ao texto constitucional num processo de integração do mesmo (CARVALHO, 2005).

O método normativo-estruturante, por sua vez, indica ao intérprete dois elementos de concretização: um formado pelo resultado da interpretação e outro formado pelo referente normativo, ou seja, o texto e a realidade social que o mesmo visa conformar (CARVALHO, 2005).

Vê-se que todos os princípios e métodos interpretativos, consagrando os princípios da certeza e da segurança jurídica (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008), giram em torno da racionalidade da Constituição que, por sua vez, decorre da racionalidade do Direito.

3.2.2 A Interpretação Sistemática sobre a PEC de Iniciativa Popular

Segundo Carvalho (2005) a interpretação pelo elemento sistemático trata-se da utilização, como elemento interpretativo, do elemento lógico. Analisando a jurisprudência e os conceitos de vários doutrinadores, percebe-se que o significado da interpretação sistemática liga-se diretamente à concepção da unicidade, não só da Constituição, mas de todo o ordenamento jurídico, de tal forma que possa se considerar o ordenamento jurídico como um sistema, este sistema, por sua vez, possui o caráter geral de ser racional-lógico.

Neste sentido, a interpretação sistemática revela-se não como determinado método de interpretação à escolha do hermeneuta, mas verdadeiro mandamento interpretativo sobre o mesmo, impedindo concepções limitadas ou deficientes do ordenamento jurídico e da racionalidade própria do direito, principalmente e com muito mais ênfase, após a emergência do pós-positivismo.

Neste ponto, já é possível analisar todo o sistema jurídico em torno da PEC de iniciativa popular.

Iniciando pelo seu fundamento base tem-se o parágrafo único do art. 1º da CRFB/88, norma que conecta o poder constituinte originário, de origem política, extrajurídica, estabelecendo a base de legitimidade de todo o ordenamento jurídico positivado na Constituição, identificando o povo como a instância máxima do poder do Estado, nos moldes exigidos numa democracia participativa, ou seja, onde o poder (do povo) é exercido por meio de representantes ou diretamente.

Diferenciando o conceito de povo de outros semelhantes, vale destacar voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandovski, na ADI 2650, em que o Ministro faz a distinção entre povo, população e nação resumindo a produção doutrinária sobre a teoria do Estado e da Ciência Política de forma simples, mas precisa;

Povo é um conceito jurídico-político, e refere-se ao conjunto do (sic) cidadãos, aqueles que expressam a soberania popular. População é um conceito numérico, um conceito demográfico, refere-se a um grupo de pessoas localizados precisamente num determinado território, no espaço e também no tempo histórico. E há um terceiro conceito, muito discutido entre esses estudiosos, que é o conceito de nação, o qual distingue-se dos demais por ser um conceito sócio-antropológico: é o grupo de pessoas que tem um (sic) identidade cultural, étnica ou até racial eventualmente. (BRASIL, 2011, p. 41, grifo nosso).

Ressalta-se do conceito apresentado pelo Ministro o caráter jurídico-político do conceito de povo, ou seja, ele está ao mesmo tempo na realidade da vida e dentro da ficção do direito, sendo que o caráter político é anterior ao jurídico, pois a este cria e empresta legitimidade.

Destaca-se também, agora numa esfera totalmente jurídica, que a Constituição colocou a soberania e a cidadania, elencados entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito. O primeiro, a soberania, um bem jurídico a ser observado e preservado tanto na ordem interna quanto na ordem externa, significando que não há outro poder superior àquele, ou seja, é incapaz de ser sobrepujado ou limitado. O segundo, a cidadania, um valor constitucional que indica a participação efetiva das pessoas na formação política da vontade estatal e nas demais formas de exercício do poder do Estado. A cidadania é utilizada em dois sentidos, um amplo e outro restrito, em seu sentido restrito identifica-se com o próprio sufrágio, ou seja, o direito de escolher seus representantes, em sentido amplo significa algo além disso, identificando o indivíduo como um sujeito integrante do Estado e participante de seu funcionamento geral, seja pelo sufrágio, pelos instrumentos da soberania popular já referidos, pela movimentação dos serviços ou recursos públicos de solução de problemas, pela fiscalização dos seus representantes, pela própria conduta ética em seu procedimento, conforme já afirmava Kant (2011) em seu imperativo categórico e muitas outras formas de efetivamente se tornar parte do Estado, não só uma vítima dos erros deste (cf. SILVA, 2011).

Propriamente sobre a iniciativa de emendas constitucionais a Constituição estabelece em seu artigo 60, cabeça e incisos, os legitimados à propositura de emendas, sendo eles o Presidente da República; um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação por maioria relativa em cada uma delas (BRASIL, 2012). Como se nota, a Constituição não faz menção à iniciativa popular entre os legitimados à iniciativa de Proposta de Emenda Constitucional, estabelecendo um rol claramente taxativo que exclui o povo para tal procedimento, e mais, conforme indicado por José Afonso da Silva (2011), tal hipótese fora recusada expressamente pelo legislador constituinte.

Prosseguindo na análise do texto constitucional, tem-se o art. 14 da CRFB/88 que estabelece as formas de exercício da soberania popular, formas dentre as quais se encontra a iniciativa popular a ser exercida nos termos da lei, conforme texto já transcrito acima. A expressão nos termos da lei identifica a norma claramente como norma constitucional de eficácia diferida, padecendo de regulamentação que lhe dê operacionalidade. A norma que regula a iniciativa popular é a Lei 9.709/98 que nada mais faz do que trazer, em um singelo artigo sobre o tema, a repetição do quórum para iniciativa popular de lei, a limitação a um assunto para a iniciativa popular e a sua imunidade aos vícios de forma. Neste ponto cumpre destacar que eventual previsão de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular em sede de lei traria um problema estrutural ainda mais difícil de ser resolvido já que a matéria é tratada expressamente na Constituição, o que faria com que a lei invadisse um espaço tutelado pela Constituição incompatível com nosso sistema hierárquico-normativo.

De toda forma, apesar da impossibilidade de ultrapassar o limite do espaço constitucional, a crítica à Lei 9.709/98 é feita por Bonavides que se manifesta nos seguintes termos:

[...] a fragilidade e insuficiência dos conteúdos participativos da lei em tela certificam manifesta ofensa ao princípio da legitimidade, tendo-se em vista que o legislador sufocou e invalidou o desígnio constituinte de fazer do povo, no exercício da democracia direta, a peça chave do regime, qual se infere da interpretação da letra e do espírito principiológico que move o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal (BONAVIDES, 2003, p. 108 apud CARVALHO, 2005, p. 148, grifo nosso).

Em atenção à interpretação pelo elemento gramatical e histórico, o silêncio da Constituição sobre a possibilidade de projeto de emenda constitucional de iniciativa popular é claramente um silêncio eloquente o que é equivalente à afirmação de que a Constituição proíbe o projeto de emenda constitucional de iniciativa popular. A pergunta é: a Constituição pode proibir a emenda Constitucional de Iniciativa Popular? A resposta é claramente positiva vez que o poder constituinte que criou a Constituição é ilimitado e soberano. A iniciativa popular, por ser uma manifestação apenas de parte do titular do poder constituinte, e não a manifestação do seu titular enquanto tal, com este não se confunde, sendo passível de limitação por parte do soberano representado na Constituição escrita.

Há na Constituição, entretanto, um ponto que impede a conclusão acima. Trata-se da identificação feita entre exercício da soberania popular e iniciativa popular. O próprio constituinte originário optou por equiparar o exercício de seu poder à manifestação de uma fração dos cidadãos pelo instrumento Iniciativa Popular, fato que traz uma reviravolta no campo interpretativo em relação à iniciativa popular.

Se a soberania se exerce pela Iniciativa Popular e a iniciativa popular regulada não possui qualquer viés de soberania/poder constituinte do povo, por ser-lhe vedada a penetração em matéria constitucional, então há uma contradição impossível de se conceber na Constituição, sendo que esta contradição é apenas aparente, por mais evidente que se apresente, conforme ampla doutrina sobre hermenêutica constitucional já indicada.

Neste ponto, fracassam as regras tradicionais de hermenêutica e surge a necessidade de se buscarem outros meios de solução de problemas interpretativos, dando margem a possíveis interpretações subjetivas. Segundo a concepção pós-positivista, entretanto, estas posições não se sustentam. A interpretação, assim, há de se conduzir segundo os princípios aplicáveis, pelas construções da razão e seus imperativos. Neste ponto, são destacáveis as ponderações de Bonavides:

Dissolvendo na casuística a lei constitucional, a moderna hermenêutica provoca do mesmo passo uma incerteza ou insegurança manifesta com respeito ao Direito Constitucional, às suas formas, institutos, técnicas e conceitos. Presume-se, com apreensão de todos, que o juiz, investido de poderes decisórios extremamente dilatados, usurpe a função constituinte do povo ou da representação democrática legítima. (BONAVIDES, 2011, p. 485).

No que se refere aos princípios envolvidos, tem-se o princípio democrático (art. 1º da CRFB/88), o princípio da cidadania (art. 1º, II da CRFB/88). Esses dois princípios indicam, sem sombra de dúvida, a busca do Estado brasileiro por uma pluralização dos espaços de criação da vontade estatal, pela inclusão cada vez maior de indivíduos nas discussões referentes à atuação do Estado.

Como já referido anteriormente, a democracia não se refere a um bem jurídico, a um conceito estático, mas refere-se a um processo a ser aperfeiçoado gradativamente pela criação de instrumentos que permitam ao povo a participação no poder estatal. A democracia também possui uma justificação racional, baseando-se na racionalidade do indivíduo e na sua capacidade de autodomínio e autodeterminação, conforme lição de Norberto Bobbio já exposta.

Friedrich Müller, inconclusivamente, entende que, caso se entenda o poder constituinte em termos diretamente fáticos, ou seja, independente de qualquer intermediário e exercido diretamente pelo povo, “a iniciativa popular, a realização e a avaliação deveriam estar também ativamente nas mãos do povo.” (MÜLLER, 2004, p. 38). O autor também analisa essa tensão entre o domínio fático exercido por entidades outras que não o povo na sociedade e o domínio ficto-jurídico, mas único capaz de justificar uma sociedade legitimamente organizada nos seguintes termos:

Por esta razão e com vistas a esse fato, nada contra Locke, Sieyès e seus sócios. Mas o que desrecomenda fazer do “poder constituinte do povo” enquanto conceito finalista dos dominadores (do povo), a serviço dessa mesma dominação, finalmente um conceito do povo para a sua autodominação?

Nada; a não ser a “vontade” (os interesses, as teorias, os conceitos) dos dominantes. Nada de insuperável (para o povo), portanto. (MÜLLER, 2004, p. 30)

Malgrado estes valores constitucionalmente tutelados e estes imperativos éticos indicadores da adoção de instrumentos de participação popular junto ao Estado, sob um paradigma pós-positivista do direito, não se admite mais a concretização direta de valores, mas a sua realização vai depender dos limites traçados pelo próprio ordenamento jurídico. Não se faz uma ponderação do dever ser, mas do poder ser segundo os limites traçados na própria constituição (MARANHÃO, 2009).

Analisando os limites traçados na Constituição percebe-se que a norma que aparentemente se contraporia à Iniciativa Popular em matéria Constitucional é a própria ausência de texto expresso no art. 60 sobre tal possibilidade, o que indica a ausência de proibição expressa neste sentido, havendo certa margem de possibilidades interpretativas que permitam harmonizar toda a Constituição material por este caminho.

Por estas razões é possível afirmar que, segundo uma interpretação sistemática da Constituição sob os moldes do pós-positivismo, ou seja, sem qualquer influência metafísica ou sob a influência do concretismo de valores subjetivos, é possível afirmar que a Constituição brasileira admite a iniciativa popular para proposta de emenda constitucional.

Sobre a falta de lei que regulamente tal disposição há que se levar em conta a máxima efetividade das normas constitucionais devendo ser feita uma interpretação conforme a Constituição no sentido de adequar a lei ao entendimento constitucional, entendendo-se por “lei”, na redação das normas sobre o projeto de lei de iniciativa popular, o conjunto das normas passíveis de iniciativa popular, conforme determina a Constituição.

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Sobre o autor
Luan José Silva Oliveira

Advogado. Pós-graduando em História da Filosofia pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luan José Silva. A proposta de Emenda Constitucional de iniciativa popular no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3550, 21 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23991. Acesso em: 25 abr. 2024.

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