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A judicialização do direito à saúde:

aspectos relevantes do direito brasileiro

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18/12/2015 às 10:12
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Não se pode denegar a tutela jurisdicional da saúde sob a simples alegação de que as normais constitucionais definidoras dos direitos sociais têm caráter programático e que devem ser implementadas por políticas públicas pautadas pela conveniência e oportunidade do administrador e do legislador.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a questão da judicialização do direito à saúde. Primeiramente, é abordada a conformação do direito à saúde no Direito Positivo Brasileiro. Após, são analisadas as correntes antagônicas existentes a respeito do tema. Em seguida, é abordada a necessidade de compatibilização da concretização do direito individual à saúde com a preservação das políticas públicas existentes, apontando-se parâmetros úteis na solução de demandas judiciais envolvendo o referido direito social. O trabalho é pautado notadamente pela metodologia dogmática, com utilização do estudo científico das fontes do Direito para alcançar os objetivos propostos, com destaque para a doutrina, jurisprudência e a legislação pertinentes ao tema.

Palavras-chave: Direito à Saúde. Processo Judicial.

Sumário: Introdução. 1. O direito fundamental à saúde no ordenamento jurídico brasileiro. 2. A questão da judicialização do direito à saúde. 3. O Poder Judiciário e o direito à saúde: a necessidade de compatibilização das pretensões individuais com a preservação das políticas públicas existentes. Conclusão.


Introdução

O reconhecimento do direito à saúde como direito fundamental é expresso no art. 6º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que dispõe, ainda, sobre o modo de sua efetivação nos artigos 196 a 200. Ademais, o Estado Brasileiro assumiu obrigações internacionais no sentido de implementar tal direito, como se pode extrair do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992, e o Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1996.

Todavia, a implementação de tais direitos encontra obstáculos notadamente em razão do seu custo, considerando-se a limitação de recursos disponíveis ao Estado Brasileiro para atendimento, de forma eficaz, de sua extensa população.

Por tal motivo, um elevado número de demandas é apresentado ao Poder Judiciário visando à concretização do direito à saúde por meio da imposição, ao Poder Público, da obrigação de fornecer determinado medicamento ou tratamento.Surgem, então, duas correntes a respeito do papel do Judiciário na efetivação de tal direito social: a primeira, que defende a intervenção judicial para fins de concretização do direito à saúde, considerando-se a força normativa da Constituição e a indispensabilidade de tal direito para a realização da dignidade da pessoa humana; a segunda, contrária à intervenção do Judiciário, considerando que a concretização do direito à saúde se dá por meio de políticas públicas, segundo a conveniência e oportunidade dos agentes políticos competentes, que devem fazer escolhas alocativas dos escassos recursos existentes (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, pp. 829-830).

Portanto, no presente trabalho, pretende-se analisar os relevantes fundamentos apresentados por uma e outra corrente, abordando-se, ainda, os entendimentos jurisprudenciais a respeito do tema, de modo que se possa dimensionar o problema do papel do Judiciário na efetivação do direito à saúde, acentuando a necessidade de efetivação do direito no plano individual (“micro-justiça”), sem perder de vista o problema atinente à escassez de recursos, diante da imprescindibilidade de manutenção das políticas públicas de saúde existentes (“macro-justiça”) (AMARAL, 2001).

Primeiramente, será abordada a conformação do direito à saúde no Direito Positivo Brasileiro. Após, serão analisados os argumentos antagônicos no tema da judicialização do direito à saúde. Em seguida, será abordada a necessidade de compatibilização da concretização do direito individual à saúde com a preservação das políticas públicas existentes, buscando-se o apontamento de parâmetros úteis na solução de demandas judiciais envolvendo o referido direito social.

O presente trabalho se pauta notadamente pela metodologia dogmática, utilizando-se do estudo científico das fontes do Direito para alcançar os objetivos propostos, com destaque para a doutrina, jurisprudência e a legislação pertinentes ao tema, especialmente com apontamentos acerca do voto do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da STA 175 Agr/CE, bem como acerca dos Enunciados Doutrinários aprovados na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça em 15 de maio de 2014 em São Paulo/SP, levando em conta, ainda, estudos realizados na atividade de assessoramento ao Juízo da Vara Única Federal da Subseção Judiciária de Muriaé/MG.


1 O direito fundamental à saúde no ordenamento jurídico brasileiro

Os direitos sociais – terminologia que abrange, genericamente, aos direitos econômicos, sociais e culturais – são referidos como direitos fundamentais de segunda geração, que demandam uma atuação positiva do Estado para fins de implementação. São orientados pelo valor “igualdade”, tendo sido inicialmente reconhecidos constitucionalmente na primeira metade do século XX em decorrência de reivindicações contra as profundas desigualdades socais geradas pelo capitalismo burguês conjugado com a posição de abstenção do Estado Liberal Clássico em face dos direitos de primeira geração – direitos civis e políticos, orientados pelo valor “liberdade”[1]. Nesse sentido, leciona José Afonso da Silva a respeito dos direitos sociais:

"Como dimensão dos direitos fundamentais do homem, já os entendemos como prestações positivos estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos de gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade" (SILVA, 2003).

A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à saúde no rol de direitos sociais em seu art. 6º, que se insere no Título II, referente aos “Direitos e Garantias Fundamentais”. Como asseveram MENDES, COELHO e BRANCO (2010, p. 832), a partir da análise do art. 196 da CF/88, é possível vislumbrar uma dimensão individual e uma dimensão coletiva do direito à saúde.

 Quanto à dimensão coletiva, o direito à saúde se revela como difuso, conforme conceito trazido pelo art. 81, parágrafo único, I, do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que se trata de direito transindividual, de natureza indivisível, de titularidade de pessoas indeterminadas, considerando-se que toda a coletividade tem direito de viver em ambiente saudável, propiciado, notadamente, pela existência de políticas públicas voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, nos termos do art. 196 da CF/88. Acerca da face coletiva do direito à saúde, leciona Geisa de Assis Rodrigues (2009):

"A despeito de podermos identificar o direito de cada pessoa de ter sua saúde preservada, a dimensão difusa do direito à saúde é a que garante a todos a adoção de medidas públicas de prevenção e promoção do bem estar sanitário da coletividade e de cada um de seus membros. (...) O incontável número de titulares do direito à saúde, como veremos de forma mais minudente a seguir, se vincula por mera circunstância fática, que no caso é a necessidade de determinada medida que favoreça suas condições de saúde. Tem natureza indivisível posto que só admite satisfação quando todos os seus titulares estejam contemplados. Segundo a mesma lógica, o direito à saúde é indisponível, não podendo ser limitado ou reduzido em razão de condutas individuais. O direito à saúde, como examinaremos mais adiante, tem evidente conteúdo extrapatrimonial, uma vez que não existe equivalente econômico correspondente a seu agravo".  

No que tange à sua dimensão individual, o direito à saúde se revela direito público subjetivo (art. 6º, CF/88), criando uma relação jurídica obrigacional entre o indivíduo e o Estado. Nesse sentido:

"O reconhecimento, por exemplo, do direito à saúde, é diferente da imposição constitucional que exige a criação do Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer prestações existenciais imanentes àquele direito. Como as prestações têm, igualmente, uma dimensão subjectiva e uma dimensão objectiva, considera-se que, em geral, esta prestação é o objecto da pretensão dos particulares e do dever concretamente imposto ao legislador através das imposições constitucionais. Todavia, como a pretensão não pode ser judicialmente exigida, não se enquadrando, pois, no modelo clássico de direito subjectivo, a doutrina tende a salientar apenas o dever objectivo da prestação pelos entes públicos e a minimizar o seu conteúdo subjectivo. Ainda aqui a caracterização material de um direito fundamental não tolera esta inversão de planos: os direitos à educação, saúde e assistência não deixam de ser direitos subjectivos pelo facto de não serem criadas as condições materiais e institucionais necessárias à fruição desses direito" (CANOTILHO apud SILVA, 2003).

Outro ponto a ser considerado é a consagração jurisprudencial do entendimento segundo o qual todos os entes federados possuem responsabilidade solidária na implementação do direito à saúde. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal:

"Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento" (STA 175 AgR / CE).

 Tal entendimento encontra respaldo constitucional, considerando-se que o art. 23, II, da CF/88 estabelece que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde. Ademais, o art. 198, caput, da Constituição dispõe que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um serviço único (SUS), a ser financiado com recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes (§ 1º).

Feitas tais considerações iniciais acerca do direito à saúde, passa-se à questão atinente a sua judicialização.


2 A questão da judicialização do direito à saúde

Como já tangenciado nas considerações introdutórias, no tema relativo ao papel do Judiciário na efetivação do direito à saúde, surgem duas correntes antagônicas: a primeira, que defende a impossibilidade de o Judiciário impor ao Poder Público a obrigação de realizar certo procedimento médico ou a dispensar determinado medicamento, porquanto a implementação do direito à saúde, nos termos do art. 196 da CF/88, dá-se por meio de políticas públicas, fundadas em estudos técnicos próprios que visam a possibilitar o atendimento da população na maior medida do possível e conforme as necessidades regionais e locais. Assim, advogam que a intervenção do Judiciário nessa seara poderia comprometer a Política Nacional de Saúde, considerando-se o descolamento de verbas orçamentárias para fins que não estavam planejados, muitas vezes prestigiando a tutela da saúde de poucos em detrimento do alcance maior que poderia ser obtido com a observância dos parâmetros da política pública. Haveria, assim, indevida ingerência do Judiciário em questões políticas, levando-se em conta o caráter programático das normas constitucionais definidoras dos direitos sociais, vulnerando-se o princípio constitucional da separação dos poderes.

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De outro lado, a segunda corrente defende a intervenção judicial para fins de implementação do direito à saúde, considerando-se a responsabilidade solidária dos entes da federação, prevista no art. 23, II, e 196, CF/88, além das obrigações internacionais assumidas pelo Estado Brasileiro, como através do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992, e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), ratificada em 1996.

De acordo com tal corrente, o Estado deve adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos sociais, tal como previsto no art. 2º, § 1º, do Pacto Internacional, e no art. I, do Protocolo de San Salvador. Tratando-se de obrigação do Estado, o seu Poder Judiciário tem a função política e o dever jurídico de participar no cumprimento de tais obrigações, considerando-se que a efetivação de todos os direitos humanos, sejam civis e políticos, sejam sociais, seria uma imposição da proteção à dignidade humana. Nesse ponto, pertinente é a lição de Luís Roberto Barroso (1996):

"Qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer consequência jurídica. Pelo contrário, conforme se verá ao longo deste estudo, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras consequências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social".

Com efeito, “juízos de ponderação são inevitáveis nesse contexto prenhe de complexas relações conflituosas entre princípios e diretrizes políticas ou, em outros termos, entre direitos individuais e bens coletivos” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 830).


3 O Poder Judiciário e o direito à saúde: a necessidade de compatibilização das pretensões individuais com a preservação das políticas públicas existentes

Os argumentos antagônicos no tema relativo à judicialização do direito à saúde, como visto no item anterior, têm as suas respectivas relevâncias e pertinências, não podendo ser acolhido ou afastado um ou outro por meio de considerações apriorísticas ou superficiais.

Cabe assentar, inicialmente, que não se pode simplesmente admitir a argumentação de que haveria indevida ingerência do Judiciário no âmbito do mérito administrativo ao determinar a disponibilização de certo tratamento ou medicamento. Vale lembrar, aqui, como leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, p. 971), que a existência de discricionariedade ao nível da norma pode ser reduzida ou mesmo afastada diante de situações concretas, que demonstrariam apenas uma solução admissível para cumprir a finalidade normativa, em relação à qual é cabível o controle judicial.

Com efeito, nas demandas envolvendo o direito à saúde, o órgão julgador deve ter em vista a concretização de tal direito, considerando-se a força normativa da Constituição e a indispensabilidade de tal direito para a realização da dignidade da pessoa humana, sem perder de foco, entretanto, a imprescindibilidade de preservação das políticas públicas existentes, que se pautam na possibilidade orçamentária, levando-se em conta a escassez de recursos. Diante de tal constatação, mostra-se necessário buscar parâmetros para o julgamento das demandas envolvendo o direito à saúde com a finalidade de compatibilizar as pretensões individuais com a preservação das políticas públicas existentes.

Nesse caminho, insta apontar que a jurisprudência internacional, fomentada especialmente pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, destaca cinco princípios aplicáveis aos direitos sociais (PIOVESAN, 2009):

a) o princípio da observância de um patamar mínimo de proteção (minimum core obligation), extraído do princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que a proteção mínima aos direitos sociais demanda prioridade e urgência;

b) o princípio da aplicação progressiva, considerando-se a necessidade de aportes financeiros para concretização dos direitos sociais, extraído do art. 2º, § 1º, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Desse princípio, extraem-se outros dois: I) a proibição da inação, de modo que não se admite o caráter simplesmente programático, como se de sugestão aos Estados se tratasse, das normas definidoras dos direitos sociais, impondo-se aos Estados a adoção de medidas concretas para efetivação de tais direitos; II) a proibição ao retrocesso social, sendo vedado o retrocesso a um patamar de proteção inferior ao já conquistado pelo Estado;

c) o princípio da inversão do ônus da prova, pelo qual incumbe ao Estado provar a insuficiência de recursos para a implementação dos direitos sociais, porquanto é obrigação sua valer do máximo dos recursos disponíveis;

d) princípio da participação, transparência e acccountability, a partir do qual se vê a necessidade de debate político na determinação das políticas governamentais, além de prestação de contas e fiscalização.

De nossa jurisprudência interna, pode-se extrair, como consignado pelo E. Ministro GILMAR FERREIRA MENDES no julgamento da STA AgR 175/CE[2], que o direito à saúde, como direito de todos (art. 196, CF/88), tem um dimensão individual e uma dimensão coletiva, e considerar as normas que os definem como programáticas, incapazes de produzir efeitos, importaria negar força normativa à Constituição.

Quanto à dimensão individual, o direito à saúde se revela direito público subjetivo, criando uma relação jurídica obrigacional entre o indivíduo e o Estado. O E. Ministro prossegue, citando o voto do Ministro Celso de Mello, relator no AgR-RE 271.286/RS:

“(...) a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente”, impondo aos entes federados um dever de prestação positiva. Concluiu que 'a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (CF, art. 197)', legitimando a atuação do Poder Judiciário nas hipóteses em que a Administração Pública descumpra o mandamento constitucional em apreço".

 Em continuação, acentua que tal direito público subjetivo é assegurado mediante políticas sociais e econômicas (art. 196, CF/88), não havendo direito absoluto a qualquer procedimento necessário para a proteção, a promoção e a recuperação da saúde, independentemente de política pública que o concretize, considerando-se que as políticas públicas traduzem escolhas alocativas dos recursos, diante do extenso número de pessoas a serem atendidas e as diversas necessidades, variáveis conforme a gravidade das doenças, as condições financeiras da população, o perfil epidemiológico regional e local, entre outros.

 Desse modo, “a garantia judicial à prestação individual de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser demonstrado de forma clara e concreta, caso a caso”. 

Ressaltou o Ministro Gilmar Mendes, ainda, que, em Audiência Pública realizada naquela Corte para ouvir especialistas na área da Saúde Pública, constatou-se que, na maioria dos casos em que se invoca a tutela jurisdicional no tema do direito à saúde, não há omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, de modo que a intervenção judicial se dá para fins de cumprimento de política pública já existente, não havendo que se falar em indevida ingestão do Judiciário no campo da discricionariedade política dos outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas.

Assim, em demandas em que se busca a tutela do direito à saúde, “o primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política pública estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte”.

Em caso positivo, ao deferir o pleito quanto à prestação constante de política pública existente, não há interferência judicial em discricionariedade política dos outros Poderes, pois existe o direito subjetivo àquela política pública.

Por outro lado, ressalta o Ministro, não se encontrando a prestação pleiteada incluída entre as políticas do SUS, “é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de (1) uma omissão legislativa ou administrativa, (2) de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou (3) de uma vedação legal a sua dispensação".

Há casos em que se pleiteiam medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Nesse ponto, insta consignar que o registro do medicamento na ANVISA é medida de segurança pública, pois um dos requisitos para sua obtenção, nos termos do art. 16 da Lei 6360/76, é que o fármaco seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe. Em se tratando de medicamento de procedência estrangeira, deverá ser, ainda, comprovada a existência de registro válido no país de origem, nos termos do art. 18 da referida Lei.

Após o registro do medicamento, a ANVISA passa a realizar a regulação econômica dos fármacos, analisando a fixação do preço definido, levando em consideração o benefício clínico e o custo do tratamento. “Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento não trouxer benefício adicional, não poderá custar mais caro do que o medicamento já existente com a mesma indicação”.

Diante disso, constata-se que “o registro na ANVISA configura-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo o primeiro requisito para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação”, pois, nos termos do art. 16 da Lei 6360/76, nenhum medicamento poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes do registro no Ministério da Saúde. Tal regra é relativizada pela Lei 9782/99, que permite que a ANVISA dispense medicamentos de registro quando adquiridos por meio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em saúde pública pelo Ministério da Saúde.

“O segundo dado a ser considerado”, prossegue o Ministro Gilmar Mendes, “é a existência de motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS”, caso em que duas situações podem ser constatadas: a) o SUS fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente; b) o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia.

Nesse ponto, conforme o voto citado, extrai-se do art. 196 da Constituição Federal/88, a princípio, que a obrigação do Estado se restringe ao fornecimento das políticas sociais e econômicas formuladas para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, porquanto o SUS filia-se à corrente da “Medicina com base em evidências”, adotando “Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas” , “que consistem num conjunto de critérios que permitem o diagnóstico de doenças e o tratamento correspondente com os medicamentos disponíveis e as respectivas doses”. Desse modo, deve-se ter cautela com medicamentos que se encontrem em desconformidade com o Protocolo, “pois tende a contrariar um consenso científico vigente”.

Some-se a isso a necessidade de se racionalizar os recursos escassos existentes, de forma a atender da forma mais eficiente possível a coletividade. Desse modo:

"(...) obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação de proteção à saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada".

Diante do preceito previsto no art. 196 da CF/88 e das considerações expostas, conclui o Ministro que deve ser privilegiado o tratamento do SUS em lugar de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.

Todavia, tal conclusão não afasta a possibilidade de o Judiciário ou a Administração decidir que medida diferente da custeada pela rede pública seja fornecida a determinada pessoa, diante de prova, no caso concreto, de que o tratamento fornecido, em seu caso específico, é ineficaz.

No que tange à inexistência de tratamento na rede pública, diferenciam-se:

a) os tratamentos experimentais, que se regem pelas normas atinentes à pesquisa médica, não podendo o Estado ser condenado a fornecê-los, uma vez que tais drogas não foram aprovadas ou avaliadas, não sendo, portanto, comercializadas, sendo disponibilizadas apenas no âmbito de estudos clínicos ou programas de acesso expandido, o que não afasta a obrigação de os laboratórios continuarem a fornecer o tratamento aos pacientes que se submeteram aos estudos clínicos;

b) os novos tratamentos ainda não incorporados ao SUS, em relação aos quais não podem ser os cidadãos ser impedidos de ter acesso, porquanto sua eficiência, a despeito de não constar da Política de Saúde, pode ser aferida de outra forma. Pensamento diverso implicaria tratamento diferenciado entre os que têm condições de acesso à rede privada daqueles que somente podem recorrer à rede pública.  Nesse ponto, “é imprescindível a instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar um obstáculo à concessão de medida cautelar”. Cabe citar, nesse ponto, o Enunciado 4 da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ):

"Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e não limitadores. Assim, no caso concreto, quando todas as alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já tiverem sido esgotadas ou forem inviáveis ao quadro clínico do paciente usuário do SUS, pelo princípio do art. 198, III, da CF, pode ser determinado judicialmente o fornecimento, pelo Sistema Único de Saúde, do fármaco não protocolizado".

Conclui o Ministro Gilmar Mendes, ainda no julgamento da STJ AGR/CE 175:

"As premissas analisadas deixam clara a necessidade de instrução das demandas de saúde para que não ocorra a produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto examinado, impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à saúde".

Diante de tais considerações, alguns outros parâmetros podem ser fixados para a discussão, em juízo, do direito à saúde, considerando-se, inclusive,  a regra de distribuição do ônus probatório prevista no art. 333 do Código de Processo Civil[3], de modo a estabelecer parâmetros para a solução de tais conflitos:

1) em princípio, não há direito subjetivo a todo e qualquer medicamento ou tratamento, mas há direito subjetivo, sim, à política pública de saúde existente, a teor do art. 196, da CF/88, sendo que o não fornecimento de medicamento ou a não prestação de tratamento previsto na respectiva política enseja a procedência do pleito. Nesse sentido, pertinente é o Enunciado 11 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ, in verbis:

"Nos casos em que o pedido em ação judicial seja de medicamento, produto ou procedimento já previsto nas listas oficiais do SUS ou em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PDCT), recomenda-se que seja determinada pelo Poder Judiciário a inclusão do demandante em serviço ou programa já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS), para fins e acompanhamento e controle clínico";

2) na hipótese de o medicamento ou tratamento pretendido não se encontrar incluído em política pública:

a) cabe à parte que os pleiteia provar que, a despeito de não se incluírem no âmbito das políticas públicas, são seguros e eficazes ao fim terapêutico almejado, conforme evidências científicas demonstradas nos autos, devendo ser provado, ainda, que as medidas contidas na política pública são ineficazes em seu caso. Nesse sentido, têm-se os Enunciados 12, 14 e 16 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ:

Enunciado 12: "A inefetividade do tratamento oferecido pelo SUS, no caso concreto, deve ser demonstrada por relatório médico que a indique e descreva as normas éticas, sanitárias, farmacológicas (princípio ativo segundo a Denominação Comum Brasileira) e que estabeleça o diagnóstico da doença (Classificação Internacional de Doenças), tratamento e periodicidade, medicamentos, doses e fazendo referência ainda sobre a situação do registro na Anvisa (Agência acional de Vigilância Sanitária)";

Enunciado 14: "Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não constante das políticas públicas do Sistema Único de Saúde".

Enunciado 16: "Nas demandas que visam acesso a ações e serviços da saúde diferenciada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o autor deve apresentar prova da evidência científica, a inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos constantes dos protocolos clínicos do SUS".

b) no caso de o tratamento ou medicamento pretendido encontrar-se em fase experimental, a improcedência é medida que se impõe, conforme Enunciados 6 e 9 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ, in verbis:

Enunciado 6: "A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei".

Enunciado 9: "As ações que versem sobre medicamentos e tratamentos experimentais devem observar as normas emitidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não se podendo impor aos entes federados provimento e custeio de medicamento e tratamentos experimentais".

3) em qualquer caso, cabe à parte que pleiteia o medicamento ou tratamento provar que deles necessita, demonstrando ser portador da doença alegada, bem como a manutenção da situação de doença. Cabe apontar os casos de medidas judiciais de prestação continuativa, em relação às quais deve haver renovação periódica do relatório médico, conforme o Enunciado 2 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ:

"Concedidas medidas judiciais de prestação continuativa, em medida liminar ou definitiva, é necessária a renovação periódica do relatório médico, no prazo legal ou naquele fixado pelo julgador como razoável, considerada a natureza da enfermidade, de acordo com a legislação sanitária, sob pena de perda de eficácia da medida".

4) em caso de alegação de insuficiência orçamentária e invocação da teoria da reserva do possível, cabe à Fazenda Pública demonstrar a adoção de medidas, concretamente, ‘até o máximo dos recursos disponíveis’,  para a efetivação do direito à saúde.

Tais parâmetros, que, por certo, não são capazes de acobertar as inúmeras situações que podem surgir em juízo, podem ser um ponto de partida para a solução das demandas judiciais envolvendo o direito à saúde, sem perder de vista a preocupação com a escassez de recursos orçamentários.

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Sobre o autor
Leônder Magalhães da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduado lato sensu em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Analista Judiciário na Justiça Federal de 1ª Instância - Subseção Judiciária de Janaúba/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Leônder Magalhães. A judicialização do direito à saúde:: aspectos relevantes do direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4552, 18 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45326. Acesso em: 28 mar. 2024.

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