“Estudar o direito é, assim, uma atividade difícil, que exige não só acuidade, inteligência, preparo, mas também encantamento, intuição, espontaneidade. Para compreendê-lo é preciso, pois, saber e amar. Só o homem que sabe pode ter-lhe o domínio. Mas só quem o ama é capaz de dominá-lo rendendo-se a ele”
Tércio Sampaio Ferraz Jr.[1]
Dispõe a Constituição Federal brasileira que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225, caput), reconhecendo-se, ainda, expressamente, no próprio texto constitucional, a específica faceta laborativa do meio ambiente humano, quando determina ao SUS que colabore na proteção do meio ambiente, “nele compreendido o do trabalho” (art. 200, VIII).
No tocante à relação entre o poder privado patronal e o meio ambiente de trabalho, afigura-se mesmo iniludível, no bojo constitucional, o específico dever fundamental do tomador dos serviços quanto à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII).
Quanto à relação entre o poder público e o meio ambiente, incluindo o do trabalho, exsurge de nossa Carta Constitucional um verdadeiro pacto federativo de cooperação ambiental. Com efeito, fixou-se como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23, caput e inciso VI – grifamos), destacando-se que “leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (art. 23, parágrafo único – grifamos).
Ainda nesse intrincado terreno constitucional de fixação de competências aos entes federativos, estabeleceu-se competir privativamente à União legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I), atribuindo-se à União, aos Estados e ao Distrito Federal, por outro lado, competência concorrente para legislador sobre “proteção do meio ambiente e controle da poluição” (art. 24, VI), ficando de fora, portanto, nesse particular, os Municípios.
Entretanto, a Carta Constitucional conferiu expressa competência aos Municípios para “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (art. 30, II – grifamos), daí se podendo entrever, portanto, a possibilidade de também os Municípios legislarem, em alguma medida, ainda que em caráter meramente suplementar, assunto tipicamente ambiental.
De todo modo, a própria Constituição Federal também estabelece competir aos Municípios “legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, I – grifamos). E, aqui, a nosso sentir, vão duas anotações relevantes para uma boa exegese desse dispositivo: i) não se vê mencionado, ali, que tal interesse deva ser exclusivamente local; ii) esse interesse há de ser aferido não como um específico assunto, isoladamente considerado, mas, sim, de acordo com o interesse da comunidade local, contextualmente considerado.
Mais recentemente, veio à baila a Lei Complementar nº 140/2011, concretizando o princípio da cooperação mencionado no parágrafo único do referido art. 23 da Carta Magna. Ali, ficou estabelecido, por exemplo, que “constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar: I - proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo gestão descentralizada, democrática e eficiente; II - garantir o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do meio ambiente, observando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (...)” (art. 3º, I e II – grifamos).
Essa Lei Complementar estabeleceu ainda que “os entes federativos podem valer-se, entre outros, dos seguintes instrumentos de cooperação institucional [tratando-se, para nós, de um rol exemplificativo]: I - consórcios públicos (...); II - convênios, acordos de cooperação técnica e outros instrumentos similares com órgãos e entidades do Poder Público (...); (...) IV - fundos públicos e privados e outros instrumentos econômicos; (...) VI - delegação da execução de ações administrativas de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar” (art. 4º, I, II, IV e VI – grifamos).
Fixou-se, também, nessa mesma Lei Complementar, serem “ações administrativas dos Municípios [em rol igualmente numerus apertus]: (...) VI - promover o desenvolvimento de estudos e pesquisas direcionados à proteção e à gestão ambiental, divulgando os resultados obtidos; (...) XI - promover e orientar a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a proteção do meio ambiente; XII - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, na forma da lei; XIII - exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município” (art. 9º, VI, XI, XII e XIII – grifamos).
Aí está, portanto, um cenário de esplendorosa ampliação de competências e atribuições municipais no tocante à temática ambiental – o que decerto inclui assuntos labor-ambientais –, à luz de um alvissareiro pacto federativo de cooperação ambiental cujos contornos se tornaram mais concretos e ampliados por meio da citada Lei Complementar nº 140/2011.
Nesse contexto, emerge às associações locais de magistrados trabalhistas – entes integrantes da sociedade civil organizada e compostos por profissionais dotados de alta qualificação técnica – a rica possibilidade de fomentar junto ao Poder Público municipal a execução de diversas medidas tendentes à máxima proteção do meio ambiente laboral, tais como a produção de enunciados legais, a elaboração de diretivas administrativas ou mesmo o firmamento de convênios e acordos de cooperação técnica e educação ambiental, até mesmo em face do dever fundamental que igualmente sobre ambos recai, no que refere à defesa e proteção do meio ambiente (CF, art. 225, caput), nele incluído o do trabalho (CF, art. 200, VIII).
Essa é uma experiência que vivenciamos de perto e com grande êxito na ocasião em que, a convite da Câmara Municipal de Campinas (SP), tivemos oportunidade de ofertar preciosas considerações técnicas à Comissão Especial de Estudos para a Segurança na Construção Civil, sob a presidência do Vereador Carlinhos Camelô e cujos trabalhos rapidamente redundaram no atual Projeto de Lei Complementar nº 34/2013, que por ali tramita. Naquele ensejo, foram ouvidos os principais atores sociais envolvidos na questão da segurança dos trabalhadores no meio ambiente laboral da indústria da construção civil campineira: a academia, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e diversos representantes da sociedade civil organizada.
O referido Projeto de Lei Complementar insere no Código de Obras do Município a necessidade de cumprimento da NR-18 pelas empresas de construção civil em atividade na cidade de Campinas (SP). Com essa alteração legislativa, o Município também passa a ter competência para fiscalizar o integral cumprimento da NR-18, podendo até cassar o alvará de obra que esteja notoriamente colocando em risco a saúde dos trabalhadores.
A iniciativa se deve à grande quantidade de trabalhadores mortos nos últimos anos em acidentes de trabalho na construção civil de Campinas (SP), o que foi compreendido como relevante interesse de cunho local a merecer urgente tratamento pelas autoridades públicas integrantes do Poder Legislativo municipal[2].
Infelizmente, temos a firme convicção de que essa mesma fatídica realidade, atinente a acidentes e doenças surgidos no meio ambiente de trabalho, repete-se em inúmeros outros municípios brasileiros, de sorte que a força motriz de iniciativas semelhantes, diante do Poder Público municipal, bem que poderia partir de associações locais de magistrados trabalhistas – diante do comprovado conhecimento e do presumível amor à causa.
Daí o porquê desta proposta, cuja ideia, vale ressaltar, foi recentemente aprovada em formato de tese por ampla maioria junto ao plenário do XVII Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (CONAMAT), realizado de 29 de abril a 2 de maio de 2014 na cidade de Gramado (RS)[3]. Agora, o que nos cabe é a máxima propagação desse constructo, estimulando novas ações e monitorando novas experiências.
Por isso, mãos à obra!
[1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 21.
[2] Para mais detalhes sobre o assunto, confira-se: FELICIANO, Guilherme Guimarães; MARANHÃO, Ney; GONÇALVES, Flávio Leme. A construção civil e a construção da paz na sociedade civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, nº 3899, [5] mar. [2014]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26834>. Acesso em: 08-03-2014.
[3] A tese foi subscrita por Guilherme Guimarães Feliciano e Ney Maranhão, magistrados trabalhistas, sendo que o advogado Flávio Leme Gonçalves compareceu ao evento como coautor externo à magistratura, fato inédito nesse tipo de evento.