4 ...... REGIME JURÍDICO da bioinvasão provocada pela água de lastro das embarcações
O fenômeno normativo acompanha a humanidade desde a antiguidade, porquanto, onde há sociedade, há direito; não sendo diferente no Direito Marítimo, que teve sua origem notadamente consuetudinária, inobstante o movimento de codificação, sobretudo a partir do positivismo no século XIX.
Tal movimento alcançou o Direito Ambiental, reconhecido que foi como direito fundamental difuso de terceira dimensão, na segunda metade do século XX, bem no âmbito do pós-positivismo jurídico (BONIFÁCIO, 2008), compreendendo, por conseguinte, o Direito Ambiental Marítimo.
Quanto às naturezas jurídicas do Direito Marítimo e do Direito Ambiental Marítimo, elas são consideradas mista e pública, respectivamente, de acordo com o ensinamento da professora Campos, ao asseverar:
O Direito Marítimo, por ser de natureza jurídica mista e ter fontes nacionais e internacionais, públicas e privadas, finda por asseverar a desenvoltura de diversas relações, e se enlaça com outros ramos do direito, marcado, portanto pela interdisciplinaridade. Ou seja, toda a atividade marítima abrange e desenvolve relações comerciais e internacionais, envolvendo contratos marítimos, direitos trabalhistas, relações de consumo, sobreposição de normas nacionais e internacionais, direito internacional, normas ambientais e outras.
No Direito Marítimo [...], percebe-se nitidamente o viés público, com destaque à seara ambiental, através da identificação do Direito Ambiental Marítimo. (CAMPOS, I. Z. A., 2013, p. 63).
Faz-se mister averiguar, neste ponto, a natureza jurídica da embarcação, a partir dos seus conceitos levantados nos subitens 2.1 e 2.2 deste trabalho. Assim, apesar de ser coisa móvel, trata-se de rex conexa, é dizer, um todo composto de diversos acessórios, sem os quais, o navio perde a sua característica (GIBERTONI, 2014). Ainda a enfatizar o navio, prossegue a autora, esclarecendo que:
[...] o navio é coisa móvel sui generis, sujeitando-se ao regime dos bens imóveis somente por expressa determinação legal, como no caso do art. 478 do Código Comercial Brasileiro e da Lei nº 7.652 de 1988 que dispõe sobre o registro da propriedade marítima. No que tange às embarcações não consideradas navios, temos que são simplesmente coisas móveis, sem qualquer peculiaridade, muito embora o art. 4º da Lei nº 7.652 de 1988 dispõe (sic.) que a transmissão da propriedade de uma embarcação só se consolida pelo registro no Tribunal Marítimo[30] ou, para aquelas não sujeitas a essa exigência, pela inscrição na Capitania dos Portos ou órgão subordinado. (GIBERTONI, 2014, p. 64).
Destarte, o problema da bioinvasão por meio da água de lastro das embarcações enquadra-se no âmbito do Direito Ambiental Marítimo e é nesta perspectiva que se passam a visitar e analisar os textos legais atinentes ao assunto, sem deixar de considerar, para este ensejo, a contribuição do Direito Internacional.
4.1 ... ÂMBITO INTERNACIONAL
Pontifica-se inicialmente que, mediante a corrente dualista do Direito Internacional, criada por Verdross (1914), e ratificada por Triepel (1923), os tratados e convenções internacionais não têm vigência automática no ordenamento jurídico interno das nações, após sua assinatura pelo Chefe de Estado e ratificação total ou parcial pelo Parlamento, pois ainda seria necessária a transformação legislativa do instrumento no ordenamento jurídico interno por meio de lei, tendo em vista o fato de os dualistas considerarem o Direito interno de cada Estado e o internacional dois sistemas jurídicos distintos e independentes (apud MAZZUOLI, 2011). Já a corrente monista, defendida por Kelsen, em suas várias graduações, considera, em regra, que “o Direito Internacional e o Direito interno são dois ramos do Direito dentro de um só sistema jurídico”, independentemente de qualquer processo de transformação, após o tratado ser assinado e ratificado pelo Estado (MAZZUOLI, 2011, p. 81).
Não obstante divergências doutrinárias, conforme explicita Mazzuoli (2011), que se posiciona pela monista, a corrente dualista foi a aceita pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de forma moderada, na decisão proferida na ADI nº 1.480/DF, eis que, além das referidas assinatura e ratificação, faz-se necessária apenas a promulgação do texto internacional por meio de decreto presidencial e consequente publicação.
Com efeito, em regra, o tratado internalizado possui hierarquia de lei ordinária, em que as antinomias com o direito interno são solvidas pela regra geral lex posterior derrogat legi priori. Entretanto, se tratar de matéria concernente a direitos humanos e for aprovado em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos membros, terá hierarquia constitucional, segundo prescreve o art. 5º, § 3º[31], da Constituição Federal (CF) (BRASIL, 1988). Já os tratados sobre direitos humanos aprovados sem o quórum qualificado, têm prevalência sobre a lei ordinária, conforme entendimento do STF, por meio do Recurso Extraordinário (RE) nº 349.703/RS[32] e pela interpretação, à luz da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, do art. 5º, § 2º, da CF, consubstanciado na súmula vinculante 25[33]. Assim, lei posterior não pode derrogar estes tratados, se com eles houver conflito normativo (BRANCO; MENDES, 2014).
É nesse contexto que, em matéria de Direito Ambiental, vários tratados e convenções internacionais foram aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e incorporados ao ordenamento interno com hierarquia de lei ordinária, a despeito de a Declaração de Estocolmo de 1972[34] elevar este direito à categoria de Direito Ambiental Humano e de parte da doutrina nacional considerá-lo direito humano fundamental de terceira dimensão, entendendo, a exemplo de Antunes (2010, p. 17), que, “no regime constitucional brasileiro, o artigo 225 da CF impõe a conclusão de que o direito ao ambiente [...] é um dos direitos humanos fundamentais”. Com base nesta interpretação, estariam estes tratados agasalhados pelo caráter da supralegalidade, após o novo entendimento do STF. Este é o entendimento que se defende neste trabalho.
Ressalte-se que esses documentos internacionais decorreram das postulações emanadas da referida Declaração de Estocolmo, as quais, embora sem a força vinculante dos tratados e convenções, tornaram-se fundamentais para a consolidação das normas do Direito Internacional do Meio Ambiente, qual o Princípio 21[35], a preconizar que nenhum Estado deveria utilizar seu território para causar danos ambientais em outro Estado ou em área internacional. Este mandamento foi confirmado posteriormente no Princípio 2º da Declaração do Rio de 1992.
As codificações que se seguem estão em linha com o pensamento do jurista francês Alexandre Kiss, a quem coube iniciar a estruturação, ainda na década de 1960, do mencionado Direito Internacional do Meio Ambiente, como reflexo do entendimento de que apenas por meio de atitudes que envolvessem os diversos Estados se alcançariam os objetivos de convivência e segurança com o meio ambiente (KISS apud VIANNA; CORADI, 2006). Este debate e a consequente positivação internacional repercutiram na criação e implementação de diversas normas nacionais acerca da tutela ambiental. Algumas delas, aplicáveis à água de lastro, serão examinadas no próximo subitem.
Desse modo, no que concerne ao Direito Ambiental Marítimo, em específico ao tema em estudo, a primeira preocupação institucional sobre os despejos da água de lastro foi demonstrada de forma indireta pela Convenção sobre Prevenção da Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e Outras Matérias de 1972, Convenção de Londres (LC-72)[36], ao visar a prevenir e a controlar a poluição marinha por alijamento[37] de resíduos industriais, químicos e outras substâncias lesivas à saúde humana, aos recursos biológicos e à vida marinha, capazes de danificar as condições naturais e interferir nas aplicações legítimas do mar (GIBERTONI, 2014).
A preocupação com os despejos da água de lastro também foi indiretamente demonstrada com a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (MARPOL 73/78)[38], ao estabelecer disposições acerca da prevenção da poluição do mar por óleo e outras substâncias nocivas. Apesar de não ter explicitado estas substâncias, considera-se entre elas a água de lastro que contenha organismos exóticos e/ou patogênicos, mormente quando se interpretam sistematicamente tais disposições de acordo com o contexto da Regra 3, Anexo II, da Convenção (BRASIL, 1998a). A partir deste Documento, os Estados Costeiros, assinala Kesselring (2007, p. 21), “poderão caracterizar a descarga irregular da água de lastro nas suas legislações domésticas como sendo um tipo de poluição marinha causada por navios.”
A Convenção Internacional das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 (UNCLOS)[39], Convenção de Montego Bay, em seu art. 196, prescreve mais diretamente a obrigação do Estado Costeiro em prevenir, reduzir e controlar a poluição marinha resultante da utilização de tecnologias ou a introdução de espécies estranhas ou novas em uma parte particular do ambiente marinho que possam provocar alterações importantes e prejudiciais. Também preconiza, no art. 194, que o Estado Costeiro deve tomar as medidas cabíveis para preservar o meio ambiente marítimo, de forma a prevenir transferências de novas espécies para ecossistemas diferentes, não causar prejuízos por poluição a outros Estados e obrigar os navios a cumprirem tais determinações (BRASIL, 1995). A própria Convenção, no seu art. 1º, 4, oferece a definição de poluição marinha como a introdução feita pelo homem, de modo direto ou indireto,
de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entrave às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização, e deterioração dos locais de recreio. (BRASIL, 1995, p. da internet).
O descarte de água de lastro começou a ser tratado de maneira mais incisiva em 1991, pela MEPC, quando, por meio da MEPC.50 (31), adotou como diretriz internacional o gerenciamento da água de lastro pelos navios, no intuito de prevenir a introdução de organismos aquáticos nocivos e agentes patogênicos. No entanto, tal instrumento ainda tinha caráter de recomendação, o que redundava em cumprimento voluntário pelos Estados.
A Declaração do Rio (Rio-92) e a Agenda 21 global, documentos elaborados durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (UNCED-92), nortearam a IMO, com fundamento no princípio 15 (princípio da precaução, analisado no subitem 4.3), para a elaboração da Resolução A.774 (18), em 1993, como diretriz que orientava os comandantes dos navios a executarem a troca da água de lastro em alto-mar.
Já a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) de 1992, também produzida durante a UNCED-92, estimula em seu bojo que as partes devam elaborar e manter vigente legislação apropriada, de maneira a impedir, controlar ou erradicar espécies alienígenas que ameacem os ecossistemas, habitats ou espécies nativas, ratificando “a responsabilidade dos Estados pela conservação de sua biodiversidade e pela utilização sustentável de seus recursos biológicos.” (AZEVEDO; LAVRATTI; MOREIRA, 2005 apud CAMACHO, 2007, p. 201).
Em 1997, a MEPC aprimorou a diretriz A.774 (18), ao adotar, em caráter voluntário, a Resolução A.868 (20), “Diretrizes para o Controle e Gerenciamento da Água de Lastro dos Navios, para Minimizar a Transferência de Organismos Aquáticos Nocivos e Agentes Patogênicos”, na intenção de mitigar ao máximo o problema da bioinvasão pela água de lastro com a colaboração dos Estados-membros e da indústria naval (IMO, 1997, p. i). O documento oferece procedimentos para os navios e para os Estados do Porto.
Para os navios, em sede de gerenciamento de água de lastro, recomenda: realização da troca da agua de lastro em águas profundas, recolocando água considerada limpa de mar aberto; liberação mínima de água de lastro; descarga de água de lastro em instalações de recebimento e tratamento adequadas; inclusão de tratamentos novos e em desenvolvimento (IMO, 1997).
Para os Estados do Porto, nas palavras de Kesselring, pode-se verificar que:
a necessidade de disponibilização de instalações para recebimento e tratamento da água de lastro, medidas de precaução como a recomendação dos Estados do Porto de informar aos agentes locais e/ou aos navios, as áreas e as situações em que o recebimento e a descarga de agua de lastro devem ser restritos. Outra importante determinação está relacionada ao incentivo dos Estados do Porto a adotarem leis nacionais, sendo que quaisquer restrições impostas à descarga de água de lastro devem ser informadas. (2007, p. 16).
O grande marco para aperfeiçoar o gerenciamento da água de lastro ocorreu, porém, com a adoção pela IMO, em 2004, da Convenção Internacional para o Controle e Gestão de Água de Lastro e Sedimentos dos Navios (BWM 2004)[40], assinada pelo Brasil em janeiro de 2005. Esta Convenção entrará em vigor doze meses após ratificação por pelo menos trinta Estados, representando trinta e cinco por cento da arqueação bruta da frota mercante mundial. Atualmente, quarenta países assinaram a Convenção, representando trinta inteiros e vinte e cinco centésimos por cento (30,25%) da referida arqueação[41].
Para celebrarem a Convenção, as partes consideraram, dentre outros motivos, o preconizado no art. 196 da UNCLOS, concernente à prevenção da poluição marinha, os objetivos da CDB e a relevância dada pela IMO, por meio das recomendações da Resolução A.868 (20), à descarga descontrolada de água de lastro e sedimentos por navios, levando à transferência de organismos aquáticos nocivos e agentes patogênicos, com perdas e danos ao meio ambiente aquático, à saúde pública e às propriedades.
A BWM 2004 tem o objetivo de prevenir, dirimir e eliminar a introdução de organismos nocivos e agentes patogênicos pelo controle e gestão da água de lastro[42] e dos sedimentos nela contidos. Além disso, cada Parte deverá envidar esforços para cooperar com as demais no combate às ameaças e riscos a ecossistemas e biodiversidades marinhos sensíveis, vulneráveis ou ameaçados em áreas além dos limites da jurisdição nacional relativamente ao gerenciamento da água de lastro (IMO, 2004), restando claras as regências dos princípios da prevenção, da precaução e da cooperação internacional, dentre outros, a serem analisados no subitem 4.3 deste trabalho.
Cada Estado Parte terá o compromisso de inspecionar, vistoriar e certificar os navios que transportem água de lastro, analisando amostras desta água, sem atrasar, porém, a programação comercial indevidamente, segundo o art. 9º, 1, c, da referida Convenção (IMO, 2004). Aqui, critica-se a concessão de tal exceção, por pressão dos interesses econômicos, pois dificulta o alcance dos objetivos do Documento, resultando em mitigação dos princípios dele emanados, sobretudo os da prevenção e da precaução.
Mediante procedimentos técnicos atuais ou advindos de pesquisas científicas, os Estados e as embarcações deverão implementar o gerenciamento da água de lastro por meio de um plano específico e individualizado, em conformidade com a Regra B-1 do Anexo da Convenção. No que tange às trocas, elas deverão ocorrer a pelo menos 200 milhas náuticas[43], quando possível, ou impreterivelmente a 50 milhas da costa e com no mínimo 200 metros de profundidade, conforme sua Regra B-4, 1, 1.1 e 1.2[44] do Anexo. O bombeamento de três vezes o volume de cada tanque de água de lastro deverá ser considerado suficiente para uma eficiência mínima de 95 por cento de troca volumétrica da água de lastro, de acordo com a Regra D-1, 1 e 2[45] (IMO, 2004).
No que se refere à gestão da água de lastro, a Convenção prevê critérios mínimos a serem cumpridos a partir de 2009, a depender do ano de construção da embarcação e da sua capacidade de água de lastro, como se depreende da Regra B-3[46], combinada com as Regras D-1 e D-2[47] do seu Anexo (IMO, 2004).
Deve-se frisar que tais medidas minimizam o risco de bioinvasão, pois os organismos de ambientes costeiros e fluviais não sobrevivem em alto-mar, onde a salinidade é maior, e vice-versa[48]. Conforme ensina Zanella:
Em função do grande volume de água que é despejado nos estuários pelos rios que deságuam no mar, a salinidade próxima à linha de costa é menor que em alto-mar. Os embriões das espécies que vivem além das 200 milhas não sobrevivem quando são introduzidas em águas com a salinidade mais baixa, como nas baias portuárias. (2010, p. 78).
Enfatiza-se ainda que o MEPC, por meio de Resoluções, já disponibilizou as seguintes diretrizes preparativas à implementação da Convenção:
1. Diretriz para instalações de recebimento de sedimentos.
2. Diretriz sobre amostragem de água de lastro.
3. Diretriz para conformidade equivalente de gestão de água de lastro.
4. Diretriz sobre gestão de água de lastro e desenvolvimento de plano correspondente.
5. Diretriz para instalações de recebimento de água de lastro.
6. Diretriz para a troca de água de lastro.
7. Diretriz sobre análise de risco/isenção de gestão de água de lastro.
8. Diretriz sobre aprovação dos sistemas de gestão de água de lastro.
9. Procedimentos para aprovação de sistemas de gestão de água de lastro que façam uso de substâncias ativas.
10. Diretriz para aprovação de protótipos das tecnologias de gestão de água de lastro.
11. Diretriz para projeto e construção de padrões de troca de água de lastro.
12. Diretriz para controle dos sedimentos dos navios.
13. Diretriz sobre medidas adicionais e situações de emergência.
14. Diretriz para designação de áreas para troca de água de lastro. (IBRAIN, 2012, p. 41-42).
Dessa forma, todos os navios, mesmo os que foram construídos antes de 2009, deverão possuir, até o final de 2016, sistema de gerenciamento de água de lastro, seja em processos de tratamento individuais ou combinados, apresentando o desempenho mínimo requerido na Regra D-2 supracitada, antes de despejar a água de lastro nos ambientes aquáticos. Ademais, enquanto a Convenção não entrar em vigor, as suas disposições tornam-se recomendações aos Estados Partes em favor da proteção do meio ambiente; porém, todas elas serão exigidas a partir da sua vigência. Ressalta-se que as legislações nacionais podem implementá-las, a exemplo do Brasil, que o fez parcialmente com a edição da NORMAM 20, analisada no próximo subitem.
4.2 ... ÂMBITO NACIONAL
São apresentados os principais instrumentos legais em nível nacional a tratar da proteção ambiental, os quais, interpretados sistemática e teleologicamente e conforme o art. 225 da CF, aplicam-se à bioinvasão via água de lastro das embarcações.
A preocupação com a preservação ambiental passou a ser mais intensa a partir da década de 1970, como reflexo dos princípios da Conferência de Estocolmo de 1972. Neste sentido, foi instituída a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), Lei Federal nº 6.938 de 1981, que, recepcionada pela Constituição de 1988, tem como principal objetivo a preservação e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, assegurando condições ao desenvolvimento socioeconômico e à proteção da dignidade da vida humana. No que se aplica à água de lastro, esta Lei define poluição como a degradação ambiental proveniente de atividades que afetem a biota desfavoravelmente e lancem matérias ou energia em divergência com os padrões ambientais, conforme o art. 3º, II, III, c e e[49] (BRASIL, 1981). Além disso, introduz no ordenamento jurídico nacional o princípio do poluidor-pagador, analisado no próximo subitem, e positiva a responsabilidade civil objetiva em matéria de Direito Ambiental.
Com conteúdo mais específico, a Lei Federal nº 9.433 de 1997, Lei das Águas, regulamentando o art. 21, XIX, da CF, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), com ênfase ao gerenciamento dos corpos de água doce. Esta Lei “reorganiza o planejamento e a gestão sob a ótica sistêmica, apropriada ao espírito da UNCED-92, berço da Agenda 21 [...] que definiu a promoção do meio ambiente e a proteção dos recursos hídricos como um dos seus principais parâmetros de atuação.” (GUIMARÃES, XAVIER, 2010, p. 79). Tem como fundamentos os seguintes, dentre outros: a água é bem de domínio público; a água é recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas (BRASIL, 1997b). Assim, os mananciais navegáveis de água doce, sujeitos à contaminação devida à bioinvasão via água de lastro das embarcações, subsomem-se, extensivamente, a alguns preceitos deste diploma. Isto pode ser denotado nos seus objetivos, que incluem: a garantia à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões adequados aos respectivos usos; a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, inclusive o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável (BRASIL, 1997b).
A Lei Federal nº 9.537 de 1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA), estabelece em seu art. 3º que cabe à Autoridade Marítima (AM) o propósito de prevenir a poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio (BRASIL, 1997c). Assim, outorgou à AM, por meio do art. 4º, I e VII[50], a competência para elaboração das Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) com o propósito de gerir a água de lastro. Desta forma, estes dispositivos se constituem normas em branco, em que o legislador disse menos que pretendia, havendo necessidade de outra (s) que lhes complemente (m) o sentido, desde que o Executivo não extrapole o poder de regulamentar. Esta forma de delegação legislativa se justifica, tanto pela especificidade de seu conteúdo quanto pela necessidade de resposta rápida a atualizações por parte da AM, situações que restariam bastante prejudicadas se estivessem presas às tramitações do processo legislativo, em que pese as ressalvas feitas adiante, neste subitem, à NORMAM 20.
Já a Lei Federal nº 9.966 de 2000, Lei do Óleo, estabelece regras acerca da prevenção, controle e fiscalização da poluição causada por óleo ou substâncias nocivas ou perigosas nas AJB. Os organismos exóticos e/ou patogênicos que contaminam a água de lastro estão enquadrados dentre tais substâncias. Conforme aduz seu art. 5º, todo porto organizado, instalação portuária[51] e plataforma deverão dispor de meios adequados para receber e tratar os diversos tipos de resíduos e para combater a poluição (BRASIL, 2000a).
A NORMAM 08[52] de 2000 internaliza na legislação nacional as diretrizes emanadas da Resolução A.868 (20) da IMO. No seu item 0407, determina que os navios que descarregarem suas águas de lastro nas AJB deverão observar o que consta na NORMAM 20. Além disso, no seu Anexo 2-N, introduz o Formulário para Informações Relativas à Água Utilizada como Lastro (BRASIL, 2000b), o que é essencial à obtenção de dados para o desenvolvimento de pesquisas e programas de monitoramento relativos à poluição via água de lastro.
A NORMAM 20 de 2005 – revisada pela Portaria nº 24/DPC, de 27 de janeiro de 2014 – é atualmente o principal instrumento da legislação interna atinente ao gerenciamento da água de lastro das embarcações, possuindo autorização do art. 4º, VII, da LESTA e fundamento na CDB de 1992 e na BWM 2004. Neste sentido, leciona Camacho:
A marinha do Brasil (MB), em atenção às atribuições infraconstitucionais outorgadas por Leis específicas e, não obstante, em função de sua representação do Brasil junto à IMO, publicou a Norma da Autoridade Marítima (NORMAM-20), em julho de 2005, a fim de propiciar o efetivo gerenciamento da Água de Lastro nos Portos brasileiros, não somente para impedir o avanço do mexilhão dourado, mas também para prevenir as diversas modalidades de espécies exóticas invasoras, transportadas por lastro. (2007, p. 203).
O motivo de o legislador delegar ao Poder Executivo a regulamentação deste tema deve-se ao fato de sua especialidade e a rapidez com que tem de se adaptar às novas tecnologias, ressaltando-se a competência do Congresso Nacional de sustar os atos que excedam os limites da delegação legislativa, de acordo com o art. 49, V, da CF.
As principais prescrições da NORMAM 20 a serem cumpridas por todas as embarcações, nacionais ou estrangeiras, equipadas com tanques ou porões de água de lastro que entrarem nas AJB e utilizarem os portos e/ou terminais brasileiros, são a seguir relacionadas:
a) as embarcações deverão realizar a troca da água de lastro a, pelo menos, 200 milhas náuticas da costa e em águas com pelo menos 200 metros de profundidade, quando possível, ou impreterivelmente a 50 milhas da costa e com no mínimo 200 metros de profundidade;
b) a AM acata a troca da água de lastro pelos métodos sequencial, de fluxo contínuo e de diluição brasileiro, os quais serão tratados no capítulo 5, subitem 5.2. Nestes dois últimos métodos, o bombeio de três vezes o volume de cada tanque de lastro deverá ser considerado suficiente para que haja eficiência mínima de noventa e cinco por cento do volume da água de lastro;
c) as plataformas semissubmersíveis e flutuantes de produção ou de perfuração estão sujeitas à troca da água de lastro, quando de sua chegada ao Brasil, oriundas de porto estrangeiro ou de águas internacionais. Entretanto, estas unidades estão isentas dos procedimentos de troca, a partir do momento de sua instalação no local de operação e durante o período em que permanecer estacionária ou quando do seu deslocamento nas AJB;
d) o Formulário para Informações Relativas à Água Utilizada como Lastro (ANEXO A ou ANEXO B) e o Plano de Gerenciamento da Água de Lastro[53] são documentos obrigatórios que poderão ser objeto de inspeção pelos Agentes da Autoridade Marítima;
e) estarão dispensadas de efetuar a troca da água de lastro as embarcações que possuam um Sistema de Tratamento de Água de Lastro (BWMS) operacional, com o respectivo Certificado Internacional[54] válido, emitido pela Autoridade Competente de Bandeira, levando-se em conta as Diretrizes da IMO;
f) as embarcações que naveguem entre portos ou terminais fluviais (ANEXO C) de bacias hidrográficas distintas (ANEXO D), quando o trânsito se der por mar, deverão efetuar a troca da água de lastro[55], desde que não possuam a bordo BWMS operacional, com Certificado Internacional válido, considerando as bacias hidrográficas e os portos ou terminais fluviais nelas existentes; e
g) são estabelecidas, ainda, situações de exceção – tais quais os casos fortuitos, de força maior ou de emergência para resguardar a segurança da vida humana e/ou da embarcação – e de isenção[56] – que, mesmo assim, devem evitar ao máximo a contaminação do meio ambiente pelo deslastro. (BRASIL, 2014).
Nesse âmbito, verifica-se que são feitas algumas concessões, como a da alínea a acima, embutida no termo “quando possível”, bem como isenções, parte delas evitáveis: dispensa da necessidade de trocar a água de lastro pelos navios de guerras provenientes de águas estrangeiras; não exigência de troca às embarcações de recreio ou de apoio marítimo e portuário, em caso de navegação entre bacias hidrográficas diferentes. Além disso, não se menciona a possiblidade de transporte de pequenas embarcações por via terrestre de uma para outra bacia hidrográfica, caso das bacias do Paraná e Paraguai – contaminadas pelo mexilhão dourado – para afluentes das bacias do Amazonas e Araguaia-Tocantins. Tais mitigações não deveriam ser concedidas, dada natureza do bem jurídico a ser protegido. Estas condições não se coadunam com o que preconizam as PNMA e PNRH, apresentadas acima, sobretudo diante da possibilidade de contaminação das bacias hidrográficas, incluindo os mananciais de água doce destinados ao consumo e à indústria de alimentos.
Essas ressalvas colocam em xeque a legitimidade do Poder Executivo para editar a NORMAM 20, ainda mais quando antecipa parcialmente conteúdo da Convenção Internacional, BWM 2004, que será internalizada como lei ordinária ou em caráter supralegal, uma vez que se trata de Direito Ambiental – embora com viés Marítimo –, o que, segundo doutrinadores como Antunes (2010), constitui um direito humano fundamental difuso de terceira dimensão, posição com a qual se compartilha neste estudo.
A Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA, RDC nº 72, de 2009, atualizando as exigências da RDC nº 217 de 2001, revogada, no que se refere à água de lastro, requer que as embarcações, procedentes ou não do exterior, preencham o Formulário para Informações sobre a Água de Lastro. Prevê ainda a coleta de amostras de água de lastro, a fim de averiguar a presença de agentes nocivos e/ou patogênicos, bem como indicadores físicos e componentes químicos, a critério da autoridade sanitária (BRASIL, 2009a).
Observam-se, assim, a interdisciplinaridade e a abrangência com que o tema em tela é tratado em sede de gerenciamento, controle e fiscalização, ao se deparar com regulamentações da AM, dos órgãos de vigilância sanitária, bem como coordenações dos órgãos do meio ambiente e dos transportes aquaviários.
4.3 ... PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
Os princípios jurídicos constituem normas balizadoras que emprestam uma interpretação uníssona, equilibrada e coerente ao sistema jurídico considerado. Desta forma, devem-se analisar os princípios norteadores relacionados à bioinvasão do meio ambiente aquático provocada pela água de lastro utilizada nas embarcações.
O princípio do poluidor-pagador possui relevo constitucional, vez que há previsão implícita no art. 225, §§ 2º e 3º[57], da CF. Também está positivado no art. 14, § 1º[58], da PNMA, no art. 21 da Lei do Óleo e no Princípio 16 da UNCED-92. De acordo com estes diplomas, o princípio está consubstanciado na obrigação de o poluidor custear as medidas de prevenção e controle da poluição, bem como a restauração dos danos causados, cabendo indenização independentemente de se comprovar a culpa ou o dolo do agente poluidor, sem, contudo, ensejar distorções no comércio interno e internacional. Claro está que o princípio traz em seu bojo a responsabilidade civil objetiva do poluidor, tratada adiante no capítulo 6.
O princípio da prevenção encontra abrigo no art. 225, §1º, IV, da CF e no art. 4º, VII, da LESTA. Busca evitar o risco de uma atividade sabidamente danosa e seus efeitos nocivos ao meio ambiente, aplicando-se aos impactos ambientais já conhecidos e que se tenha uma história de informações sobre eles, quer dizer, atua no sentido de inibir ou prevenir o risco de dano em potencial de atividades sabidamente perigosas. No ensinamento de Cavalieri Filho (2014, p. 198), “fala-se em prevenção quando há um risco certo ou conhecido a se evitar.” Este princípio constitui um dos fundamentos de validade da BWM 2004 e da NORMAM 20, que preveem o gerenciamento da água de lastro antes da chegada do navio ao seu destino.
O princípio da precaução está previsto de forma implícita no caput do art. 225 da CF e expressa no Princípio 15[59] da UNCED-92 e no art. 1º da Lei nº 11.105 de 2005. É este princípio que incide quando não se tem certeza científica acerca dos danos que podem ser causados, aplicando-se o primado do in dubio pro natura. Assim, “na dúvida sobre a nocividade ou não de uma ação, elege-se o posicionamento de que há potencial perigo ao meio ambiente.” (BARBÉRIO, 2007, p. 346). A precaução pode ser considerada uma extensão do princípio da prevenção aplicada aos riscos incertos, eis que, de acordo com o ensinamento de Dallari e Ventura:
De uma maneira geral, o escopo da precaução é ultrapassar a prevenção. Não seria preciso que um dano se produzisse, ou se mostrasse iminente, para que um gesto visando a evitar a produção ou a repetição desse dano fosse legítimo. Invertendo essa lógica, a precaução baseia-se na experiência em matéria técnica e científica: as vantagens que surgem a curto prazo são, com frequência, seguidas de desvantagens a médio e longo prazos. Logo, é preciso dotar-se dos meios de prever o surgimento de eventuais danos, antes mesmo de ter certeza da existência de um risco. (apud OLIVEIRA, 2009, p. 243).
Com efeito, ao fenômeno da bioinvasão provocada pela água de lastro aplicam-se os princípios da prevenção e da precaução. O primeiro, porque o que se quer evitar são os danos provocados pela invasão de muitas espécies sobre a qual atualmente há certeza científica, conforme detalhado alhures; o segundo, pois também se quer impedir os danos produzidos pela invasão ainda não comprovada de outras espécies. Daí porque os dois princípios permeiam toda a legislação pertinente.
O julgado do Agravo de Instrumento nº 2006.01.00.019291-9/PA[60] do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) resume o entendimento da jurisprudência nacional concernente aos princípios acima referidos.
O princípio da cooperação internacional, preconizado pelo art. 4º, IX, da CF e pelo art. 5º[61] da CDB, está ligado à interdependência existente entre os ecossistemas, os quais não estão adstritos aos limites territoriais fixados pelas fronteiras artificiais criadas pelos Estados, restando evidenciada a relação de dependência entre estes. Os efeitos da ausência desta relação ficam mais evidenciados quando se verifica o caso do Paraguai, que, mesmo sem saída para o mar, foi severamente afetado pela infestação do mexilhão dourado em suas bacias fluviais pela falta de fiscalização argentina no seu porto, localizado na Bacia do Prata, conforme aduz Zanella (2010). Nesta mesma situação, se insere a contaminação do Pantanal Mato-grossense por esta espécie, como já aludido no Capítulo 3.
O princípio do desenvolvimento sustentável busca a harmonia entre o desenvolvimento econômico-social e o meio ambiente, visando à qualidade de vida atual e das futuras gerações, possuindo relevância constitucional dada pelo art. 170, VI[62], combinado com o art. 225, caput, da CF. Também está previsto no Princípio 3º[63] da UNCED-92. Este princípio parte do pressuposto de que o desenvolvimento e a proteção do meio ambiente se constituem direitos fundamentais de terceira dimensão, os quais merecem ser sopesados pelo intérprete em situações de colisão (GUIMARÃES, 2008), tarefa que o próprio constituinte facilitou nas disposições do referido art. 170.
Já o principio da informação está vinculado aos princípios constitucionais da publicidade e da moralidade, art. 37, caput, da CF, consistindo na obrigação de os órgãos públicos divulgarem todos os dados existentes sobre a bioinvasão via água de lastro das embarcações. Impende ressaltar ainda que:
Nos termos da legislação constitucional e infraconstitucional brasileira, a informação ambiental comporta duas faces. De um lado, o direito de todos terem acesso às informações em matéria de meio ambiente (art. 5°, incs. XIV, XXXIII e XXXIV, da CF; [...] art. 8°, da Lei n° 7.347, de 24/07/1985). De outro lado, o dever de o poder público informar periodicamente a população sobre o estado do meio ambiente e sobre as ocorrências ambientais importantes (art. 4°, inc. V, e 9°, incs. X e XI, da Lei n° 6.938, de 31/08/1981 e art. 6°, da Lei n° 7.347/1985), antecipando-se, assim, em certa medida, à curiosidade do cidadão. (BARROS, 2004, p. 39).
O princípio da boa-fé, para o assunto água de lastro, rege a honestidade, a lealdade e a veracidade com que as obrigações e as informações, de responsabilidade dos comandantes das embarcações, dos armadores[64] e dos proprietários, devam ser realizadas, prestadas ou disponibilizadas perante os agentes, os órgãos públicos e os cidadãos, tendo em vista a preservação do meio ambiente aquático. Este princípio aplica-se também às relações contratuais nas quais a Administração seja parte, a lhe favorecer em situações danosas em razão de conduta ilícita do administrado por descumprimento de contrato e por comportamento contrário ao do homem comum e probo (CAMPOS, R. A. C., 2009).
Outrossim, o princípio da boa-fé é aplicável às relações extracontratuais previstas em lei e sob a responsabilidade da Administração, pois, de acordo com o que ensina Perez:
[...] A aplicação do princípio da boa fé [...] implicará na confiança da Administração em que o administrado que com ela se relaciona vai adotar um comportamento leal na fase de constituição das relações, no exercício dos seus direitos e no cumprimento de suas obrigações frente à própria Administração e frente a outros administrados. (PEREZ, 1999, p. 91-92 apud CAMPOS, R. A. C., 2009, p. 12).
Os princípios analisados são os que se acham mais evidenciados na legislação aplicável, não se excluindo outros mais específicos, os quais serão apreciados à medida que forem necessários.