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Guardas municipais não podem aplicar multas de trânsito

06/01/2014 às 15:41
Leia nesta página:

Muito embora o STF ainda não tenha pacificado a questão da fiscalização do trânsito por parte das guardas municipais, esta possibilidade vem sendo diuturnamente afastada pelos tribunais pátrios.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende demonstrar as razões de direito, fundadas na doutrina e na jurisprudência, pelas quais a atuação fiscalizatória das guardas municipais encontra-se banalizada, e quando desviada do eixo constitucional finalístico, é inconstitucional, desrespeitando os direitos e garantias de milhões de brasileiros.


AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Ponto de partida da tese ora esposada é o princípio constitucional da legalidade (art. 37 caput), de acordo com o qual: “a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite.”[1]

O princípio da legalidade constitui uma garantia de respeito aos direitos individuais:

“Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.”[2]

Entretanto, não basta que a lei formal seja supedâneo da atuação da Administração Pública, mas que esta lei se harmonize a nossa estrutura constitucional, pois:

“...a Constituição, além de imperativa como toda norma jurídica, é particularmente suprema, ostentando posição de proeminência em relação às demais normas, que a ela deverão se conformar, seja quanto ao modo de sua elaboração (conformação formal), seja quanto à matéria de que tratam (conformação material).”[3]

O ponto nodal da presente controvérsia é justamente esse: a ausência de conformidade material com a Constituição na atuação administrativa das guardas municipais nos encargos de fiscalizar e aplicar multas de trânsito.

Isto porque emanam do artigo 144, § 8º da Constituição as finalidades para as quais podem ser instituídas guardas municipais:

“Art. 144 [omissis]

§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.” [GRIFAMOS]

Como se observa, a atuação das guardas municipais deve estar circunscrita à proteção dos bens, serviços e instalações do município, e seu poder de polícia administrativa é mitigado, não podendo desbordar deste eixo para exercer policiamento do o trânsito, autuando condutores e lançando multas, como hoje sói acontecer.

Ainda que lei municipal outorgue aos guardas municipais a função de fiscalizar infrações de trânsito, esta lei não tem assento na Carta Magna, caracterizando o denominado “excesso de poder”:

“O excesso de poder ocorre quando o agente público excede os limites de sua competência; por exemplo, quando a autoridade, competente para aplicar a pena de suspensão, impõe penalidade mais grave, que não é de sua atribuição; ou quando a autoridade policial se excede no uso da força para praticar ato de sua competência.”[4] [GRIFOS NO ORIGINAL]

In casu, embora existam municípios que atribuam às guardas municipais a função fiscalizatória sobre o trânsito mediante lei formal, as normas ali contidas são materialmente inconstitucionais, pois encontram-se em contradição com a Constituição Federal.

Se de um lado o exercício de poder de polícia da Guarda Municipal é reconhecido e prestigiado por norma constitucional para, em caráter exclusivo, proteger bens, serviços e instalações do município, em contrapartida não se pode dizer que os componentes daquela estejam investidos em função pública quanto à autuação e aplicação de penalidades a condutores de veículos.

A conseqüência lógica, portanto, é a nulidade decorrente desta exorbitante atuação administrativa.


DA NULIDADE DOS AUTOS DE INFRAÇÃO

Para definir os elementos que compõem o ato administrativo, a doutrina majoritária utiliza como fundamento o disposto no artigo 2º da Lei nº 4.717/65 (Lei de Ação Popular), no qual foram estabelecidas as hipóteses de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio público, vejamos:

“Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

a) incompetência;

b) vício de forma;

c) ilegalidade do objeto;

d) inexistência dos motivos;

e) desvio de finalidade.”

Desta forma, valendo-se destes parâmetros, a doutrina assinala que os requisitos dos atos administrativos são: sujeito (competência); forma; motivo; finalidade e objeto:

“São pressupostos de existência o objeto e a pertinência do ato ao exercício da função administrativa.  Os pressupostos de validade são: 1) pressuposto subjetivo (sujeito); 2) pressupostos objetivos (motivo e requisitos profissionais); 3) pressuposto teleológico (finalidade); 4) pressuposto lógico (causa); e 5) pressupostos formalísticos (formalização).”[5] [GRIFAMOS]

O mesmo autor especifica que: “Sujeito é o autor do ato; quem detém os poderes jurídico-administrativos necessários para produzi-lo.”[6],

No caso das autuações de trânsito por guardas municipais, há claro vício de competência a ensejar sua nulidade, pois, como já dito, a competência atribuída por lei formal municipal é inconstitucional, em vista da supremacia das normas constitucionais com as quais encontram-se em contradição.


DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA ATUAÇÃO NA FISCALIZAÇÃO DO TRÂNSITO

A Constituição fixa uma competência material privativa (arts. 30, I, III, IV, V e VIII; 144, § 8º e 182) e comum dos Municípios (arts. 23 e 30, VI, VII e IX).

A competência material privativa ora assenta-se no critério do “interesse local” (artigo 30, inciso I), por sinal a principal alegação dos municípios para sua atuação fiscalizatória no trânsito, ora encontra-se enumerada na Constituição.

Entretanto, legislar sobre fiscalização do trânsito com fundamento no interesse local só seria defensável neste aspecto se ao Município fosse dado o poder de dispor em exclusividade neste tocante, o que não é o caso:

“Assim, sobre assuntos de interesse local, ou seja, de interesse predominante do Município, cabe a este ente federado legislar com exclusividade, afastando os demais, se, evidentemente, não estiver no âmbito da competência enumerada da União (art. 22).”[7]

Assim, são flagrantemente inconstitucionais as normas municipais que conferem às guardas municipais o múnus de fiscalizar o trânsito, como é o caso, por exemplo, do artigo 30, inciso VII, alínea “b” da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro e do artigo 2º, inciso II da Lei Complementar nº 100/2009, também do Município do Rio de Janeiro.

José Afonso da Silva disserta sobre a competência legislativa da União:

"Toda a matéria de competência da União é suscetível de regulamentação mediante lei (ressalvado o disposto nos arts. 49, 51 e 52), conforme dispõe o artigo 48 da Constituição. Mas os artigos 22 e 24 especificam seu campo de competência legislativa, que consideramos em dois grupos: a exclusiva e a concorrente.

I - competência legislativa exclusiva sobre:

1º) Direito Administrativo:...

j) trânsito e transporte;”[8] [GRIFAMOS]

Desta forma, não é possível evadir-se da norma constitucional, e também da doutrina que versa sobre o assunto, para permitir ao Município ou ao Estado legislar onde essa competência somente cabe à União.

Ademais, as facetas do interesse local (art. 30, inciso I) delimitam-se pela expressão “no que couber”, contida no inciso II, do art. 30, da Constituição Federal, vez que a disciplina da fiscalização do trânsito está afeta à União e aos Estados Federados, pelo que à guarda municipal não é dado substituir a polícia militar e muito menos o agente de trânsito.

Sobre o tema, assinala Diógenes Gasparini que:

“...em lugar da tradicional cláusula do ‘peculiar interesse’, configurada nas Constituições anteriores, o constituinte de 1988, preferiu a do interesse local sem, contudo, inovar no conteúdo. Sendo assim, o interesse local não é outra coisa senão aquele que prepondera, que sobressai quando confrontado com o do Estado-membro ou com o da União.

(...)

Bem por isso, quando o condutor de um veículo desobedece ao semáforo ou faz conversão em local proibido, não fere apenas o interesse local. Está, isto sim, atacando e ferindo um valor nacional, integrante da ordem pública e, portanto, afrontando a segurança pública, que é um dos aspectos da ordem pública, cuja preservação cabe à polícia ostensiva.

(...)

Portanto, o serviço de policiamento ostensivo de trânsito, ramo da polícia de preservação de ordem pública, seja nas rodovias estaduais ou municipais ou nas vias urbanas, excetuando-se a competência da União, que é exercida pela Polícia Rodoviária Federal, cabe aos Estados-membros, pois não é predominantemente local, dado destinar-se a coibir a violação da ordem jurídica, a defender a incolumidade do Estado, das pessoas e do patrimônio e a restaurar a normalidade de situações e comportamentos que se opõem a esses valores.[9] [GRIFAMOS]

Destarte, os serviços de trânsito representam atividade relativa à ordem pública, cuja competência legislativa cabe à União e aos Estados-membros conforme estabelecido pelo artigo 144 da Constituição Federal, sendo a fiscalização de trânsito, uma de suas formas de atuar para prevenir e reprimir as infrações e evitar acidentes, vinculando-se à preservação da ordem pública.

A Corte Suprema já teve oportunidade de se pronunciar, em caráter erga omnes, nos autos da ADI.1182, a respeito do rol taxativo dos órgãos que compõem o sistema de segurança pública, a excluir quaisquer outros que não: (I) a polícia federal; (II) a polícia rodoviária federal; (III) a polícia ferroviária federal; (IV) as polícias civis; (V) as polícias militares e corpos de bombeiros militares, verbis:

“Os Estados-membros, assim como o Distrito Federal, devem seguir o modelo federal. O art. 144 da Constituição aponta os órgãos incumbidos do exercício da segurança pública. Entre eles não está o Departamento de Trânsito. Resta pois vedada aos Estados-membros a possibilidade de estender o rol, que esta Corte já firmou ser numerus clausus, para alcançar o Departamento de Trânsito.”

(ADI 1.182, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24-11-2005, Plenário, DJ de 10-3-2006.) [GRIFAMOS]

Logo se vê como é pretensiosa a alegação de que as guardas municipais integrariam este sistema, e estariam aptos a fiscalizar e aplicar multas de trânsito.

E não se diga que por estarem situadas topograficamente no capítulo destinado à segurança pública, as guardas municipais seriam órgãos de segurança pública:

Apesar de tratadas no capítulo destinado à segurança pública, as guardas municipais não são órgãos de segurança pública.”[10] [GRIFAMOS]

Estas, aliás, são algumas das razões pelas quais busca-se, através da PEC nº 534/2002, driblar limitações hauridas da Constituição Federal, almejando-se ampliar o leque de atribuições constitucionais das guardas municipais, e, impropriamente e por via oblíqua, dos próprios municípios.

No tocante às normas de trânsito, a Constituição Federal só atribuiu aos municípios em caráter comum e taxativo a competência de “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito” (artigo 23, inciso XII), desde que, porém, sejam instituídas, em lei complementar, o que não é o caso do Código de Trânsito Brasileiro, sendo este lei ordinária, as devidas regras de cooperação conforme estabelece o parágrafo único, do referido artigo, senão vejamos:

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"Parágrafo único - Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional".

Não se abrange aí, pois, a atividade de fiscalização e autuação por parte do Município, embora mascaradas de constitucionalidade pelo artigo 24, incisos VI ao IX, XX e XXI do Código de Trânsito Brasileiro.

Quanto à competência suplementar do Município, também não é aplicável a tal atividade, pois:

“Evidentemente que essa competência suplementar do Município só poderá incidir sobre as matérias enunciadas no art. 24 da Constituição, objeto da competência legislativa concorrente entre a União e Estados ou Distrito Federal.”[11]


OS FINS DO ESTADO NÃO JUSTIFICAM OS MEIOS

As municipalidades alegam, ainda, a questão da impunidade dos motoristas, com a possibilidade de desautorizar-se a “polícia de trânsito local”, como foi o caso do Município do Rio de Janeiro nos autos do RE 637539.

Entretanto, é preciso frisar que, ao contrário, de um estado fascista e seu provérbio “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, nossa configuração constitucional é a de um Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput), cujos fins não justificam os meios.

Ora, a atuação do Estado-Administração é demarcada pelo princípio da legalidade, especialmente no tocante às normas constitucionais, a fim de se viabilizar o exercício dos direitos fundamentais, representando este princípio a síntese do próprio Estado de Direito.

Como consignado pelo Min. Maurício Corrêa:

"Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito." (HC 73.454, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 22-4-1996, Segunda Turma, DJ de 7-6-1996.)

Enfim, quando os fins tomam precedência aos meios no Estado de Direito, corrompe-se sua própria essência.  O único meio aceitável é o respeito à Constituição.


JURISPRUDÊNCIA

A questão da possibilidade da validade das autuações das guardas municipais já foi apreciada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, como se pode ler da representação por inconstitucionalidade nº 2001.007.00070, Relator Des. Gama Malcher, j. 05/08/2002, a seguir:

"GUARDA MUNICIPAL. EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. DELEGAÇÃO DA COMPETÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE

Guarda-Municipal. Representação por Inconstitucionalidade. Indelegabilidade das funções de segurança publica e controle de transito, atividades próprias do Poder Publico. As atividades próprias do Estado são indelegáveis pois só diretamente ele as pode exercer; dentre elas se inserem o exercício do poder de policia de segurança publica e o controle do transito de veículos, sendo este expressamente objeto de norma constitucional estadual que a atribui aos órgãos da administração direta que compõem o sistema de transito, dentre elas as Policias Rodoviárias (Federal e Estadual) e as Policias Militares Estaduais. Não tendo os Municípios Poder de Policia de Segurança Publica, as Guardas Municipais que criaram tem finalidade especifica - guardar os próprios dos Municípios (prédios de seu domínio, praças, etc) sendo inconstitucionais leis que lhes permitam exercer a atividade de segurança publica, mesmo sob a forma de Convênios. Pedido procedente." [GRIFAMOS]

Neste acórdão emblemático, consignou-se que:

As Guardas Municipais têm destinação constitucional específica - A proteção dos bens, serviços e instalações municipais (art. 144, §8º da Constituição Federal e art. 183, § 1º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro).

A Constituição Estadual é expressa em designar quais são os órgãos públicos que compõem o sistema de segurança pública no âmbito estadual:

'Art. 183 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a prevenção da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio pelos seguintes órgãos estaduais:

I - Polícia civil

III - Policial Militar

IV - Corpo de Bombeiros Militar' uma vez que a menção a 'vigilância intramuros nos estabelecimentos penais e à Polícia Penitenciária' foi excluída do texto por força do julgamento definitivo da ADIN nº 236-8/600 em 07/05/92 do Excelso Pretório (D.J.V. de 15.05.92).

(...)

José Cretella Júnior, nos seus 'Comentários à Constituição de 1988 (Forense Universitária, 1ª ed., vol. II, p. 733) acentua que o 'Poder de Polícia é indelegável, sob pena de falência virtual do Estado' posição amplamente defendida por Álvaro Lazzarini nos seus 'Estudos de Direito Administrativo' (Rev. Tribunais, ed. 1955) que salienta que, em matéria de trânsito os municípios só têm competência para implantar e estabelecer 'política de educação para a segurança de trânsito, conforme autorização do art. XII e seu parágrafo único da Constituição Federal.”

No mesmo sentido:

"APELAÇÃO. AÇÃO VISANDO A ANULAÇÃO DE AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO, IMPUTANDO AO AUTOR TRANSPOSIÇÃO DE BLOQUEIO VIÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO AFASTADA PELA PROVA DOCUMENTAL PRODUZIDA. CONDUTOR DO VEÍCULO QUE É POLICIAL MILITAR E NO DIA E HORA DA SUPOSTA INFRAÇÃO, ENCONTRAVA-SE PRESTANDO SERVIÇO NO VIGÉSIMO TERCEIRO BATALHÃO, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. ADEMAIS, A GUARDA MUNICIPAL NÃO PODE SER INVESTIDA DE PODER DE POLÍCIA DE TRÂNSITO, SENDO NULAS DE PLENO DIREITO AS MULTAS POR ELA APLICADA. PRECEDENTES DESTA EGRÉGIA CORTE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE REFORMA PARA ANULAR O AUTO DE INFRAÇÃO, BEM COMO DETERMINAR O CANCELAMENTO DA PONTUAÇÃO NEGATIVA IMPOSTA. RECURSO PROVIDO" (TJRJ, 2006.001.50281 - apelação cível, DES. LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 24/04/2007). [GRIFAMOS]

Nos autos do Processo nº 971572-4, julgado recentemente pela 4ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com a relatoria do Des. Wellington Emanuel de Moura, assentou-se o entendimento que:

“...falece competência à Guarda Municipal para emitir multas de trânsito.

Isso porque o artigo 144, da Constituição Federal é muito claro a esse respeito, ao estabelecer que "os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações" nada mencionando a respeito das infrações de trânsito, cuja competência a priori é exclusiva da Polícia Militar naquele município.

(...)

Ou seja, não é ilícito ao Município a criação das Guardas Municipais. Contudo, suas atribuições estão limitadas e restritas à proteção dos bens, serviços e instalações do município. A regularidade da contratação de seus agentes, estando aptos, em tese, a "exercerem a função de `Agentes da Autoridade de Trânsito'", também não tem o condão de afastar a nulidade dos atos já praticados.

É por demais sabido que na hierarquia das normas, regra elementar de hermenêutica, a Constituição Federal sempre prevalece em detrimento de qualquer outra.  Isso sem olvidar que todos os Poderes da República devem zelar, guardar e cumprir o que determina nossa Carta Magna.

Assim, muito embora o município, em suas razões, tenha procurado justificar seus atos, notadamente apontando Leis Municipais que seriam aplicáveis à espécie, estas não tem o condão de afastar a incidência das regras constitucionalmente asseguradas.

Ausente a competência para a emissão de multas prevista em Lei, ou estando o respectivo diploma legal em flagrante violação ao que preconiza a Constituição Federal, esse ato administrativo é inválido e não tem condições de produzir os efeitos jurídicos que dele se espera, que consistem na imposição da sanção com pagamento em dinheiro mais os pontos na carteira de habilitação, daí a necessidade de revisão desses atos pelo Poder Judiciário e sua declaração de ineficácia, como no presente caso.

Nas palavras de Fernanda Marinela, ao citar o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, "o requisito `sujeito competente' é classificado como um pressuposto denominado pressuposto subjetivo de validade e leva em consideração as qualidades e exigências do sujeito como condição para a validade do ato, dependendo sempre de previsão legal.” [GRIFAMOS]

Traga-se à baila, ainda, excertos do acórdão prolatado pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos da Apelação Cível de nº 2007.001.29853:

“Seja como for, de início se concede que uma primeira leitura do texto do art. 24, VI c/c o art. 280,§ 4º, ambos do CTB, poderia levar a entender que as multas aplicadas pelos integrantes do Município (leia-se: integrantes da Guarda Municipal ) teriam validade e, portanto, seriam validadas.

Tal conclusão, contudo, viola o regramento constitucional, pois em se consultando o contido no art. 144, § 8º da carta política, lá consta especificamente que das funções às quais se destinam as guardas municipais, a saber: proteção dos bens, instalações e serviços da municipalidade, não figura o policiamento de trânsito em geral e nem o lançamento de multas em particular.

(...)

E nem poderia ser diferente, haja vista a que diante da colisão entre o preceito da norma constitucional e aquele constante de lei ordinária, como apresentado acima, se pode dizer, com tranqüilidade, que o âmbito do CTB não está e nem pode estar a legitimar tal atuação dentro do âmbito municipal, eis que as esferas de competência (ou atuação, como se preferir) de um e de outro se revelam como excludentes.

Se a norma é inconstitucional, ela simplesmente não se aplica o que se diz, se destaca, com base não em declaração incidental de inconstitucionalidade, mas sim com base em precedente do Colendo Órgão Especial, cuja fundamentação é relevante e que se aplica ao caso em apreciação.”

A matéria constante deste último acórdão encontra-se pendente de julgamento em Recurso Extraordinário (RE 637539), cuja relatoria é do Ministro Marco Aurélio, já tendo sido acolhido o requisito do pré-questionamento.


CONCLUSÃO

Muito embora o STF ainda não tenha pacificado a questão da fiscalização do trânsito por parte das guardas municipais, esta possibilidade vem sendo diuturnamente afastada pelos tribunais pátrios.

A Corte Suprema entende que o artigo 144, § 8º da Constituição Federal deve ser interpretado de forma literal, não abarcando as guardas municipais no sistema de segurança pública nacional.

A doutrina entende que a fiscalização no trânsito é atividade integrante da “ordem pública”, sendo assunto afeto à segurança pública, rechaçando a tese das municipalidades de que, em conformidade com o artigo 30, inciso I, seria “assunto de interesse local”.

Para se atender aos anseios dos municípios, assentindo-se que as guardas municipais fiscalizem o trânsito e autuem os infratores, necessitar-se-á de uma reforma constitucional, pois para o Estado, como já frisado, os fins não devem justificar os meios.

Na atual configuração constitucional, ainda que leis municipais outorguem às guardas municipais o encargo de fiscalizar o trânsito, estas normas não possuem assento constitucional, verificando-se, no caso concreto, vício de competência no ato administrativo, a respaldar sua anulação pela via judicial.


Notas

[1] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, Ed. Atlas, 22ª Ed., São Paulo, 2009, p. 64

[2] Ibidem, p. 63

[3] JUNIOR, Dirley da Cunha, Curso de Direito Constitucional, Ed. Juspodivm, 6ª Ed., Salvador, 2011, p. 107

[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di, Op. cit., p. 239.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª Ed. Malheiros: 2011, São Paulo, pp. 392-393

[6] Idem, p. 391.

[7] JUNIOR, Dirley da Cunha, Op. cit, pp. 913-914

[8] SILVA, José de Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 9ª Ed., São Paulo, 1994, p. 439

[9] Disponível em <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev10.htm> Acesso em.25/12/2013

[10] JUNIOR, Dirley da Cunha, Op. cit. p. 1162.

[11] Idem, p. 914

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Sobre o autor
ROBERTO FLAVIO CAVALCANTI

Advogado (UFRJ-2008), Contador (UERJ-2011). Graduado também em Administração de Empresas (UFRJ-1996).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, ROBERTO FLAVIO CAVALCANTI. Guardas municipais não podem aplicar multas de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26292. Acesso em: 21 nov. 2024.

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