4 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS COMO SUBTRATO DO DIREITO À SAÚDE
Preliminarmente, insta reafirmar que o problema apresentado por este artigo guarda relação com o direito à saúde, pois a pessoa que não dispõe de suas funções reprodutivas em perfeito estado não se enquadra no conceito de pessoa saudável preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que apregoa que “A saúde é um estado mental de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”, adicionando que se trata de um direito fundamental, ao aduzir que “Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica e social”40.
O conceito materialmente aberto dos direitos fundamentais (§ 2º do art. 5º da CF41) possibilita a construção de direitos materialmente fundamentais não revelados dentro do art. 5º, bem como não expressamente descritos ao longo do texto constitucional, assim como fora da própria Constituição Federal. É nessa linha que Ingo Sarlet elabora a divisão entre direitos fundamentais expressamente positivados ao longo do texto constitucional e direitos fundamentais não escritos. Em relação à última categoria (não positivados), o constitucionalista elabora uma divisão em duas vertentes: a primeira é a dos “direitos fundamentais implícitos”, subentendida a partir das próprias normas definidoras de direitos e garantias fundamentais; já a segunda decorre do regime e dos princípios constitucionais adotados pela Constituição42.
Ao abordar tema referente ao direito à reprodução humana assistida, Olga Krell aduz que o conceito material de direitos fundamentais não constitui um “elenco taxativo”, presumindo uma enumeração aberta e sempre pronta para ser completada por outros direitos43.
Importante contribuição foi dada por Jorge Miranda, que destacou a possibilidade do surgimento de outros direitos a partir dos já proclamados, “[...] através de novas faculdades para além daquelas que se encontram definidas ou especificadas em cada momento44”. Para esta pesquisa, é o caso do direito à saúde e sua nova vertente.
Ao lecionar sobre a especialização dos direitos fundamentais em Pontes de Miranda, George Sarmento destaca que existem direitos fundamentais que são derivados do conteúdo de outros direitos fundamentais, ao argumento de que “[...] existem normas jurídicas, geralmente não-escritas, que retiram seu substrato do conteúdo de direitos fundamentais positivados em constituições ou tratados internacionais45”. Assim, esta pesquisa entende que os direitos sexuais e reprodutivos nada mais são do que uma especialização do direito à saúde. Dessa forma, nota-se a enorme força normativa que tem o direito à saúde em nível internacional, que, pelo seu conceito aberto, abrange o direito à saúde sexual e reprodutiva.
Destarte, a saúde não deve ser apenas considerada como ausência de doenças, mas sim uma situação em que o corpo e a mente humana estejam no mais elevado grau de bem-estar físico e emocional, aí incluindo o meio-ambiente e o círculo social onde vive o ser humano. Ademais, o conceito constitucional de saúde também deve acompanhar a evolução do direito e da sociedade, até porque a concepção de indivíduo saudável de hoje não é a mesma de 50 anos atrás.
Na doutrina estrangeira Paula Siverino Bavio define saúde reprodutiva como um estado geral de bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de enfermidades ou doenças, estando relacionado a todo o sistema reprodutivo, em suas funções46.
A Organização Mundial de Saúde, preocupada com as mais diversas facetas do direito à saúde, aborda a questão da saúde reprodutiva como um todo, aí incluindo métodos de acompanhamento pré-natal, contracepção e concepção, destacando que ela condiciona a pessoa a ter filhos e a liberdade de decidir quando e quantas vezes fazê-lo, e que o poder público deve proporcionar métodos seguros e acessíveis a todos47.
Carreando o direito à saúde sexual e reprodutiva, o direito à saúde galgou posição especial na Constituição Federal de 1988, sendo lembrado em vários dispositivos ao longo do texto, elevando o instituto a um patamar nunca visto nas Constituições anteriores, expressando a importância de se garantir e de se promover uma vida saudável aos brasileiros48.
Assim, os direitos e garantias fundamentais, que antes vinham posicionados estruturalmente após a organização do Estado na Constituição de 1969, desta feita inserem-se em um novo contexto valorativo, pois o constituinte originário de 1988 fez questão de elencá-los logo no início da Constituição.
Especialmente o direito à saúde, que mal tinha espaço nas Constituições anteriores, agora está incluído na Carta Magna de 1988 dentro do Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais, fazendo parte de um contexto normativo privilegiado ante a regência de uma nova hermenêutica constitucional que ampara e garante o exercício dos direitos da pessoa humana por intermédio de uma série de princípios e métodos de interpretação.
5 DEFENSORIA PÚBLICA E MOVIMENTOS FEMINISTAS: AS VANTAGENS DA ARTICULAÇÃO CONJUNTA
Os movimentos feministas e demais associações de defesa de interesses das mulheres possuem fins que perfeitamente confundem-se com os objetivos da Defensoria Pública e de alguns movimentos sociais. A busca pelo espaço que as mulheres merecem ter e os cuidados inerentes à sua condição biológica são expressões dos direitos humanos que estão se desenvolvendo nos últimos anos, por meio da criação de políticas públicas e de algumas normas cíveis, penais, administrativas, entre outras. No Brasil, por coincidência, a normatização de tais fatos está ocorrendo na mesma época de surgimento e fortalecimento da Defensoria Pública, que, atualmente, é legalmente responsável pela defesa dos direitos humanos, podendo postular, inclusive, perante órgãos internacionais.
Conforme já apregoado, a especificidade da presente pesquisa consiste em conceder atenção especial à defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, que são uma das bandeiras dos movimentos feministas, que possuem objetivos comuns aos da Defensoria Pública. Assim, a união de forças vai reforçar a luta pela concretização de tais direitos, facilitando, inclusive, o acesso à justiça.
Observa-se que os movimentos feministas ou entidades de defesa dos direitos das mulheres, mesmo aqueles que ainda não se constituíram em pessoa jurídica, são sujeitos de direitos, podendo ser orientados e defendidos pela Defensoria Pública. Essa tutela procura consolidar o direito fundamental de acesso à justiça, que, por inúmeras razões, ainda não atingiu sua concretização adequada.
A interpretação feminista também deve ser uma realidade na aplicação do direito vigente, já que, e seguindo a linha de Eduardo Habenhorst, o direito parece ter feito a opção pelos homens49. Assim, a formação jurídica desses juristas sociais, que se engajam na luta pelos direitos das mulheres, deve privilegiar o feminismo na aplicação da hermenêutica jurídica, a fim de tentar alcançar uma igualdade material50.
Desta sorte, o que se busca com a proposta da junção das forças da Defensoria Pública e dos movimentos feministas é, além de promover o direito à saúde sexual e reprodutiva, facilitar o acesso à justiça que, por sinal, tem um conceito de difícil definição, pois a expressão comporta vários sentidos e perspectivas, mostrando-se baldada qualquer tentativa de definir seu conceito51.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em famosa obra sobre o acesso à justiça, discorrem a respeito da imprescindibilidade do tema, com as seguintes palavras:
De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. (8) O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos52.
Os mesmos autores apontam algumas situações que dificultam o acesso dos necessitados ao Judiciário, entre elas, o alto custo das ações judiciais e o tempo de duração do processo, que “[...] aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito”53.
Há também um fator favorável aos demandantes mais ricos, que é a possibilidade de reconhecer, por si só, um direito juridicamente exigível, situação que muitas vezes não é verificada em meio à população carente, devido a pouca formação intelectual, aliada à falta de disposição psicológica para recorrer a processos judiciais54.
A participação da Defensoria Pública na busca da concretização dos direitos fundamentais faz-se importante na medida em que se observa que os defensores públicos possuem privilégios processuais que objetivam resguardar a igualdade material entre as partes no processo. Por isso, a instituição possui prazos processuais dobrados para atender a grande demanda que lhe é peculiar, além da prerrogativa da intimação pessoal e tantas outras que objetivam privilegiar, não os defensores públicos, mas sim, a parte mais carente da relação jurídica processual que, possui uma série de desvantagens na busca pela verdadeira justiça.
Assim, ao ter a Defensoria Pública no polo ativo nas ações judiciais de interesses de movimentos feministas, a busca pelo direito material ganharia reforço. Ademais, acrescente-se que os interesses de ambos facilmente confundem-se, pois alguns dos objetivos legais de Defensoria Pública são a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais, a prevalência e a efetividade dos direitos humanos (art. 3-A da Lei Complementar nº 80/94).
É importante observar que com o advento da Lei Complementar nº 132/2009, a Defensoria Pública adquiriu importante função no cenário jurídico brasileiro, ao ficar legalmente responsabilizada pela defesa dos direitos humanos. Ao incluir dispositivos na Lei Complementar nº 80/94, a Lei Complementar nº 132/2009 elevou a Defensoria Pública a um cenário nunca antes visto na história do Brasil, pois, além de confirmar a sua legitimidade para ingressar com ações civis públicas, concedeu-lhe atribuição para a defesa dos direitos humanos, nacional e internacionalmente. Assim, a nova posição da Defensoria Pública vai colocar a instituição em sintonia direta com os interesses dos movimentos feministas, pois a defesa dos direitos humanos das mulheres, a eliminação de todas as formas de discriminação e a busca da igualdade material também passaram a constituir atribuições legalmente concedidas à Defensoria Pública, que tem, agora, a obrigação indisponível de buscar a efetividade de todos esses direitos.
Ademais, impende sugerir que os defensores públicos estejam aptos a seguir o apregoado por Eduardo Habenhorst, para perceber o direito de outra forma, de maneira que visem mais as relações sociais e menos as normas jurídicas55.
Questão muito repisada pela doutrina diz respeito ao máximo âmbito de atuação da Defensoria Pública, no que diz respeito aos beneficiados dos efeitos das ações civis públicas. Certamente, não é preciso esforço hermenêutico para imediatamente rechaçar qualquer tipo de interpretação que possa acarretar restrição indevida ao direito fundamental de acesso à justiça, especialmente no que diz respeito aos beneficiados pela ação civil pública. O caso é que a presente discussão ainda tem relevância porque já houve (ou ainda há) quem defendesse que a Defensoria Pública somente teria legitimidade para ajuizar ação civil pública nas hipóteses em que todos os beneficiários sejam economicamente carentes. Assim, pretendia-se prejudicar o exercício do direito de acesso à justiça nas situações em que a ação civil pública pudesse beneficiar pessoas não carentes, ou seja, em quase todas as situações.
É lógico que pode haver casos em que é possível que a demanda envolva somente pessoas carentes, como em algumas ações coletivas relacionadas ao SUS, à educação pública, à isenção de taxas em concursos públicos, etc. Mas, o que dizer das ações de envolvem posse coletiva de terras, meio ambiente, regularização urbanística, empréstimos consignados à aposentados, correção monetária em caderneta de poupança, programas residenciais, benefícios previdenciários e tantas outras que podem também beneficiar pessoas ricas?
Resta evidente que restringir a atuação da Defensoria Pública vai de encontro a diversos postulados legais e constitucionais, criando embaraços ao exercício do direito fundamental de acesso à justiça que, além de ter aplicabilidade imediata (§ 1º do art. 5º da CF), deve ser interpretado de acordo com a nova hermenêutica constitucional, que concede máxima efetividade aos direitos fundamentais.
Um exemplo dessa situação ocorreu com uma ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de Alagoas, em que se questionava a forma de cobrança da Contribuição de Iluminação Pública (COSIP) nas faturas de energia elétrica. A ilegalidade consistia em cobrar a conta de energia elétrica (relação de consumo) vinculada a um tributo (relação tributária), em um único código de barras. Pugnou-se pela emissão de fatura do consumo de energia elétrica com dois códigos de leitura ótica, informando de forma clara os valores correspondentes a cada uma das cobranças, isto é, a do consumo de energia elétrica e a da COSIP.
Em março de 2008, após a concessão da antecipação dos efeitos da tutela em 1ª instância, a Companhia energética ingressou com um agravo de instrumento. Ao julgar o recurso, o então Desembargador Relator, extinguiu o processo sem julgamento de mérito sob o estranho argumento de que faltava legitimidade à Defensoria Pública para ajuizar a ação, já que os efeitos da decisão também atingiriam pessoas não hipossuficientes economicamente. Diante disso, a Defensoria Pública ingressou com agravo regimental, por entender que tal decisão não tinha fundamento algum.
O TJ-AL deu provimento ao agravo, por entender que não seria possível limitar o âmbito de atuação da Defensoria Pública nesse caso56. Ou seja, entendeu-se que uma ação civil pública da Defensoria Pública pode beneficiar a totalidade dos consumidores do Estado de Alagoas, sejam eles ricos ou pobres, pois entender o contrário ou até mesmo repartir o cumprimento da medida, seria dificultar o exercício do direito por parte dos hipossuficientes, em virtude da dificuldade de estabelecimento de critérios de hipossuficiência e identificação dos beneficiários, prejudicando assim, os consumidores carentes e o próprio direito fundamental de acesso à justiça. Deveras, negar legitimidade à Defensoria Pública nesse caso significa que cada consumidor carente deveria ingressar com sua ação individual para pleitear um direito de ínfimo valor econômico, abarrotando o Judiciário desnecessariamente. Nesse prisma, é salutar lembrar que Mauro Cappelletti e Bryant Garth, ao tratarem dos direitos transindividuais, elencaram dificuldades na busca individual desses pleitos, apontando que “[...] o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação”57.
Avalizando esse entendimento Merivaldo Pereira e Pierpaolo Cruz Bottini ressaltam que o Poder Público não poderia escusar-se de prestar assistência jurídica nas situações em que os interesses dos necessitados estão envolvidos com as pretensões dos mais ricos, dado a enorme amplitude e o número de pessoas envolvidas na relação de massa58.
Outro exemplo importante aconteceu em ação civil pública movida pela Defensoria Pública que tratava de interesses de grupo de servidores públicos do Instituto Zumbi do Palmares em Alagoas. A ação foi interposta visando “destravar” a promoção funcional, o que, pela natureza do pedido, beneficiaria também pessoas não carentes, ao argumento de que não seria razoável impedir que a Defensoria Pública proteja o interesse coletivo dos carentes simplesmente para não beneficiar eventuais pessoas não carentes. Em decisão datada de novembro de 2010, a 2ª Câmara Cível do TJ-AL reconheceu expressamente a legitimidade da Defensoria Pública para ingressar com ação civil pública visando beneficiar categoria de servidores, conforme aresto abaixo:
Processo civil. Ação civil pública intentada pela Defensoria Pública. Defesa de direitos de uma categoria de servidores. Sentença de extinção por inadequação da via eleita e de ausência de legitimidade da parte autora. Necessidade de reforma. Direitos englobados dentro do rol de matéria da ação proposta. Adequação da ação escolhida. Precedentes jurisprudenciais. Retorno dos autos à vara de origem para o regular processamento do feito. Recurso conhecido e parcialmente provido. À unanimidade59.
Diante da situação, o Tribunal de Justiça de Alagoas reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública na defesa dos interesses coletivos dos servidores do Instituto Zumbi dos Palmares, constituindo importante precedente judicial. Resta claro então, a legitimidade da Defensoria Pública para defender interesses de uma categoria de trabalhadores, podendo atuar até mesmo como substituta do próprio sindicato ou associação, desde que, em parte, estejam envolvidos interesses de pessoas carentes.
Assim, a atuação da Defensoria Pública, na efetivação de direitos fundamentais, não pode sofrer qualquer tipo de restrição infraconstitucional, devendo ser amparada com todos os instrumentos necessários para alcançar suas finalidades60.
Por tudo isso, nota-se que a Defensoria Pública tem pleno aval para ingressar com ações civis públicas de interesses de grupos feministas visando ao direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva.