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A problemática da judicialização dos conflitos previdenciários e a ação civil pública como instrumento processual de efetivação da proteção constitucional previdenciária

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08/07/2014 às 12:55
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Na lista de soluções para reduzir a litigiosidade crescente e desatravancar os fóruns e tribunais brasileiros que julgam ações contra o INSS está o uso do processo coletivo, instaurado por meio de ações civis públicas, apto a reduzir de forma considerável as milhões de demandas individuais que discutem questões meramente de direito.

Resumo: O presente artigo tratará, sinteticamente, da importância de se interpretar as normas de direito previdenciário sempre em harmonia com os demais direitos e garantias fundamentais. Aponta, ainda, as principais causas do crescimento desordenado das ações judiciais que têm como réu o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, discutindo a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ações civis públicas visando a proteção de direitos individuais homogêneos dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social e os reflexos positivos na efetivação do acesso ao Poder Judiciário, da economia processual e da razoável duração dos processos judiciais e administrativos.

Palavras-chaves: Constituição – Previdência Social – Seguro Social – Ação Civil Pública – Ministério Público – Judicialização.


1. O SISTEMA CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO BRASILEIRO

1.1 O SEGURO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, erigindo-se como carta fundadora de um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais do cidadão, diferentemente das constituições anteriores, cuidou com especial atenção do direito à previdência social.

Como parte integrante do tripé que compõe a seguridade social brasileira, a Previdência Social está topograficamente situada no Título VIII da Constituição Federal, denominado “Da Ordem Social”. Nos termos do art. 193 da CF/88 “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem estar e a justiça social.” ( BRASIL, 2013: 113)

Anote-se que a Previdência Social, como bem lembra Marisa Ferreira dos Santos, “[...] é um dos instrumentos de preservação da dignidade da pessoa humana e de redução das desigualdades sociais e regionais, que são respectivamente fundamento e objetivo do Estado Democrático de Direito (arts. 1º e 3º da CF)”. (SANTOS, 2011: 43)

Em linhas gerais, podemos afirmar que o legislador constituinte pátrio, ao inserir na Constituição o direito do cidadão à Previdência Social foi muito além de uma preocupação nacional, pois atendeu a um velho anseio já manifesto na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada no ano 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa Carta Humanitária prevê em seu artigo XXV que

1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. (ONU, 2012: 3)

Verifica-se que, em prol da concretização da justiça social, instituiu-se com a Constituição Cidadã um moderno Seguro Social, firmado no Princípio da Solidariedade, que é responsável por cobrir, dentro dos limites previstos em lei, necessidades sociais decorrentes de certas contingências previamente definidas pelo próprio texto constitucional(art. 201). Cite-se, como exemplo, a cobertura de eventos como doença, invalidez, morte, idade avançada, proteção à maternidade e a proteção à família dos segurados de baixa renda.

Esse Seguro Social, atendidos os requisitos previstos em legislação ordinária sobre forma de contribuição e carência mínima exigida para obtenção dos benefícios concedidos aos segurados e aos seus dependentes, está posto na Carta Magna como verdadeiro direito subjetivo do cidadão. Nesse sentido, observa Eduardo Luiz Zanchet que

Sob o enfoque material, Previdência Social é um direito social subjetivo do indivíduo, exercido frente ao Estado-Providência, já que a sociedade e, consequentemente, este indivíduo, através de um sistema de custeio do seguro social, garantiu os recursos financeiros suficientes para a aplicação da política de segurança social. (ZANCHET, 2009: 6)

Coexistem em nosso ordenamento jurídico três diferentes regimes de previdência: O Regime Geral de Previdência Social(art. 201, CF/88), os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos civis efetivos e dos Militares(art. 40 e art. 42, §§ 1º e 2º da CF/88, respectivamente) e os regimes privados de previdência complementar( art. 202, CF/88).

O Regime Geral de Previdência Social, como os demais, tem caráter contributivo e é, em regra, de filiação obrigatória para todas os brasileiros maiores de 16(dezesseis) anos que exercem alguma atividade remunerada e que não sejam, em relação a essas atividades, filiados a algum regime próprio de previdência.

Os regimes próprios de previdência social, por sua vez, têm como filiados os servidores civis titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. Os militares também têm seus regimes próprios, sujeitos a regras próprias, definidas na Constituição Federal e em leis específicas.

Por último, os regimes de previdência privada complementar, nos termos do art. 202 da CF/88, são organizados de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, são facultativos, baseados na constituição de reservas que garantam o benefício contratado e regulados por lei complementar.

Por questões metodológicas, o objeto de estudo deste trabalho será o Regime Geral de Previdência Social, o mais complexo e o mais abrangente dos regimes securitários.

1.2 A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS PREVIDENCIÁRIAS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL                  

Interpretar uma norma jurídica significa, em poucas palavras, buscar o seu verdadeiro sentido, alcance e a aplicação correta em um caso concreto.

Toda norma jurídica deve ser interpretada. No vigente Estado Democrático de Direito o brocardo in claris cessat interpretatio (quando a norma for clara não há necessidade de interpretá-la) encontra-se superado. A claridade produzida por uma interpretação gramatical pode não corresponder ao verdadeiro sentido da norma em um determinado momento histórico ou no contexto em que ela está inserida. Nesse diapasão, assevera Maria Helena Diniz que

A norma jurídica sempre necessita de interpretação. A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente, e a outras questões que, na prática, em sua atuação, podem sempre surgir. Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente. (DINIZ, 1991: 381)

Embora presumidamente constitucionais, os textos legais muitas vezes fogem dos verdadeiros objetivos do legislador constituinte e do espírito harmônico que estrutura a Carta Magna. Não é diferente na seara previdenciária, onde as leis devem sempre ser interpretadas de forma a refletir a maior amplitude possível dos direitos e das garantias fundamentais.

Observa-se que quotidianamente o operador do direito depara-se com situações em que o direito fundamental à Previdência Social está em conflito com outros direitos e garantias fundamentais. Nesses casos, o intérprete deve buscar uma harmonização dos interesses e direitos envolvidos, sopesando-os, conforme ensina Alexandre de Moraes:

[…] quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (MORAES, 2010: 33)

Cabe observar que o juiz em sua atividade interpretativa sempre deverá se pautar pelo atendimento da finalidade social da lei previdenciária. Ademais, como adverte Marisa Ferreira dos Santos, “Os resultados da interpretação da legislação previdenciária nunca podem acentuar desigualdades nem contrariar o princípio da dignidade da pessoa humana.” (SANTOS, 2011: 50)

Por óbvio, isso não quer dizer que o juiz, em nome do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, está autorizado a conceder aposentadoria ao cidadão que nunca contribuiu para o sistema previdenciário, sob pena de macular o preceito constitucional que prevê o caráter contributivo do regime geral de previdência social.[1]

Nessa esteira de raciocínio, deve-se levar em conta, ainda, que ao magistrado não é permitido ignorar dispositivos legais específicos da lei previdenciária, dando a eles interpretação ampliativa ou associando-os analogicamente a dispositivos legais de outros ramos do direito, em razão do previsto no art. 195, § 5º da CF/88 que determina que “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. (BRASIL, 2012: 76)

Desse modo, a título de exemplo, podemos citar a impossibilidade da prorrogação por determinação judicial do pagamento de pensão por morte para o filho maior de 21 anos, não inválido, até que este conclua o curso superior. Eventual fundamentação alicerçada no Direito à Educação, também previsto no texto constitucional, ou equiparação por analogia entre a pensão por morte previdenciária e a pensão alimentícia, são insuficientes para sustentar a decisão, considerando que o legislador não previu fonte de custeio para manter o pagamento desse beneficio ao filho não inválido por lapso superior a 21 anos. Esse é o entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos:

PREVIDENCIÁRIO. Agravo Regimental EM RECURSO ESPECIAL. PENSÃO POR MORTE. FILHO NÃO-INVÁLIDO. CESSAÇÃO DO BENEFÍCIO AOS 21 ANOS DE IDADE. PRORROGAÇÃO ATÉ OS 24 ANOS POR SER ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NA LEI 8.213/91. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. 1. A jurisprudência do STJ já firmou o entendimento de que a pensão por morte é devida ao filho menor de 21 anos ou inválido, não sendo possível, em face da ausência de previsão legal, a prorrogação do recebimento desse benefício até os 24 anos, ainda que o beneficiário seja estudante universitário. 2. Agravo Regimental desprovido. (AgRg no REsp 1069360/SE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 30/10/2008, DJe 01/12/2008) (BRASÍLIA, 2008: 01)

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2. A  AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

2.1 O INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL (INSS) E A PROBLEMÁTICA DA JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS PREVIDENCIÁRIOS

O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal, criada pela Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, originou-se da fusão do Instituto da Previdência e Assistência Social (IAPAS) com o Instituto Nacional de Previdência Social(INPS) e é responsável pela gestão do Regime Geral de Previdência Social(RGPS).

De acordo com o art. 1º do anexo I do Decreto nº 7.556, de 24 agosto de 2011(estrutura regimental do Instituto Nacional do Seguro Social), o INSS tem por finalidade “[...] promover o reconhecimento de direito ao recebimento de benefícios administrados pela Previdência Social, assegurando agilidade, comodidade aos seus usuários e ampliação do controle social”. (BRASIL, 2013: 01)

Embora muito se tenha feito nesses últimos anos para reduzir o prazo de espera no atendimento aos segurados e acabar com o estigma das famigeradas “filas do INSS”, a autarquia vê-se cada vez mais mergulhada em um outro gigantesco problema: o crescimento desordenado do número de ações judiciais em seu desfavor.

Dados recentemente divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça revelaram que o INSS é o maior litigante do país. De acordo com a reportagem publicada em 29 de outubro de 2012 na página do CNJ na internet

[…] o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) continua a ocupar o primeiro lugar no ranking das organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário Trabalhista, Federal e dos estados. O órgão respondeu por 4,38% das ações que ingressaram nesses três ramos da Justiça nos 10 primeiros meses do ano passado. […] Na Justiça Federal, o setor público federal e os bancos também apresentaram os maiores percentuais de processos novos, respectivamente com 68,8% e 13,4% na primeira instância e 92,3% e 7,2% nos juizados especiais. Nesse segmento, duas instituições se destacaram por concentrar boa parte das novas ações movidas nos 10 primeiros meses do ano passado: o INSS (com 34% de ações no primeiro grau e 79% nos juizados especiais) e a Caixa Econômica Federal (com 13% dos processos no primeiro grau e 7% nos juizados especiais). (SOUZA, 2012: 01)

Essa litigiosidade crescente está associada a diversos fatores. Dentre eles podemos destacar: a) Aspectos sociais e políticos, como, por exemplo, o trabalho informal preponderante principalmente no meio rural, a interiorização da justiça federal e a facilitação do acesso ao poder judiciário;

b) O não esgotamento das vias administrativas para resolução de conflitos instaurados entre o INSS e os seus segurados; c) A edição pelo INSS de vários atos normativos com entendimentos que contrariam a jurisprudência já sedimentada dos tribunais; e d) a falta de capacitação dos servidores da autarquia previdenciária, responsáveis pelas análises dos requerimentos de benefícios previdenciários e assistenciais.

As decisões administrativas relacionadas ao reconhecimento dos direitos previdenciários dos trabalhadores rurais estão entre as que mais são questionadas no poder judiciário. O INSS, mesmo tendo ciência do alto grau de informalidade que rege as relações de trabalho no campo, mostra-se muito inflexível ao apreciar provas de atividade rural, ao ponto de estipular em seus atos normativos um rol taxativo de documentos que podem ser aceitos para tal finalidade, ferindo, assim, o direito do requerente à produção de provas, corolário do direito constitucional da Ampla Defesa (art. 5º, LV da CF/88).

Não se pode olvidar que a criação dos juizados especiais federais, em 2001, e o processo de interiorização da justiça federal, que vem ocorrendo com maior intensidade nos últimos anos, acabou por revelar uma demanda reprimida em relação às ações propostas contra o INSS. Antes, por exemplo, a cidadã que tinha um pedido de salário maternidade ou de auxílio doença indeferido acabava não ingressando na justiça para ter reconhecido o seu direito, tendo em vista que os custos com a contratação de advogado e a longa duração de um processo acabavam por desestimular o acesso ao poder judiciário. A facilidade de se poder pedir a prestação jurisdicional sem o patrocínio de um advogado em causas cujo valor não ultrapasse sessenta salários mínimos e a celeridade dos procedimentos do juizado especial federal acabaram por colaborar com os altos índices de ações judiciais propostas em face do INSS.

Nos termos do art. 305 do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo decreto nº 3.048/99, quando um requerimento de benefício previdenciário ou assistencial é indeferido pelo INSS o requerente ainda pode interpor recurso para o Conselho de Recursos da Previdência Social, que é representado em primeira instância pelas Juntas de Recursos da Previdência Social e em segunda instância pelas Câmaras de Julgamento. Todavia, grande parte dos requerimentos que chegam ao Poder Judiciário não passam pela apreciação desses órgãos administrativos. A explicação para isso está no fato de que no Brasil o acesso ao Poder Judiciário está protegido pelo Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, previsto no art. 5º, inciso XXXV da CF/88. Assim, não é obrigatório que o cidadão esgote todas as vias administrativas para ver sua pretensão resistida ser apreciada por um magistrado.

Além disso, a falta de conhecimento por parte dos segurados sobre a existência de órgãos administrativos responsáveis pela reapreciação das decisões proferidas pelo INSS e a demora na tramitação de um recurso administrativo, que as vezes supera o tempo decorrente entre a propositura de uma ação e a prolação de uma sentença nos juizados especiais, são causas conhecidas da não utilização desse meio recursal.

A maioria das decisões proferidas nos processos administrativos de requerimento de benefícios previdenciários e assistências que tramitam no INSS são fundamentadas em atos normativos secundários, como orientações internas, memorandos e instruções normativas , que expõe o entendimento da Autarquia sobre a legislação em vigor. O grande problema desses atos normativos é que eles nem sempre refletem o melhor direito.

Há diversas questões que envolvem matéria previdenciária que há muito tempo foram pacificadas pela jurisprudência dos tribunais superiores, porém o INSS, em reiteradas edições de seus atos normativos, mantém posição antagônica em relação a esses entendimentos jurisprudenciais solidificados, obrigando os seus servidores a negarem direitos que são amplamente reconhecidos pelo Poder Judiciário.

Não bastasse forçar indevidamente seus segurados a ingressarem com ações judiciais para terem reconhecidos seus direitos, o INSS, por meio da Procuradoria Federal Especializada, com bastante frequência recorre de decisões de primeira instância, fundamentadas e condizentes com as repetidas decisões dos tribunais superiores sobre alguma matéria previdenciária, protelando injusta e injustificadamente o reconhecimento de um direito legítimo.

Por último, como causa do excessivo volume de ações judiciais propostas em face do INSS podemos citar a falta de capacitação dos servidores responsáveis pela análise de requerimentos de benefícios previdenciários e assistências. É cediço que a maioria desses servidores são técnicos do seguro social, cuja formação exigida para ingresso no cargo é o ensino médio(antigo segundo grau), que não recebem treinamento adequado para desempenharem tarefas deveras complexas, que demandam aptidões muitas vezes comparadas às aptidões de um juiz. É o que ocorre quando, por exemplo, um servidor analisando os documentos e a prova testemunhal produzidas nos autos de um requerimento administrativo de benefício previdenciário reconhece para fins previdenciários a existência de um vínculo empregatício ou de uma união estável.

Aliado ao despreparo, encontramos um velho fantasma que assombra a grande parte dos servidores do INSS: a auditoria. Por causa do temor em responder a um processo administrativo, por ter concedido indevidamente um benefício, o servidor do INSS acaba adotando o nocivo jargão “na dúvida indefira”, livrando-se da responsabilidade de decidir de forma fundamentada.                                                                        

2.2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA: CONCEITUAÇÃO E ASPECTOS RELEVANTES

A ação civil pública foi introduzida em nosso ordenamento jurídico com o advento da lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Em princípio era um instrumento processual que destinava-se apenas à proteção ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos e valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Com o avanço legislativo propulsionado pela Constituição Federal de 1988, especialmente após a vigência do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a ação civil pública passou a abarcar um amplo rol protetivo, que envolvem interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos.

Assim, podemos conceituar a ação civil pública como instrumento processual, de índole claramente constitucional (art. 129, III da CF/88), utilizado pelo Ministério Público ou por qualquer dos legitimados inseridos no art. 5º da Lei nº 7.347/85, que tem por objetivo a proteção dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, parágrafo único, incisos I, II e III, define o que são interesses ou direitos difusos, interesses ou direitos coletivos e interesses ou direitos individuais homogêneos, da seguinte forma:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. (BRASIL, 2013: 17)

De acordo com o art. 3º da Lei nº 7.347/85 “A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. (BRASIL, 2013: 1)

A dinâmica do processo coletivo aplicada à ação civil pública permite com que, muitas vezes, um grande número de lesados individuais encontrem soluções apropriadas para seus problemas, sem necessidade de que cada indivíduo tenha que contratar um advogado para acionar a justiça, evitando-se, assim, julgamentos contraditórios, considerando que a decisão no processo coletivo, se procedente, beneficiará a todo o grupo lesado, resultando em grande economia processual. Com propriedade, Janaína Siebra Bezer afirma que

A Ação Civil Pública é instrumento facilitador do acesso á justiça e da economia processual. No que tange ao princípio constitucional do acesso à justiça, a Ação Civil Pública possibilita que fatias da sociedade que não buscariam proteção jurisdicional em virtude da falta de informação, hipossuficiência ou ambos, tenham seus direitos protegidos ao momento em que, através da ação coletiva, a tutela se dará de forma abrangente, algumas vezes protegendo até mesmo sujeitos indetermináveis. A Ação Civil Pública é instrumento do princípio da economia processual no ponto de vista que uma única ação coletiva assegura proteção jurisdicional a inúmeros cidadãos. A Ação civil pública substitui incontáveis processos que poderiam ter sido inaugurados individualmente, por cada um dos cidadãos, abarrotando assim, um judiciário que busca maneiras de tornar mais célere e razoável a duração do processo. (BEZER, 2011: 06)

Nesse mesmo sentido, José Adonis Callou de Araújo Sá preleciona que

[…] a ação civil pública evidencia-se como veículo de amplo acesso à Justiça, sobretudo para a solução de conflitos transindividuais que afetam grupos determinados ou indeterminados de pessoas, que de outro modo não teriam como obter a tutela do interesse. (SÁ, 2002: 112)

E, conclui, utilizando-se das palavras de Ana Lúcia Amaral, que o manejo da Ação Civil Pública significa

[…] a proteção do interesse público expresso na preservação da capacidade do poder judiciário em cumprir suas funções, ao impedir que essas milhares de ações individuais esgotassem sua já escassa possibilidade de dar vasão aos processos em curso. 2 (AMARAL apud SÁ, 2002: 112)

2.3 CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA E A LEGITIMIDADE AD CAUSAUM DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA FIGURAR NO POLO ATIVO DESSA AÇÃO

Travou-se nos últimos anos um grande embate na doutrina e na jurisprudência a respeito da possibilidade da utilização de ações civis públicas pelo Ministério Público para a defesa de interesses dos segurados e dos dependentes dos segurados do Regime Geral de Previdência Social.

É cediço que a ação civil pública não se presta à defesa de interesses essencialmente individuais e particularizados. Por outro lado, é possível que a ação civil pública seja utilizada para a proteção de direitos individuais homogêneos dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social?

Como já dissemos alhures, direitos ou interesses individuais homogêneos são aqueles que têm uma mesma origem comum, constituindo-se em subespécie dos direitos coletivos. Assim, para os fins propostos, podemos citar como exemplos de interesses individuais homogêneos os interesses dos vários beneficiários que tiveram seus benefícios previdenciários calculados incorretamente pelo INSS em decorrência de errônea interpretação de um mesmo dispositivo legal ou de determinado grupo de pessoas, como são os menores sob guarda, que lutam pelo reconhecimento de sua condição de dependência em relação aos seus guardiães.

Os defensores da tese de que o Ministério Público não é parte legítima para a propositura de ação civil pública em matéria previdenciária sustentam, entre outros argumentos, que o benefício previdenciário traduz direito disponível, não abrangido pelo art. 127, caput, da Constitucional Federal, que assegura ao Parquet a defesa de interesses individuais indisponíveis e que as relações jurídicas entre o INSS e os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social não são relações de consumo, o que afastaria a aplicação do art. 81, II, do Código de Defesa do Consumidor que trata dos interesses individuais.

Humberto Theodoro Júnior, apoiando-se nas lições de Hugo de Brito Machado, em defesa da corrente que não admite a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ações civis públicas que versem sobre direitos individuais disponíveis, afirma que “Não se pode admitir a defesa, pelo Ministério Público, de um direito individual disponível, ao argumento de que se trata de um direito homogêneo. [...] isso implicaria admitir a prática da advocacia pelo Ministério Público”.3 (MACHADO apud THEODORO JÚNIOR, 2010: 523).

Na jurisprudência, encontramos alguns julgados seguindo essa mesma linha doutrinária, principalmente no Superior Tribunal de Justiça, onde esse posicionamento perdurou com maior força até o ano de 2010. A título de exemplo, confira-se o seguinte julgado, de relatoria do Ministro José Arnaldo da Fonseca, assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PREVIDENCIÁRIO. ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. RENDA FAMILIAR.

O Ministério Público não tem legitimidade para ajuizar ação civil pública relativa a benefício previdenciário, uma vez que se trata de interesse individual disponível. Notadamente, o Texto Constitucional de 88 dá uma dimensão sem precedentes ao Ministério Público, entretanto, convenço-me também de sua ilegitimidade para propor ação civil pública nas hipóteses de benefícios previdenciários, uma vez que, a bem da verdade, trata-se de direitos individuais disponíveis que podem ser renunciados por seu titular e que não se enquadram na hipótese de relação de consumo, uma vez que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, em que não se amolda a situação aqui enfrentada. Recurso especial da União Prejudicado. (STJ, Resp 502.744/SC, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. Quinta Turma, DJ 25/04/2005) (BRASÍLIA, 2005: 01)

Não obstante os argumentos apresentados pela primeira corrente e o indiscutível conhecimento jurídico de seus defensores, parece-nos sobressair, com razão, a segunda corrente, que admite a legitimidade do Ministério Público para propor ações civis públicas que versem sobre direitos individuais homogêneos dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, ainda que disponíveis.

Para essa segunda corrente a ação civil pública não se restringe apenas à tutela processual de direitos individuais homogêneos ligados às relações de consumo, sendo possível a sua propositura para proteção de quaisquer outras espécies de interesses transindividuais. Com maior ênfase, entendem seus defensores que o que deve ser observado não é simplesmente a disponibilidade do direito, mas sim, se no caso concreto existe caracterização de relevante interesse social que justifique a legitimação do Ministério Público para a propositura de ação civil pública visando tutelar direitos individuais homogêneos disponíveis.

Ada Peregrine Grinover afirma que

Muito embora a Constituição atribua ao MP apenas a defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127), além dos difusos e coletivos (art. 129), III), a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos levou o legislador ordinário a conferir ao MP a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX). A dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127 da CF. (GRINOVER, 1993: 213)

Deveras, o legislador ordinário em nenhum momento proibiu a atuação do Ministério Público na defesa dos direitos individuais homogêneos dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, o que se vedou no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85 foi “[...] a propositura de ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”. (BRASIL, 2013: 01)

Ao contrário, o legislador fixou no art. 6º, inciso VII, alíneas “a” e “c” da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, como competência do Ministério Público da União, promover o inquérito civil e a ação civil pública para “a proteção dos direitos constitucionais” e “[...] outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos”. (BRASIL, 2013: 02). Frise-se que a Previdência Social é Direito Constitucional Social, previsto expressamente no art. 6º da Constituição Federal, merecendo, portanto, ser tutelado pelo Ministério Público mediante a ação civil pública.

Como marco decisivo, que alterou e pacificou por hora o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão em apreço, está a publicação do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial nº 1.142.630-PR, de relatoria da Ministra Laurita Vaz, assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DESTINADA À TUTELA DE DIREITOS DE NATUREZA PREVIDENCIÁRIA (NO CASO, REVISÃO DE BENEFÍCIOS). EXISTÊNCIA DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECONHECIMENTO. 1. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, os interesses individuais homogêneos classificam-se como subespécies dos interesses coletivos, previstos no art. 129, inciso III, da Constituição Federal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Por sua vez, a Lei Complementar n.º 75/93 (art. 6.º, VII, a) e a Lei n.º 8.625/93 (art. 25, IV, a) legitimam o Ministério Público à propositura de ação civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos, sociais e coletivos. Não subsiste, portanto, a alegação de falta de legitimidade do Parquet para a ação civil pública pertinente à tutela de direitos individuais homogêneos, ao argumento de que nem a Lei Maior, no aludido preceito, nem a Lei Complementar 75/93, teriam cogitado dessa categoria de direitos. 2. A ação civil pública presta-se à tutela não apenas de direitos individuais homogêneos concernentes às relações consumeristas, podendo o seu objeto abranger quaisquer outras espécies de interesses transindividuais (REsp 706.791/PE, 6.ª Turma, Rel.ª Min.ª MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe de 02/03/2009). 3. Restando caracterizado o relevante interesse social, os direitos individuais homogêneos podem ser objeto de tutela pelo Ministério Público mediante a ação civil pública. Precedentes do Pretório Excelso e da Corte Especial deste Tribunal. 4. No âmbito do direito previdenciário (um dos seguimentos da seguridade social), elevado pela Constituição Federal à categoria de direito fundamental do homem, é indiscutível a presença do relevante interesse social, viabilizando a legitimidade do Órgão Ministerial para figurar no polo ativo da ação civil pública, ainda que se trate de direito disponível (STF, AgRg no RE AgRg/RE 472.489/RS, 2.ª Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJe de 29/08/2008). [...] 7. Após nova reflexão sobre o tema em debate, deve ser restabelecida a jurisprudência desta Corte, no sentido de se reconhecer a legitimidade do Ministério Público para figurar no polo ativo de ação civil pública destinada à defesa de direitos de natureza previdenciária. 8. Recurso especial desprovido. (STJ - REsp: 1142630 PR 2009/0102844-1, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 07/12/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/02/2011) (BRASÍLIA, 2011: 03)

Vemos, com isso, que, malgrado as posições em contrário ainda existentes na doutrina brasileira, tanto o STJ como o STF se curvaram ao entendimento de que é cabível a ação civil pública proposta pelo Ministério Público com a finalidade de proteger interesses e direitos individuais homogêneos que envolvam matéria previdenciária.

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Sobre o autor
Sebastião Marcos Coelho

Servidor público do INSS, formado em Licenciatura em Matemática pela UNIUBE e Acadêmico de Direito na FADILESTE- Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Sebastião Marcos. A problemática da judicialização dos conflitos previdenciários e a ação civil pública como instrumento processual de efetivação da proteção constitucional previdenciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4024, 8 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30085. Acesso em: 5 nov. 2024.

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