Resumo: O presente trabalho perscruta o tema constitucional tribunal ou juízo de exceção, buscando conceitos na doutrina e exemplos históricos que demonstrem a sua vital importância para a defesa dos direitos fundamentais. A vedação do instituto – instituto este que adquire na modernidade formas diversas e igualmente nefastas –, ainda prova-se pertinente na sociedade de cidadãos brasileiros.
Palavras-chave: direito fundamental, juiz natural, tribunal de exceção
RESUMEN: Este trabajo investiga el tema constitucional de juicio o tribunal de excepción, buscando conceptos en doctrina y ejemplos históricos que prueban su importancia vital para la defensa de los derechos fundamentales. La vedación de este instituto – instituto este que toma diferentes formas en la modernidad y sigue siendo igualmente dañino –, aún demuestra ser relevante en la sociedad brasileña.
Palabras clave: derecho fundamental, juez natural, tribunal de excepción
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Cidadã traz no seu artigo 5º, inciso XXXVII a vedação expressa aos juízos ou tribunais de exceção, que topograficamente situa-se dentro do Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, por sua vez pertencente ao Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”1.
Diante da imprecisão terminológica que os termos “direito” e “garantia” podem suscitar, à primeira vista, através da leitura do título e capítulo acima mencionados, a doutrina procura diferençar um do outro. Segundo Paulo Branco, os direitos fundamentais assentam, de imediato, em bens específicos da pessoa, tais como a honra e a vida. As garantias fundamentais, por sua vez, protegem tais bens de maneira apenas indireta, assegurando ao indivíduo a possibilidade de exigir o respeito, por parte do Poder Público, ao direito propriamente dito2. Corrobora Luís Roberto Barroso, que conceitua as garantias como condições materiais colocadas à disposição dos titulares dos direitos, com função de promoção ou resguardo3. J. J. Gomes Canotilho considera que as garantias clássicas também são direitos, embora se saliente seu caráter instrumental.4 Por esse ponto de vista, a vedação do inciso XXXVII seria mais propriamente classificada como uma garantia fundamental, até mesmo por ter escopo processual. De qualquer forma, a distinção é inócua do ponto de vista prático, no que o ordenamento dá tratamento unívoco aos direitos e garantias fundamentais5.
Mais parece útil, quanto à classificação da vedação aos juízos e tribunais de exceção, utilizar-se da tipologia dos princípios segundo Canotilho, para incluí-la, como desenvolvimento lógico do princípio do juiz natural, na categoria de princípio-garantia: um princípio que visa conferir direta e imediatamente uma garantia ao cidadão, sendo para tanto munido de “densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante”6. O princípio do juiz natural será abordado com mais minúcia posteriormente.
Quanto ao histórico, verifica-se a sistemática inclusão do tema ao longo do trajeto constitucional brasileira, desde a primeira Carta, de 1824, que traz no inciso XVII do seu artigo 179, in verbis:
A' excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juizos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Commissões especiaes nas Causas civeis, ou crimes.7
De lá para cá, todas as Constituições trouxeram, com um maior ou menor grau de explicitação, a vedação; a ressalva é a Constituição de 1937, a Polaca, instauradora do Estado Novo e silente sobre o assunto. O termo “tribunal de exceção” aparece pela primeira vez na Constituição de 1934, em seu art. 113, n. 25 (“Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção; admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas.”8). Demonstra-se, com a perseverança da vedação ao longo do tempo, a essencialidade e a importância do dispositivo, garantia basilar de defesa do indivíduo contra o arbítrio estatal.
2 O JUIZ NATURAL
A definição de tribunal ou juízo de exceção não guarda mistério na doutrina. Nas palavras de José Francisco Cunha Ferraz Filho, “tribunal de exceção é o tribunal ad hoc, ou seja, constituído para julgamento específico, em razão da pessoa ou do fato a ser julgado.”9 Pode ser designado ou criado, por deliberação legislativa ou não.10 Sua consequência, verificada historicamente, é nefasta e abala alicerces da República, “implicando ferida mortal ao Estado de Direito, visto que sua proibição revela o status conferido ao Poder Judiciário na democracia”11. A vedação relaciona-se diretamente com o princípio do juiz natural (juiz devido12), postulado de origem anglo-saxônica13 que congrega, além do inciso XXXVII, o inciso LIII, também do artigo 5º, que reza que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Assevera Celso de Mello:
O postulado do juiz natural, por encerrar uma expressiva garantia de ordem constitucional, limita, de modo subordinante, os poderes do Estado – que fica, assim, impossibilitado de instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção –, ao mesmo tempo que assegura ao acusado o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados, em consequência, os juízos ex post facto.14
O juiz natural também é garantido em âmbito internacional, através da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10)15 e do Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, n. 1)16, que dão ênfase ao critério da imparcialidade. O renomado jurista italiano Luigi Ferrajoli, na sua obra maestra “Direito e Razão”, também se debruça sobre a questão, enumerando três condições orgânicas e culturas da figura do juiz: imparcialidade (terzietà; a alteridade do juiz em relação aos interesses das partes), independência (exterioridade em relação ao sistema político) e naturalidade (a designação do juiz e a definição de suas competências devem acontecer antes do feito que deu origem ao julgamento)17. Mais adiante, sobre o juiz natural, diz:
La garantía del «juez natural» indica esta normalidad, del régimen de competencias, preconstituida por la ley al juicio, entendendo por competencia «la medida de la jurisdicción» de que cada juez es titular. Significa, precisamente, tres cosas distintas aunque relacionadas entre sí: la necesidad de que el juez sea preconstituido por la ley y no constituido post factum; la inderogabilidad y la indisponibilidad de las competencias; la prohibición de jueces extraordinarios y especiales.18
Aduzindo de Ferrajoli, confirma-se, desse modo, que os tribunais de exceção negam o postulado do juiz natural, seja por ter sido constituído após o fato, seja por ser um instituto extraordinário, ou, em outras palavras, contrariante à justiça ordinária, o ordenamento jurídico esperado pelo cidadão.
Temendo a afetação da independência e da imparcialidade do julgador, Alexandre de Moraes vai além e propõe que o princípio do juiz natural seja interpretado de forma plena, proibindo não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, outrossim exigindo o “respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência”19. Também nesse sentido de plenitude está Fredie Didier Jr., ao imputar à garantia do juiz natural a exigência substancial da imparcialidade, que complementaria o juízo competente, subjetivamente capaz20.
É possível, evidentemente, relacionar outras garantias constitucionais do artigo 5º que rechaçam do ponto de vista teórico a implantação do tribunal de exceção, subsidiariamente ao princípio do juiz natural. Dentre elas estão o inciso XXXV (a lesão ou ameaça a direito), o inciso XXXIX (o princípio da legalidade: nullum crimen, nulla poena sine lege)21, o inciso LIV (o devido processo legal) e o inciso LV (a ampla defesa e o contraditório). Apesar da ênfase penal costumeiramente dada ao tribunal de exceção, é preciso salientar o amplo alcance do juiz natural, que abrange toda a atividade jurisdicional.22 Mais: a Constituição Federal vigente traz ainda, insculpidas em seu artigo 95 as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, que fornecem ao juiz, respectivamente, conforto quanto à estabilidade no cargo, no local e nas finanças, para que ele possa desempenhar sua atividade sem coação e com o mínimo de desvios possíveis.23
Por último, faz-se necessário destacar que o princípio de juiz natural não é lesado por instrumentos constitucionais como a prerrogativa de foro (art. 53, § 1º, art. 86, caput e art. 102, I, a e c) e o tribunal do júri (art. 5º, XXXVIII). São pré-estabelecidos pela Constituição e sua especialidade dimanam, no primeiro caso, da garantia do livre exercício da função política e do interesse público pelo julgamento imparcial dos seus atos24, e, no segundo caso, de garantias para o próprio julgado e para os jurados, como deduzido a partir das alíneas do inciso XXXVIII.
3 HISTÓRICO
3.1 Mundo
A expressão mais forte que se tem de um tribunal de exceção é sem dúvida o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. A corte, sediada na cidade alemã que deu nome ao tribunal, foi constituída com escopo de julgar os principais líderes nazistas após a derrota do exército alemão e a tomada de Berlim pelas forças aliadas. É válido ressaltar as circunstâncias históricas que deram fundamento à gênese deste tribunal.
A Primeira Guerra Mundial, que tomou espaço entre 1914 e 1918, foi evento sem precedentes. O número assustador de vítimas foi superior a qualquer contagem das guerras anteriores. Isto, aliado ao desgaste econômico de todos os países participantes do conflito, foi corolário de uma atmosfera de medo de que outra guerra de tamanhas proporções arrasasse de vez o continente europeu. Como forma de prevenir guerras posteriores foi assinado, em junho de 1919, o Tratado de Versalhes. O extenso acordo de paz redigido pelos países vencedores responsabilizou integralmente a Alemanha pelo ônus da guerra. O intuito de punir o país germânico fica claro na leitura acordo25.
O primeiro marco de um tribunal de exceção surge quando no Tratado de Versalhes fica previsto o julgamento do ex-imperador alemão Guilherme II de Hohenzollern por cinco juízes provindos de países pertencentes à coalizão aliada. No entanto, esta primeira tentativa de Tribunal Militar Internacional falha em função da reiterada negativa do governo dos Países Baixos em entregar Guilherme II26.
A devastação provocada pela guerra aditada às pesadas sanções impostas pelos países vitoriosos provocou uma crise avassaladora na Alemanha, clima propício ao surgimento e ascensão de partidos extremistas. Em 1933 é eleito, por voto popular, o Partido Nacional-Socialista, cuja liderança era atribuída a Adolf Hitler. Hitler, justificando-se em pensamento determinista, promove limpeza étnica e expansionismo alemão – teoria do espaço vital. Em 1º de setembro, quando o exército nazista aliado ao soviético invade secretamente a Polônia, as potências da Europa Ocidental decidem intervir. Dois dias depois, em 3 de setembro, a Grã-Bretanha e a França declaram guerra à Alemanha. Tem início a Segunda Guerra Mundial.
As execuções em massa no território polonês, o Holocausto judeu e o cerco a Leningrado são parte do legado da Segunda Guerra. Somadas, as mortes contabilizam o total assustador de aproximadamente 60 milhões de vítimas. Os massacres da guerra resultaram na consciência de necessidade de punição vigorosa dos criminosos derrotados. Foi criado um mecanismo responsável por julgar os criminosos de guerra: instaurou-se o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg27.
O Tribunal de Nuremberg era um tribunal circunstancial de execução. Ele foi criado para julgar e punir adequadamente os grandes criminosos de guerra dos países europeus do Eixo28.
O estatuto do Tribunal definia que cada signatário do acordo deveria designar um juiz e um suplente. Eram dispostos pelo artigo 6º do estatuto os crimes a serem julgados pelo tribunal de exceção: crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Os crimes contra a paz eram os mais severamente punidos, pois caracterizavam agressão a acordos internacionais de paz. Já os crimes de guerra são violações de leis e costumes da guerra – assassinatos, maus-tratos ou deportação para trabalhos forçados, etc. Por sua vez, os crimes contra a humanidade representaram os crimes cometidos pelos nazistas contra seus oponentes – tortura, assassinato, extermínio.
O julgamento no Tribunal Militar Internacional tratou-se de inovação do Direito Penal. Pela primeira vez o indivíduo era responsabilizado por crimes cometidos em nome do Estado29. E, por tratar-se de tribunal de exceção, foram tipificados crimes que não existiam anteriormente, quando o fato crime era na verdade anterior à lei que o tipificava. Salienta-se que, por consistir juízo de exceção, o Tribunal Penal Internacional de Nuremberg atropelou vários dos brocados maiores do Direito Penal, a exemplo do nullum crimen, nulla poena sine lege, que preza pela anterioridade da lei penal. É de fácil percepção também a desconsideração do princípio da proibição do bis in idem já que a mesma conduta é tipificada em mais de um encargo da acusação: o assassinato era tanto crime de guerra quanto crime contra a humanidade30.
Foram levados a julgamento 22 líderes nazistas. Deste total metade foi condenada à forca, 3 receberam prisão perpétua e 4 foram acusados a prisões de 10 a 20 anos. Apenas 2 foram inocentados e livrados de qualquer pena.
3.2 Brasil
O Brasil, apesar das previsões constitucionais tornarem defesa a existência de tribunal de exceção, tem a história nacional sido permeada de juízos que funcionaram em caráter de exceção. Eles estão sobretudo ligados à Lei de Segurança Nacional dos regimes militares autoritários.
Em 1889, com a proclamação da República, os militares assumem protagonismo na política brasileira. Com a República recém-nascida, havia o temor constante dos movimentos pró-monarquia. Para evitá-los foi editado, ainda em 1889, o decreto n. 85-A. Tal documento “cria comissão militar para julgamento de crimes de conspiração contra a República e seu governo, aplicando-lhe as penas militares de sedição”31. Esta comissão tratou-se da primeira forma de expressão de um tribunal de exceção no Brasil32.
A Lei de Segurança Nacional foi publicada em 1935 durante o governo Vargas. Tipificando crimes contra a ordem política e social, a lei tinha por fim capital transferir para a legislação especial crimes contra segurança e o Estado, submetendo-os a um regime de maior rigor e cerceando garantias processuais. A lei criava novos crimes e cominava penas, mas mantinha a estrutura vigente da Justiça Federal para julgamento desses. Somente em 1936 foi criado o Tribunal de Segurança Nacional, através da Lei n. 244 de 11 de outubro33. A lei 244 instituía o TSN como órgão da Justiça Militar e escusava seu funcionamento à necessidade do estado de guerra.
O TSN foi, sem sombra de dúvida, o ícone maior dos juízos de exceção brasileiros. O Tribunal era composto por juízes civis e militares escolhidos diretamente pelo Presidente da República. O parágrafo único do artigo 10 de seu ato constitutivo deixava às escâncaras a retroatividade da LSN e autorizava os magistrados a julgarem a partir de suas convicções pessoais: “os membros do Tribunal de Segurança Nacional julgarão como juizes de facto, por livre convicção, quer o processo seja originario, quer tenha vindo de outro juizo”34.
O jurista Hélio Bicudo, em seu livro Lei de Segurança Nacional, faz pertinente e dura crítica à LSN e ao seu respectivo tribunal. Ele atribui a não existência de foro privilegiado ou de juízes ou tribunais de exceção significação maior para existência de um Estado democrático35.
O Tribunal de Segurança Nacional foi extinto em 17 de novembro de 1945, dias depois do golpe que acabou com o Estado Novo36. Por mais que o Tribunal tenha acabado formalmente, há quem argua a similaridade deste com a Justiça Militar, que é “competente para processar e julgar delitos contra a segurança nacional praticados por civis e militares”37. Este ponto de vista não faz maioria na doutrina, que considera a criação de varas especializadas conforme ao princípio do juiz natural e à vedação dos tribunais ou juízos de exceção, visto que se tratam de situações em que as regras à elas relativas são abstratas, gerais e impessoais38. Gilmar Mendes discorre sobre a competência da Justiça Militar, asseverando que após os anos de regime militar, a Constituição procurou restringir a competência dessa corte ao julgamento de crimes militares definidos em lei. Tal reserva impõe “estrita observância, no sentido de se assegurar a reconhecida natureza especial da infração penal e requerer atuação de órgão jurisdicional especial por incidência do princípio da especialidade de jurisdição”39.
4 CASOS RELACIONADOS NA MODERNIDADE BRASILEIRA
Embora os exemplos clássicos de juízos de exceção localizem-se temporalmente no passado, e que, em âmbito internacional penal, sua configuração esteja cada vez mais rara, devido às restrições impostas por tratados, a vedação do inciso XXXVII está distante da obsolescência.
4.1 Os tribunais do tráfico
Flagrante desrespeito ao inciso em questão é testemunhado por moradores de comunidades pobres sob o jugo do governo paralelo dos traficantes, nos chamados “tribunais do tráfico”. Em premiada40 reportagem, o jornalista Mauro Ventura registra toda a crueldade que revolve tais tribunais, instituídos pelos traficantes no comando do morro para julgar e punir, do modo que lhes convém, certos tipos de crime. Assim como os tribunais do ordenamento brasileiro, os tribunais do tráfico gozam de uma estrutura relativamente organizada, com institutos análogos aos oficiais, porém utilizados de uma forma deturpada. Reporta Ventura:
[...] o gerente do tráfico foi o “juiz”; um comparsa, o “promotor”; e a figura mais temida era “o amigo que corta”, o bandido carrasco encarregado de executar a sentença de morte, esquartejar a vítima e dar sumiço ao corpo. [...] Foi indicado ao cargo pelo juiz — ou melhor, pelo chefe do morro — que, em vez de um martelo, porta uma metralhadora. E, no lugar da beca, traja chinelo, camiseta, bermuda, mochila e boné. Em contraste com a linguagem floreada, usa gírias e um vocabulário rude.41
O tribunal do tráfico conta com regras peculiares. Segundo o relato, estupro e alcaguetagem são faltas graves, assim como o furto e o roubo dentro da comunidade (“na pista”, ou seja, fora da favela, era permitido). A pena de morte é comum e não há benevolência quanto à idade do acusado. No caso analisado por Ventura, o menor julgado pôde contar com um “advogado” e dois “assistentes de defesa”, que conseguiram converter a pena capital em pena de banimento (ambas vedadas pelo artigo XLVII da Constituição Federal).
Não resta dúvida, perante o exposto, sobre o caráter de exceção desse tipo de tribunal paralelo:
O tribunal do tráfico é um tribunal de exceção.
— É um tribunal típico dos regimes absolutistas, despóticos — diz a juíza Luciana Fiala. — É aquele em que o órgão julgador é também aquele que acusa. Quem está acusando é também quem vai prolatar a sentença.
A coincidência entre os órgãos acaba com a imparcialidade necessária ao julgamento.— As partes devem estar equidistantes do juiz. No caso desses “tribunais”, inexiste qualquer garantia processual de direito à defesa, ao silêncio, ao contraditório, de direito do acusado de tomar conhecimento e ciência das acusações que lhe são imputadas, de participar de todos os atos processuais.
Com esse entendimento sobre a imparcialidade do juiz, coaduna o processualista Pacelli de Oliveira, que também sublinha a necessidade da não identidade entre acusador e julgador:
Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado.42 [destaques do autor]
Os tribunais do tráfico, embora não sejam exatamente instituídos post factum, dada a recorrência da cena – “familiar”43 aos habitantes da comunidade –, não encontram abrigo no princípio do juiz natural, na medida em que criam um regime de exceção que carece da autoridade competente, que somente pode ser designada pelo Estado: o único titular do jus puniendi44.
4.2 Legislação de exceção para a Copa do Mundo
Com o advento da Copa do Mundo de 2014, que está sendo organizada pela FIFA (Federação Internacional de Futebol) e será sediada no Brasil, abriu-se espaço para a discussão, no âmbito político-jurídico, da legislação específica que está sendo implantada no país, com destaque para a Lei Geral da Copa (Lei n. 12.663, de 2012) e para o Projeto de Lei n. 728, de 2011, tramitando até a presente data no Senado Federal.
Ambos os documentos instituem novos tipos penais que pretendem ter vigência durante um delimitado período de tempo. No primeiro caso, os crimes previstos nos artigos 30 a 33 terão vigência até 31 de dezembro de 2014 (art. 36)45. No PL 728, os crimes previstos são arrolados do artigo 4º ao artigo 12, e serão puníveis antes ou durante os eventos da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014 (art. 3º)46. Dentre os novos crimes estão a utilização indevida de símbolos oficiais, o marketing de emboscada por associação, o marketing de emboscada por intrusão, o terrorismo, o falsificação de ingresso e a venda fraudulenta de serviço turístico. A matéria é objeto de diversas críticas, principalmente quanto ao real escopo dos novos tipos penais e a designação de juizados ad hoc, presente no Projeto da Lei Geral da Copa (PL 2.330, de 2011)47 e suprimido da redação final da lei, mas ainda disposto no Projeto de Lei n. 72848.
Sobre os propósitos por trás da legislação, diz Adriana Filizzola D’Urso estarem “voltados exclusivamente à proteção de interesses dos organizadores, patrocinadores e participantes dos eventos, em detrimento dos interesses mais amplos da população brasileira”49. Atesta a penalista a prima ratio das medidas, que desrespeita o caráter ultima ratio do Direito Penal na medida em que cria novos crimes cujo interesse a ser protegido ou tem sua imprescindibilidade questionável ou podem ser protegidos por sanções civis ou administrativas50.
A previsão acerca dos juízos especializados, com fins de celeridade processual, também é vista com desconfiança. Representa evidente exemplo de tribunal de exceção por ser constituído ad hoc – utilizando-se novamente do supracitado conceito de José Francisco Cunha Ferraz Filho – em razão da pessoa ou do fato a ser julgado. Não se nega a magnificência de um evento como a Copa do Mundo, mas nem por isso é justificado o caráter excepcional de juízo que o Brasil deve adotar em razão disso. Diz o penalista Jefferson Botelho:
O Brasil precisa agilizar os processos pendentes que se arrastam por longos anos nos Tribunais, fruto de um sistema retrógado e atrasado, e não ficar pensando em criar tribunais especializados com o único propósito de atender a caprichos da FIFA. Isso mais pareceria um disfarçado Tribunal de Nuremberg que, após a Segunda Guerra Mundial, incumbiu-se de julgar os delitos praticados pelos nazistas, durante a guerra.51
O ordenamento brasileiro já prevê soluções internas, sem que haja necessidade de adoção de novas medidas por influência externa. É o que explicita Botelho ao reproduzir a opinião de Gilmar Mendes, para quem “os tribunais de exceção concorreriam com os juizados especiais já instalados, muitos deles voltados para as questões desportivas”, e de Carlos Veloso, segundo o qual a arbitragem pode ser uma saída para solucionar as demandas durante o evento52.
O regime de exceção que preconizam a Lei Geral da Copa e o PL 728 é, além de desnecessário em certos aspectos, incongruente com a ordem constitucional brasileira, principalmente por prejudicar a imparcialidade que deve reger o julgamento.
4.3 Ação Penal 470: o caso do mensalão
É de conhecimento geral53 a Ação Penal 470 que tramita na excelsa corte. O chamado mensalão foi exaustivamente veiculado pela mídia de massa e, ainda hoje, reúne atenção dos brasileiros. Trata-se de escândalo político que tomou espaço durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre os anos de 2005 e 2006.
Em essência, o mensalão consistia num esquema de desvio de recursos para compra de apoio político e pagamento de dívidas. Segundo acusação oferecida pela Procuradoria-Geral da República, a quadrilha que operacionalizava o conluio fraudulento dividia-se em três núcleos: o político, do então Ministro da Casa Civil José Dirceu – apontado como chefe do esquema – e dirigentes petistas de sua confiança; o operacional, de Marcos Valério e sócios; e o financeiro, integrado pela cúpula do Banco Rural54.
O esquema foi delatado pelo então Deputado Federal Roberto Jefferson no início de junho de 2005. Segundo Jefferson, os deputados da base aliada do Partido dos Trabalhadores recebiam propina para votar seguindo orientações do governo. Dirceu era responsável pelos acertos com outros parlamentares em troca de apoio ao governo. Marcos Valério, publicitário e dono de agências que mantinham contrato de trabalho com órgãos do governo, disponibilizava a estrutura empresarial através da qual eram realizados desvio e lavagem de recursos públicos em troca de contratos com o poder público. Por fim, mas não menos importante, o núcleo financeiro cuidava para que a propina chegasse aos parlamentares longe dos radares dos órgãos de controle.
Em agosto de 2007, dois anos após denúncia da Procuradoria-Geral da República o Supremo Tribunal Federal abriu o processo contra 38 acusados. Em dezembro de 2012, o Supremo concluiu o julgamento que durou 4 meses e meio. Dos 38 acusados 25 foram condenados, 12 foram absolvidos e 1 será julgado em primeira instância. A pena mais severa foi atribuída ao operador Marcos Valério, que foi condenado a mais de 40 anos de prisão. Os 3 deputados federais condenados tiveram seus mandatos cassados55.
A publicidade sem precedentes56 criou atmosfera de comoção nacional. O julgamento considerado marco histórico servia à sociedade como última esperança ante a impunidade tradicional dos criminosos de colarinho branco. O trâmite do processo, durante o desenrolar do julgamento, suscitaram as mais diversas discussões. Há quem associe peculiaridades do julgamento da Ação Penal 470 ao modus operandi de um juízo de exceção.
O principal argumento refere à pressão midiática que atuou sobre os ministros da Suprema Corte brasileira. O jurista Luiz Flávio Gomes, em artigo, assevera que os julgadores do mensalão sofreram o que ele intitula de “vitimização quaternária”. Diversa das outras três, que envolvem as partes litigantes do processo criminal, a vitimização quaternária recai sobre “a opressão praticada pela mídia – e outros agentes – contra operadores jurídicos”57. Ele conclui que:
Muitos juízes estão sendo estigmatizados pelo populismo penal midiático e isso coloca em risco, cada vez mais, a garantia da justiça imparcial e independente. O risco sério é a célebre frase “Há juízes em Berlim” (que glorifica a função da magistratura de tutela dos direitos e garantias das pessoas frente aos poderes constituídos) transformar-se num vazio infinito com a consequente regressão da sociedade para a era selvagem da lei do mais forte, onde ganha não a justiça, sim, quem tem maior poder de pressão.58
O risco da garantia da justiça imparcial a que ele se refere, se constatado, poderia traduzir o julgamento em juízo de exceção já que, segundo Ada Pellegrini Grinover, a imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. Para ela, a imparcialidade do juiz é requisito imprescindível para que a relação processual se instaure validamente59.
O Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura propõe precípua reflexão no que se refere ao tema da neutralidade de juiz e a pressão social pelo combate à criminalidade. Segundo ele, o juiz que julga levando em conta apenas seus próprios preconceitos ou simpatias incorre em julgamento ad hoc e macula o constitucionalismo. Porém, apesar de perspectiva idílica de magistrado neutro capaz de compreender e tolerar as diferenças, o juiz não deve manter-se contemplador impassível da prova, aplicando mecanicamente a norma. O juiz há de agir no processo com meta precípua de fazer justiça seguindo legislação que lhe serve de norte60. Segundo o Desembargador:
A pressão social pelo combate à criminalidade é uma forma sadia de a sociedade reclamar justiça, do seu desaparelhamento, da sua morosidade, dos seus custos e de suas mazelas. Porém não pode ser compreendida como forma de inibir ou coagir o magistrado no desempenho de sua função judicante, que, além de justa, requer coragem.61
Trazendo ao foco a Ação Penal 470, é possível concluir pela explanação supracitada que, apesar de haver inegável pressão social, ela não deve ser entendida como mácula ao julgamento. O magistrado deve sempre ter em conta o ordenamento que o alicerça e a meta de fazer justiça, percebendo a pressão social como forma válida de reclame da sociedade.
Além disso, cabe concluir diferença entre imparcialidade e neutralidade. O juiz tem dever de imparcialidade – incorrendo em vício de inconstitucionalidade se não o cumprir –, no entanto, não há de ser sempre neutro:
Penso que o juiz deva ser sempre imparcial, mas não deve ser neutro, evidentemente se dermos a esse adjetivo o sentido de indiferente à sorte do pleito. O juiz, como lógico, não pode e não deve ser indiferente à sorte do pleito. Ao contrário, ele tem de se preocupar em fazer, na medida do possível, que o pleito chegue a um resultado justo.62
A pressão social que envolve o magistrado não deve ser vista como fator estigmatizador do julgamento. Ela atua na inclusão do juiz na concreção do pleito. Apontar essa forma válida de expressão social como risco à garantia de uma justiça imparcial é deixar a imparcialidade, princípio capital do direito penal, ao sabor das contingências de uma sociedade democrática.
O argumento de parcialidade, fruto da pressão midiática e social, mostra-se insuficiente, por si só, para apontar o julgamento da Ação Penal 470 como juízo de exceção. A respeito do caso do mensalão, tal importante argumento deve ser desfeito. Todo caso de repercussão há de invocar reação social. Arguir parcialidade sempre que houver reclame da sociedade compromete, em vez de proteger a segurança jurídica ou o julgamento idôneo, contribui para prejudicá-las.