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O indiciamento e o Supremo Tribunal Federal

06/01/2014 às 11:50
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O indiciamento deverá ser devidamente fundamentado, tal como a obrigação que têm os magistrados e membros do Ministério Público de fundamentarem, respectivamente, as suas decisões e pronunciamentos, sob pena de a peça informativa retornar à Delegacia.

Sempre se disse (inclusive eu), e com razão, que indiciado é aquele sujeito de direitos (e não objeto) que está sendo investigado nos autos do inquérito policial ou de qualquer outra peça investigatória, inclusive em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (ver Leis nºs. 1.579/52; 10.001/00 e 10.679/03). Logo, não seria necessário, desde logo, que se indicasse expressamente quem era o indiciado, pois este poderia ser identificado a partir do encaminhamento das diligências policiais, não sendo necessário um indicativo formal daquela condição.[2]

Na verdade, sempre defendi que o ideal é que o fosse, mas, obviamente, não era pelo fato de inexistir uma referência explícita acerca desta condição que se pudesse negar o status de investigado/indiciado de alguém; ao contrário, um cidadão não poderia ser notificado para comparecer como testemunha de um crime (com o dever de falar, dizer a verdade, prestar juramento, ser conduzido coercitivamente, etc), quando, na verdade, já estava figurando no procedimento apuratório como investigado/indiciado.

Mutatis mutandis, veja-se que o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu parcialmente o pedido de medida liminar requerido no Habeas Corpus nº. 115830. A paciente havia sido convocada a prestar depoimento em uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados. Em sua decisão, o Ministro determinou que a CPI conceda à paciente tratamento na condição de acusada ou investigada, o que significa que ela poderá se recusar a assinar termo de compromisso e a responder eventuais perguntas que impliquem autoincriminação. Pela decisão, ela não poderia sofrer medidas restritivas de direito ou privativas de liberdade como consequência do direito de não produzir provas contra si. O Ministro Gilmar Mendes, entretanto, ressalvou que, com relação aos fatos que não impliquem autoincriminação, a paciente tem a obrigação de prestar informações. “Nas circunstâncias dos autos, afigurar-se-ia inequívoco, pelo menos em sede de juízo cautelar, que o não reconhecimento do direito de a paciente isentar-se de responder às perguntas, cujas respostas possam vir a incriminá-la, pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos a direito fundamental da paciente. De outro lado, deve-se ter em mente que não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às Comissões Parlamentares de Inquérito pelo ordenamento jurídico brasileiro”, disse o Ministro em sua decisão.

Sobre o indiciamento, várias foram as decisões da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça, a saber: “Não havendo elementos que o justifiquem, constitui constrangimento ilegal o ato de indiciamento em inquérito policial” (STF – 2ª T.- HC 85.541 – rel. Cezar Peluso – j. 22.04.2008 – DJU 22.08.2008).

“RHC 1368/SP; Ementa: INQUERITO POLICIAL. DESPACHO GENERICO DE INDICIAMENTO REFERENTE A DIRETOR DE ENTIDADE, POR FATO QUE TERIA OCORRIDO DURANTE GESTÕES ANTERIORES. INDICIAMENTO PRECIPITADO, NÃO JUSTIFICADO, QUE CONSTITUI EVIDENTE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECURSO DE HABEAS CORPUS A QUE SE DA PROVIMENTO PARA DEFERIR A ORDEM E CASSAR O DESPACHO DE INDICIAMENTO.”

“HC 8466/PR; HABEAS CORPUS1999/0003165-2. Relator: Ministro FELIX FISCHER. Se há indícios da prática de crimes, incabível o trancamento do inquérito. II - Todavia, o indiciamento só pode ser realizado se há, para tanto, fundada e objetiva suspeita de participação ou autoria nos eventuais delitos. Habeas corpus parcialmente concedido.”

Em sessão realizada no dia 11 de abril de 2007, o Plenário do Supremo Tribunal Federal arquivou inquérito instaurado contra um Senador da República. O julgamento ocorreu na análise da questão de ordem trazida pelo relator, Ministro Sepúlveda Pertence, na Petição nº. 3825. Nesta oportunidade, o Ministro lembrou que a pessoa suspeita da prática de infração penal passa a figurar como indiciada a contar do instante em que, no inquérito policial instaurado, se verificou a probabilidade real de ser o agente. “Eu entendo que, posto explicitamente no status de indiciado, possa o parlamentar invocar plena e ostensivamente as garantias conseqüentes entre as quais a de silenciar-se a respeito da imputação a ele irrogada”, disse.[3]

Em outra decisão, por maioria dos votos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal deram provimento a um Agravo Regimental entendendo que o Inquérito (Inq) 2291 deveria ser analisado pela Corte. No inquérito, um Deputado Federal estava sendo investigado pela suposta prática de crimes contra a ordem tributária, formação de quadrilha, sonegação fiscal e evasão de divisas. De acordo com o recorrente [parlamentar], “a simples condição de investigado como caracterização de um estado da parte já é o bastante para se determinar o deslocamento da competência em razão da regra do foro privilegiado”. O Deputado salientou também que o fato de ser sócio administrador do grupo, já o coloca na condição de investigado, suficiente para que o trâmite do inquérito ocorra perante o Supremo Tribunal Federal. O Ministro Marco Aurélio votou pelo provimento do recurso e foi acompanhado pela maioria dos Ministros. “Se esse inquérito desaguar em si numa ação penal e, posteriormente, chegar-se a conclusão da culpa, se colocará a empresa na cadeia?”, indagou o Ministro Marco Aurélio.

Em decisão monocrática, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito concedeu liminar no Habeas Corpus (HC) 98441 em favor de um Delegado da Polícia Federal, desobrigando-o de assinar termo de compromisso como testemunha no depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito das escutas telefônicas clandestinas, bem como para que ele permanecesse calado sem o risco de ser preso e para ter assistência de advogado durante o depoimento.[4]

“No caso, embora não tivesse sido formalmente indiciada, o nome da paciente constava como tal dos autos da referida ação. Considerando a importância do indiciamento como condição para o exercício do direito de defesa na fase investigatória e a possibilidade do advento de prejuízos à paciente, aduziu-se que não haveria, nos autos, nenhum elemento para que ela figurasse como indiciada.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC 85541/GO, rel. Min. Cezar Peluso, 22.4.2008).

Também a propósito, o Ministro Joaquim Barbosa concedeu liminar em Habeas Corpus (HC 115015) para suspender decisão judicial que determinou o indiciamento formal de diretores e representantes legais de empresa de têxteis que já são réus em ação penal. Na decisão, ele acrescentou que o indiciamento formal de acusados é ato exclusivo da polícia, que, com base em elementos de investigação, elege “o suspeito da prática do ilícito penal”.

Pois bem.

Com a promulgação recente da Lei nº. 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, estabeleceu-se que “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”. Portanto, doravante, o indiciamento deverá ser devidamente fundamentado, tal como a obrigação que têm os Magistrados e membros do Ministério Público de fundamentarem, respectivamente, as suas decisões e pronunciamentos, sob pena da peça informativa retornar à Delegacia de Polícia para que se cumpra a lei.

Aliás, já com base nesta nova lei, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o indiciamento policial serve para que o delegado formalize sua convicção de que determinado investigado em inquérito é o suspeito de ser o autor do crime. Portanto, o juiz não pode determinar, depois de já aberta ação penal, o indiciamento formal de um dos réus. Ao mandar indiciar, o juiz assume função inerente à investigação, o que não faz parte de suas funções jurisdicionais. O entendimento foi da 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, que concedeu Habeas Corpus a quatro acusados de crimes tributários para suspender ordem de indiciamento, feita na sentença. A 2ª. Turma seguiu voto do ministro Teori Zavascki. Em explicação sucinta, ele ensina que o indiciamento não existe na lei processual penal brasileira, mas a doutrina o classifica como um “ato de formalização” da convicção do delegado, com base em indícios, sobre a autoria de determinado crime. A partir do momento em que a denúncia é recebida pelo Judiciário, o suspeito passa a ser réu em ação penal e deixa de ser suspeito. Para Zavascki, isso “demonstra incompatibilidade entre o ato de recebimento da denúncia, que já pressupõe a existência de indícios mínimos de autoria, e a posterior determinação de indiciamento, ato que atribui a alguém no curso do inquérito a suposta autoria delitiva e que visa a subsidiar o oferecimento da peça acusatória”. O Ministro também afirmou que a ordem de indiciamento pelo juiz é “incompatível com o sistema acusatório”, que prevê a separação orgânica das funções dos agentes envolvidos na persecução penal, que reserva ao juiz condenar ou absolver os formalmente acusados de determinados crimes. “Ao impor à autoridade responsável pelas investigações quem ela deve considerar como autor do crime, o órgão Judiciário se sobrepõe, em tese, as suas conclusões, sendo essa, a toda evidência, atribuição estranha à atividade jurisdicional”. Dessa forma, e como “são muitas as consequências jurídicas e morais decorrentes do indiciamento formal”, a ordem dada pelo juiz de primeiro grau deve ser anulada. (HC 115.015 - Revista Consultor Jurídico, 30 de setembro de 2013).

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Notas

[2] Para Hélio Tornaghi, “em relação ao indiciado, não há necessidade de qualquer ato declaratório ou constitutivo dessa qualidade; ela decorre das circunstâncias. Não é indiciado quem foi qualificado e identificado pelo processo datiloscópico, mas, ao reverso, pode ser feita a identificação de quem é indiciado”. (apud Afrânio Silva Jardim, Direito Processual Penal, 7ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 178). Exatamente por isso, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, vem concedendo habeas corpus para garantir que o paciente seja ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito como indiciado/investigado, e não mera testemunha.

[3] O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria e de acordo com o voto do Ministro Gilmar Mendes, decidiu que a Polícia Federal não tem competência para indiciar, sem autorização do STF ou pedido do procurador-geral da República, os detentores da prerrogativa de foro privilegiado listados no artigo 102, alíneas ‘b’ e ‘c’, da Constituição Federal. A decisão se deu no julgamento da questão de ordem levantada pelo Ministro Gilmar Mendes no Inquérito (INQ) 2411, que investiga a participação de parlamentares na fraude das ambulâncias, a chamada Operação Sanguessuga. O ministro questionou a validade do indiciamento do senador Magno Malta (PR-ES) por iniciativa da Polícia Federal, sem autorização do STF. O voto-vista do ministro Gilmar Mendes foi acompanhado, pela maioria (6 a 4) do Plenário. No caso julgado em conjunto, a Petição (PET) 3825, o relator, Ministro Sepúlveda Pertence havia votado em 11/4/2007 pelo indeferimento do pedido de anulação formal do indiciamento do senador Aloísio Mercadante (PT-SP), quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos. Naquela ocasião, por unanimidade, o STF determinou o arquivamento do inquérito em relação ao senador, mas a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou pela anulação do ato de indiciamento do senador pela Polícia Federal, porque teria havido violação da prerrogativa de foro de Mercadante e “invasão injustificada da atribuição que é exclusiva da Suprema Corte de proceder ao eventual indiciamento do investigado”. Na sessão do dia 10/10/2007, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que a investigação pode ser deflagrada por outros órgãos, mas a abertura deve ser supervisionada pelo relator do STF que autoriza ou não o indiciamento dos suspeitos. Para o ministro, “há de se fazer a devida distinção entre os inquéritos originários, de competência desta Corte, e aqueles outros de natureza tipicamente policial, os quais se regulam inteiramente pela legislação processual penal brasileira”. Esta é a jurisprudência que prevalece no Supremo, declarou o relator. O Ministro citou o parecer do procurador-geral da República, que afirmou: “a iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-relator do STF. Nesse contexto, a Polícia Federal não estaria autorizada a abrir, de ofício, inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República”. Assim, de acordo com o exposto na petição do MPF e os precedentes da Corte, o Ministro Gilmar Mendes votou pela anulação do ato formal de indiciamento do senador Magno Malta, promovido pela PF. O Ministro lembrou que, “no exercício da competência penal originária do STF (artigo 102, da CF), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações – desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento da denúncia pelo próprio STF”. Fonte: STF.

[4] A Comissão Parlamentar de Inquérito do “Apagão Aéreo”, do Senado Federal, deve dar ao indiciado tratamento próprio à condição de acusado ou investigado. Com isso, ele tem direito a não assinar termo de compromisso como testemunha e também o direito de permanecer calado sobre os assuntos não protegidos por sigilo, sem que por esse motivo seja preso ou ameaçado de prisão. A decisão liminar foi do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao deferir, dia 14/08/2007, medida cautelar no Habeas Corpus (HC) 92225. Para o Ministro Gilmar Mendes, a Constituição Federal, em seu artigo 58, parágrafo 3º, confere às CPIs os poderes de investigação próprios de autoridades judiciais. Dessa forma, como ocorre em depoimentos prestados perante os órgãos judiciários, é assegurado o direito do investigado não se incriminar (auto-incriminação)  perante essas comissões parlamentares.Ao deferir a liminar, o Ministro ressaltou que, “com relação aos fatos que não impliquem auto-incriminação, persiste a obrigação de o depoente prestar informações”, finalizou Gilmar Mendes, que mandou expedir salvo conduto para o empresário e determinou que a decisão deveria ser comunicada com urgência ao presidente da CPI do “Apagão Aéreo”. Fonte: STF.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O indiciamento e o Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26221. Acesso em: 19 abr. 2024.

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