3. O FEDERALISMO, O PODER CONSTITUINTE DERIVADO DECORRENTE E O PRINCÍPIO DA SIMETRIA
Desde a proclamação da República, o Brasil assumiu a forma de Estado federal – forma esta mantida desde então por todas as Constituições até aqui, sobretudo pela de 1988, que, como ensina o professor José Afonso da Silva (2014, p.104), resgatou o princípio federalista do mero federalismo nominal, através de um sistema de repartição de competências.
A federação é caracterizada pela união indissolúvel de coletividades regionais autônomas: os Estados Federados ou Estados-membros, os quais perdem parte das suas prerrogativas em benefício do Estado Federal (o todo, ente dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional), restando configurada a convivência de mais de um governo compartilhando o poder político sobre o mesmo território.
Historicamente, houve muita discussão sobre a natureza jurídica do Estado Federal, mas já é pacífico o entendimento de que ele é o único titular da soberania (capacidade de autodeterminação), enquanto que os Estados federados são apenas autônomos, ou seja, têm órgãos governamentais próprios e competências exclusivas, mas sua capacidade política é limitada pelo círculo de competências traçadas pela Constituição.
Como se vê, em homenagem ao princípio federativo – mais de uma esfera de poder dentro do mesmo território, sendo um único governo central e múltiplos governos locais, todos igualmente autônomos – aos Estados federados são garantidas as capacidades de auto-organização, autolegislação, autogoverno, e autoadministração (cf. artigos 18, 25, 26, 27 e 28, CF/88).
Assim, os membros da Federação têm o poder-dever de elaborar suas Constituições estaduais, pelas quais serão organizados (art. 25, caput, CRFB), fazendo uso do Poder Constituinte Decorrente – na definição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “aquele que, decorrendo do originário, não se destina a rever sua obra, mas a institucionalizar coletividades, com caráter de estados, que a Constituição preveja” (FERREIRA FILHO apud SILVA, 2014, p.616).
De fato, a doutrina identifica diversos tipos de expressão do Poder Constituinte. É conhecida a definição de Poder Constituinte Originário como a força política capaz de estabelecer uma nova ordem constitucional, sendo, portanto, inicial ou inaugural (encontra-se na própria origem do ordenamento jurídico); ilimitado ou autônomo (não se submete ao direito anterior) e incondicionado (seu exercício não encontra restrições formais ou procedimentais).
Por outro lado, há o Poder Constituinte Derivado, que, por seu turno, subdivide-se em reformador (poder de emendar, modificando as normas constitucionais), revisor (estabelecido no art. 3º do ADCT), e decorrente, que é justamente aquele que os Estados-membros possuem e que lhes assegura capacidade política para redigir suas próprias Constituições.
Contudo, diferentemente do Poder Constituinte Originário, o Poder Constituinte Derivado Decorrente é limitado, subordinado e condicionado às disposições da Lei Maior, ou seja, os Estados podem estabelecer suas próprias normas, mas devem obediência à Constituição Federal, sua fonte de legitimidade, uma vez que têm autonomia, mas não soberania:
Em primeiro lugar, é um poder derivado. Sua força resulta do Poder Constituinte Originário (...) Em segundo lugar, como consequência da derivação, esse Poder Constituinte dos Estados Federados é um poder subordinado à obra do Poder Constituinte Originário. Deve respeitar, portanto, a Constituição Federal (...) Em terceiro lugar, o Poder Constituinte dos Estados Federados é um poder condicionado. Está sujeito às formas ou condições postas pelo originário (FERREIRA FILHO, 2007, p.144)
Com efeito, o caput do já citado artigo 25 da Carta Magna afirma que: “Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. Também a Constituição do Piauí já no seu artigo 1º reconhece: “O Estado do Piauí integra, com autonomia político–administrativa, a República Federativa do Brasil e rege–se por esta Constituição e leis que adotar, observados os princípios da Constituição Federal” (grifos nossos). É o chamado princípio da simetria, segundo o qual o constituinte derivado estadual deve seguir as opções de organização e de relacionamento entre os três poderes já feitas pelo constituinte originário federal e consagradas na Constituição da República. Não é outro o ensinamento da doutrina mais abalizada:
O poder constituinte originário, ao adotar a opção federalista, confere aos Estados-membros o poder de auto-organização das unidades federadas. Estas, assim, exercem um poder constituinte, que não se iguala, entretanto, ao poder constituinte originário, já que é criatura deste e se acha sujeito a limitações de conteúdo e de forma (...) Não se trata de um poder soberano, no sentido de poder dotado de capacidade de autodeterminação plena. O poder constituinte dos Estados-membros é, isto sim, expressão da autonomia desses entes, estando submetido a limitações, impostas heteronomamente, ao conteúdo das deliberações e à forma como serão tomadas. O conflito entre a norma do poder constituinte do Estado-membro com alguma regra editada pelo poder constituinte originário resolve-se pela prevalência desta, em função da inconstitucionalidade daquela. (MENDES; BRANCO, 2014, p. 815).
De pronto, percebe-se que há normas constitucionais federais cuja reprodução nas respectivas Constituições Estaduais é obrigatória. É o que Léo Ferreira Leoncy (2007) denomina de “normas de reprodução”: normas que o poder constituinte decorrente deve se limitar a transpor para a Constituição do Estado-membro, sendo formal ou materialmente idênticas às que tratam da matéria federalmente. Isso porque, embora seja parcialmente originário (cria algumas normas locais cujos conteúdos não foram pré-determinados pela Carta Magna), o poder constituinte decorrente é também parcialmente derivado, haja vista o conjunto de limitações extrínsecas impostas pelo Constituinte Originário (HORTA apud LEONCY, 2007, p. 12).
Nesse mesmo sentido, a jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal:
O poder constituinte outorgado aos Estados-Membros sofre as limitações jurídicas impostas pela Constituição da República. Os Estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem (CF, art.25), submetendo-se, no entanto, quanto ao exercício dessa prerrogativa institucional (essencialmente limitada em sua extensão), aos condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal, pois é nessa que reside o núcleo da emanação (e de restrição) que informa e dá substância ao poder constituinte decorrente que a Lei Fundamental da República confere a essas unidades regionais da Federação. (ADI 507, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-2-96, DJ de 8-8-03).[1]
Assim, não é lícito ao Piauí (ou a qualquer outro Estado-membro) deixar de reproduzir tal norma de observância obrigatória, que pode ser entendida como a materialização de um limite imposto pela Constituição Federal ao exercício da autonomia estadual, até mesmo porque a própria existência dessa autonomia só é garantida porque prevista na Lei Maior.
Da mesma forma, é defeso modificar uma norma constitucional criada pelo poder central e de reprodução obrigatória nos ordenamentos jurídicos locais – salvo para adequá-la àquele contexto (verbi gratia, adaptando o que a Constituição Federal preconiza na organização dos Ministérios para a organização das Secretarias).
É fácil perceber, portanto, que a Constituição Estadual do Piauí não pode passar a vigorar com uma fórmula que institui um limite numérico à livre disposição sobre a criação das Secretarias de Estado enquanto que a Constituição Federal não estabelece limite igual, nem ao menos minimamente semelhante, quanto aos Ministérios, sob pena de ferir de morte o princípio da simetria.
A emenda constitucional proposta altera substancialmente o sentido da norma constitucional e a opção político-legislativa do Constituinte Originário de deixar a cargo do Chefe do Executivo a estruturação do seu auxílio direto na direção superior da Administração. De fato, a assimetria será evidente se, por um lado, o art. 88 da CF afirmar que “A lei disporá sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública.” e, por outro, o artigo 108 da Constituição Piauiense passe a dizer, como sugere o deputado, que “a lei disporá sobre a criação, estruturação, atribuições e extinção de Secretarias de Estado, que não poderão exceder a quinze” (grifou-se).
4. RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO
Conforme já brevemente discutido neste trabalho, o princípio constitucional da tripartição dos poderes não preconiza que tais poderes sejam absolutamente incomunicáveis, mas sim “independentes e harmônicos entre si” (art. 2º, CRFB/88). Dessa forma, tal independência não é afrontada por interferências legítimas de um poder sobre o outro – assim presumidas aquelas já previstas expressamente no texto da Constituição Federal.
São expressões dessas interferências legítimas as funções atípicas exercidas subsidiariamente por cada um dos poderes ao lado de suas funções típicas (estas últimas exercidas predominantemente, por óbvio). Destarte, desde que em situações autorizadas, pode o Poder Legislativo julgar e administrar; da mesma forma, em alguns casos o Poder Judiciário poderá também administrar e legislar; por fim, o Poder Executivo exerce funções atípicas quando julga (decidindo processos administrativos disciplinares, por exemplo) e quando legisla (editando atos normativos como decretos regulamentares, ou fazendo uso de iniciativa legiferante conferida pela Constituição).
É interessante notar que, às vezes, é até mesmo inviável que um Poder cumpra da forma devida sua função típica a menos que faça uso excepcionalmente da função típica de um dos outros dois poderes:
Importa deixar bem claro que o que caracteriza a independência entre os órgãos do Poder Político não é a exclusividade no exercício das funções que lhes são atribuídas, mas, sim, a predominância no seu desempenho (...) Ao lado dessas funções predominantes, denominadas de funções “típicas”, há outras, chamadas de funções “atípicas”, que são realizadas, não prioritariamente, mas sim subsidiariamente, por aqueles poderes como meios garantidores de sua própria autonomia e independência (...) Demais disso, há casos em que, para o integral desempenho de suas próprias funções típicas, necessite um Poder valer-se, em caráter excepcional e provisório, da função típica de outro Poder. (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 430).
Nasce daí a chamada Reserva de Administração, gênero do qual são espécies a reserva de administração em sentido estrito e a reserva de regulamento. Aqui nos interessa, sobretudo, a primeira, definida pelo mestre José Joaquim Gomes Canotilho como “um núcleo funcional de administração ‘resistente’ à lei, ou seja, um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento” (CANOTILHO, 2003, p. 739).
O jurisconsulto português especifica como “reserva do poder de organização” aquela que destina ao Governo a competência exclusiva para legislar sobre sua própria organização e funcionamento, aí compreendidas “a criação, modificação e extinção das estruturas subjectivas e orgânicas da administração” (CANOTILHO, 2003, p. 741), conforme apregoa a Constituição da República Portuguesa, art.198º/2.
A reserva de administração protege, portanto, o Poder Executivo e sua atuação baseada no mérito administrativo contra interferências indevidas dos demais poderes, em especial das ingerências ilegítimas do Legislativo. Corolário de tal instituto é a previsão no texto constitucional de matérias cuja iniciativa para o processo legislativo é confiada exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo. Isso porque, a despeito de se tratar de função legiferante, reconhece-se que sobre determinados temas pesam fortes interesses administrativos, os quais não podem ser suplantados por deputados e/ou senadores. É o que ensina Paulo Henrique Macera:
Por meio dessa reserva, é defeso ao Poder Legislativo (ou quem exerça atipicamente a função legislativa) invadir o campo da execução de lei, próprio da Administração Pública. Em outras palavras, não é possível, a pretexto de se exercer a função legislativa, a invasão do espaço da função administrativa, seja pela utilização desnecessária e abusiva de leis de efeito concreto ou leis de caráter específico (afastando-se do caráter geral e abstrato dos atos legislativos), seja pela regulamentação exacerbadamente minuciosa nos campos em que se requer maior margem de atuação da Administração – por atos abstratos ou mesmo concretos. (MACERA, 2014, p. 343-344).
Mais uma vez, verifica-se que a PEC nº 03/2015 é inadmissível, pois usurpa função que pertence ao núcleo duro da função administrativa. Malgrado a “experiência e conhecimento” a justificar o enxugamento da máquina estatal, cabe tão-somente ao Governador fazer o juízo de mérito administrativo, verificando se há conveniência e oportunidade para a criação ou extinção de Secretarias de Estado e se quinze (ou vinte) delas são suficientes ou insuficientes às necessidades e interesses do estado e da população piauiense.
Na verdade, o que o deputado pretende é administrar sob pretexto de legislar, o que é absolutamente rechaçado pelo ordenamento jurídico pátrio, pois traduz grave vício de iniciativa, conforme já assinalado pelo STF no recente julgamento sobre a EC nº 24/02 do Estado de Alagoas:
A disciplina normativa pertinente ao processo de criação, estruturação e definição das atribuições dos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública estadual, ainda que por meio de emenda constitucional, revela matéria que se insere, por sua natureza, entre as de iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo local, pelo que disposto no art. 61, § 1º, inciso II, alínea “e”, da Constituição Federal. Precedentes. (...) A EC nº 24/02 do Estado de Alagoas incide também em afronta ao princípio da separação dos Poderes cria modelo de contrapeso que não guarda similitude com os parâmetros da Constituição Federal. Resulta, portanto, em interferência ilegítima de um Poder sobre o outro, caracterizando manifesta intromissão na função confiada ao chefe do Poder Executivo de exercer a direção superior e dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Pública. (ADI N. 2.654 – AL, Rel. Min. Dias Toffoli).
Consta na justificativa da proposta a alegação de que ela preserva o respeito às prerrogativas do Poder Executivo, pois “visa só estabelecer um limite”, ficando a estruturação das pastas, bem como a iniciativa para a sua criação e extinção ainda a cargo do Governador do Estado. Contudo, este argumento é insustentável. Ora, desafia a lógica imaginar como, com um limite numérico pré-estabelecido – número este, diga-se de passagem, que parece ter sido escolhido quase que cabalisticamente, uma vez que não se apoia em nenhum estudo ou diploma legal – o Executivo continuaria dispondo de liberdade para estruturar a administração, exercendo a direção superior, nos termos nos termos do artigo 84, inciso II da Carta Magna.
Por oportuno, ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou quanto ao significado da expressão “direção superior” no julgamento da ADI nº 179/RS[2]. O voto esclarecedor do Ministro Dias Toffoli informa que exercer a direção superior da administração é “definir os rumos, as metas e o modo de consecução dos objetivos impostos à Administração, na busca última de satisfação do interesse público”. Em âmbito federal, tal tarefa incumbe ao Presidente da República e seus Ministros, da mesma forma que, guardada a simetria, localmente ela compete ao Governador, auxiliado pelos Secretários de Estado.
Destarte, deve o Chefe do Poder Executivo dispor de ampla margem de discricionariedade para avaliar a conjuntura e decidir quais assuntos necessitam de departamentos executivos próprios naquela ocasião. Não é difícil perceber que, assim como as preocupações públicas mudam de tempos em tempos, o número de ministérios e secretarias também tende a variar, acompanhando as discussões políticas, sociais e econômicas do momento histórico que se vive.
Fixar o número de órgãos do poder executivo é engessar a administração, determinando-lhe um plano de governo a ser cumprido, coagindo o administrador a preterir áreas antes consideradas prioritárias, por meio da fusão de algumas secretarias e até mesmo a extinção de outras. Despiciendo lembrar ainda que as contribuições trazidas à tona futuramente pelo debate público, e que poderiam ensejar a criação de novos departamentos poderão ser simplesmente ignoradas depois que a quantidade estabelecida for alcançada. Enfim, corre-se o risco de embaraçar a busca pelos objetivos fundamentais da República sem nenhuma legitimidade para isso, posto que contraria manifestamente os contornos delineados pela Constituição Federal.
Refoge à expertise jurídica analisar a tônica econômica da PEC em exame. Contudo, o bom senso impõe o dever de alertar para o fato de que a redução do número de secretarias não implica necessariamente em contenção de despesas. Convém notar que, da forma como se apresenta a referida proposta, nada impede que no futuro uma secretaria passe a acumular os funcionários e os recursos de várias delas – na verdade, é o que naturalmente acontecerá. Assim, os justos anseios pela extinção do que o senso comum chama de “cabides de emprego” provavelmente não serão atendidos.
Ademais, há outras formas de controlar os gastos governamentais previstas pela própria Constituição Federal. É da competência do Poder Legislativo realizar, mediante controle externo, a “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas” (art. 70, CF). Nos estados, cabe justamente às Assembleias Legislativas auxiliadas pelos Tribunais de Contas – como os legítimos representantes do povo que são – fiscalizar a administração financeira e orçamentária, evitando assim as “despesas desnecessárias” que a PEC aponta como escopo combater (cf. arts. 85 e seguintes da Constituição do Estado do Piauí).