Em 13 de janeiro de 2016, foi publicada com vigência imediata a Lei 13.245/16, que assegurou a participação do advogado no interrogatório e nos depoimentos durante a investigação, seja de natureza cível, administrativa ou criminal.
Como forma de explorar as mais diversas hipóteses de aplicação da Lei a casos concretos, passamos a discorrer sobre as principais alterações e suas repercussões práticas.
1. Do acesso e exame dos autos de flagrante delito ou investigação de qualquer natureza
A Lei 13.245/16 garantiu ao advogado o direito de acessar e examinar autos de flagrante delito ou procedimento investigativo de qualquer natureza, em qualquer repartição pública.
Antes da alteração o Estatuto da OAB previa em seu art. 7º, XIV, que é direito do advogado "examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;"
Após a alteração, passou a prever que é direito do advogado "examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital". (art. 7, XIV da Lei 8.906/94) (destaquei)
A primeira alteração ampliou as repartições em que o advogado poderá ter acesso às investigações. Antes da alteração constava “qualquer repartição policial”, passando a ser agora “em qualquer instituição responsável por conduzir investigação”.
Várias repartições realizam investigações, como o Ministério Público, Comissão Parlamentar de Inquérito, Receita Federal, Autarquias, dentre outras.
Portanto, além das Polícias Federal, Civil e Militar, o direito de acesso e exame de investigações aplica-se a qualquer instituição.
Salienta-se que a Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/94) já trazia como prerrogativa da Defensoria Pública o acesso e exame de investigações em “qualquer repartição pública” (art. 44, VIII e art. 128, VIII).
Anotamos que a previsão legal “em qualquer instituição responsável por conduzir investigação” não distinguiu a natureza jurídica da “instituição”, o que atrelado à finalidade da alteração legislativa, podemos afirmar que deve abranger também as instituições privadas, como as Universidades, na hipótese, p. ex., de um aluno que venha a sofrer um processo administrativo que pode resultar em sua exclusão da faculdade.
A segunda alteração ampliou a natureza da investigação, antes prevista para autos de flagrante e de inquérito. Em razão da alteração passa a ser direito do advogado o acesso a investigações “de qualquer natureza”.
Assim, o advogado possui direito de acessar e examinar investigações de natureza criminal, cível e administrativa, o que abrange os inquéritos civis, procedimento de investigação criminal, procedimentos administrativos disciplinares, dentre outros.
A Súmula Vinculante n. 14 prevê que “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. (destaquei)
Em razão do texto da súmula acima destacado, o STF já decidiu que é assegurado o acesso a procedimentos investigatórios de natureza criminal, em razão do termo “órgão de competência de polícia judiciária”.[1] Verifica-se que a “polícia judiciária” é a responsável por conduzir os inquéritos policiais, razão pela qual o STF entendeu que a Súmula aplica-se somente às investigações de natureza criminal.
Ocorre que com a nova previsão que passou a constar “de qualquer natureza”, deve ser feita uma nova leitura da Súmula Vinculante, de forma que o defensor tenha acesso a qualquer procedimento investigatório realizado por qualquer instituição.
O ideal é que a Súmula seja revista, observado o art. 103-A da CRFB/88, e passe a ter a seguinte redação: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por qualquer instituição, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
A terceira alteração possibilitou que o advogado copie peças e tome apontamentos por meio físico ou digital.
Assim, deve ser assegurado ao advogado que tire cópias dos autos por meio de celular, que os autos sejam digitalizados e gravados em um “Pen Drive”.
Caso seja possível, os autos podem ser, inclusive, encaminhados por e-mail, observada a segurança da informação.
2. Da inobservância do direito de amplo acesso aos autos de investigação
A Lei 13.245/16 incluiu o § 12 no art. 7º da Lei 8.906/94, prevendo que “A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente.” (destaquei)
Verifica-se que em caso de negativa de acesso aos autos, fornecimento incompleto de autos ou a retirada de peças dos autos para fornecer acesso, caso haja intuito de prejudicar a defesa, configurará crime de abuso de autoridade (art. 3º, “j”[2] da Lei 4.898/65), sem prejuízo da responsabilidade disciplinar e por improbidade administrativa (art. 11, I e II[3], da Lei 8.429/92) da autoridade que negou o acesso.
Importante frisar que o § 12 do art. 7º da Lei 8.906/95 veda a retirada de peças já juntadas aos autos que possam prejudicar o exercício do direito de defesa. Isto é, a peça retirada dos autos deve possuir relevância. Caso o Escrivão junte uma peça que não interesse aos autos, por engano, é possível que a autoridade policial determine o desentranhamento.
Uma questão interessante é se a autoridade policial possui discricionariedade para definir quando juntará aos autos as peças produzidas. P. ex.: a audição de uma testemunha tem que ser juntada aos autos após o depoimento ou no momento oportuno, a critério da autoridade policial?
Imagine a hipótese em que a autoridade policial ouviu uma testemunha importante, que passou informações relevantes, que se chegar ao conhecimento da defesa, as possíveis diligências que decorrerão do depoimento da testemunha restarão frustradas, como a informação de que o investigado possui drogas e/ou armas em sua residência.
No caso narrado acima é perfeitamente possível que a autoridade policial não junte o depoimento aos autos, até que se conclua as diligências decorrentes da audição.
3. Da necessidade (ou não) de procuração para acessar os autos da investigação
O § 10 do art. 7º da Lei 8.906/94 prevê que “Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.” (destaquei)
Inicialmente, é importante especificar quando haverá sigilo nos procedimentos investigatórios.
O sigilo subdivide-se em externo e interno.
O sigilo externo é a regra do inquérito policial e consiste no sigilo que a autoridade policial deve manter da investigação em relação a terceiros, inclusive a imprensa.
Referido sigilo externo decorre da necessidade de preservar a imagem do investigado[4] (art. 5, X, da CRFB/88) e da própria natureza da investigação, que muitas vezes tem seu sucesso condicionada à manutenção de seu sigilo, em razão do elemento “surpresa”.
O sigilo interno refere-se aos que possuem interesse na investigação, sendo aplicável ao advogado e ao investigado.
Nenhum dos dois sigilos são oponíveis à autoridade policial, ao juiz e ao promotor envolvidos no caso.
Um exemplo de “sigilo interno” é a hipótese em que a autoridade policial esteja produzindo elementos probatórios para realizar pedido de busca e apreensão ou pedido de interceptação telefônica.
Portanto, em se tratando de diligências que ainda não foram realizadas ou que estão em andamento, a defesa não possui direito ao acesso, sob pena da investigação restar infrutífera.
Feito os apontamentos sobre o “sigilo”, é importante analisar quando é necessária a exigência de procuração.
Não está claro se o § 10 do art. 7º da Lei 8.906/94 abrange os sigilos em razão da lei, decretados pela autoridade policial ou em razão de ordem judicial.
O art. 16 do Código de Processo Penal Militar prevê que o inquérito é sigiloso.
Art. 16. O inquérito é sigiloso, mas seu encarregado pode permitir que dele tome conhecimento o advogado do indiciado. (destaquei)
Portanto, o sigilo nos inquéritos policiais militares decorre de lei, sendo que a autoridade policial militar, denominado Encarregado, deve assegurar o sigilo do IPM, facultando acesso ao advogado do investigado mediante procuração.
Outro exemplo de sigilo que decorre de lei encontra previsão no art. 234-B do Código Penal.
Art. 234-B. Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (destaquei)
Portanto, nos crimes contra a dignidade sexual, por imposição legal, os autos deverão tramitar em segredo de justiça, sendo necessário advogado constituído para que tenha acesso aos autos.
Em relação ao inquérito policial, o art. 20 do Código de Processo Penal determina que a autoridade policial assegure o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
Pela redação do citado artigo é possível dizer que a autoridade policial possui certo grau de discricionariedade ao avaliar o caso concreto e impor o sigilo necessário para o bom êxito da investigação.
Assim sendo, é possível afirmar que nos inquéritos policiais os advogados terão acesso aos autos sem necessidade de procuração, salvo se o Delegado houver decretado sigilo, ocasião em que será necessária a procuração.
Nessa toada, Renato Brasileiro de Lima[5] ensina que “Se a autoridade policial verificar que a publicidade das investigações pode causar prejuízo à elucidação do fato delituoso, deve decretar o sigilo do inquérito policial com base no art. 20 do CPP, sigilo este que não atinge a autoridade judiciária e nem o Ministério Público”. (destaquei)
No tocante ao sigilo decorrente de ordem judicial (segredo de justiça), entendemos que o acesso ao advogado com procuração, conforme o caso, deve ser concedido pelo juiz competente.
A Lei 12.850/13, que trata da organização criminosa, assevera o seguinte:
Art. 23. O sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu defensor terá assegurada a prévia vista dos autos, ainda que classificados como sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem ao ato, podendo ser ampliado, a critério da autoridade responsável pela investigação.
Respeitável doutrina e estudiosos do direito lecionam que o permissivo legal mencionado refere-se às investigações que envolvam organizações criminosas, o que é perfeitamente aceitável e parece ser o entendimento majoritário, mas não concordamos, pelas seguintes razões.
A uma, o fato de o dispositivo estar previsto na Lei de Organizações Criminosas não impede sua aplicação para casos semelhantes, mormente quando não houver previsão legal para outros casos, devendo ser feita uma interpretação sistemática, podendo o art. 23 da Lei 12.850/13 ser aplicado analogicamente.
De mais a mais, a própria lei não limitou a aplicação do art. 23 da Lei 12.850/13, exclusivamente, aos casos de organização criminosa.
A duas, deve-se aplicar a máxima de que “onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito”. Na hipótese em que se tratar de investigação envolvendo organização criminosa, o próprio legislador, dada a gravidade presumível e necessidade de garantia da celeridade e eficácia das diligências investigatórias, impôs à investigação a necessidade de autorização judicial para que a defesa acesse os autos da investigação sob segredo de justiça, o que não impede a aplicação da mesma lógica para outros casos igualmente graves.
Imagine a hipótese em que uma associação criminosa (e não organização criminosa)[6] cometa vários crimes, como uma séria de homicídios e tráfico de drogas, sendo fatos graves, cujo sigilo para a investigação torna-se imperioso para seu sucesso.
Decretado o segredo de justiça, conforme o caso, somente com autorização judicial será possível que o advogado constituído tenha acesso aos autos, em relação aos atos de diligência já realizados, documentados e que não possam trazer prejuízo para futuras diligências.
Caso não fosse necessária autorização judicial para que a defesa acesse os autos sob segredo de justiça, não haveria distinção entre o sigilo decretado pela autoridade policial e o segredo de justiça, quanto à fase investigatória, na medida em que o sigilo decretado pela autoridade policial, por si só, é suficiente para assegurar a vedação de acesso por terceiros e pela mídia. Os efeitos práticos em relação ao acesso aos autos seriam os mesmos.
Observa-se ser possível que o juiz, ao decretar o segredo de justiça, autorize que a própria autoridade policial conceda ao advogado constituído, o acesso aos autos da investigação.
Não se trata de cercear direito do defensor, mas sim de garantir o interesse público no êxito das investigações, sem, no entanto, afrontar direitos fundamentais, que serão assegurados pelo juiz competente.
Por fim, é importante frisar que quando o art. 7º da Lei 8.906/94, que trata dos direitos do advogado quis se referir ao segredo de justiça, o fez expressamente, conforme disposto em § 1º, “1” que diz que o direito de acesso do advogado aos processos judiciais ou administrativos, bem como em relação à retirada dos autos de processos findos, mesmo sem procuração, não se aplicam aos processos sob regime de segredo de justiça.
Portanto, o art. 7º, § 10 da Lei 8.906/94, ao mencionar a necessidade de procuração para examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, sob sigilo, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital, não se restringiu aos sigilos decorrentes de ordem judicial (segredo de justiça), mas sim aos sigilos decorrentes de lei, por imposição da autoridade policial ou mediante ordem judicial, uma vez que o próprio art. 7º, §1º, “1”, quando quis se referir a segredo de justiça, o fez expressamente.