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Judicialização social, autopoiese e pluralismo

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27/09/2016 às 16:00
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O empoderamento dos subsistemas sociais no iter decisório é, sem dúvida, atualmente, a ponte de comunicação mais válida e eficaz para oxigenar o Estado e a comunidade como amicus curiae político.

Resumo: O trabalho tem como núcleo a conexão entre judicialização, autopoiese e pluralismo. Sob essa perspectiva reorienta a discussão da judicialização de políticas públicas, que se estabelece no ambiente exclusivamente restrito às funções estatais, para um contexto onde a análise é a ação comunicativa entre o Judiciário e a sociedade. Esta relação caminha muito além do positivismo inerente à atuação conservadora do Estado-juiz. A partir do caso do aborto de feto anencéfalo decidido pelo Supremo Tribunal Federal, com a participação de segmentos da sociedade no processo, a investigação verifica que a autopoiese expande efeitos aos subsistemas sociais. O pluralismo participativo no processo decisório convalida o senso de cidadania e de democracia, tendo como substrato um mínimo ético de valorização da comunidade.  

Palavras-chave: neoconstitucionalismo judicialização, autopoiese, pluralismo, democracia.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Judicialização e ativismo judicial. 4. Autopoiese. 4.1. Autopoiese: Luhmann e a Biologia. 4.2 Autopiese: Luhmann e o Direito. 5. Judicialização e pluralismo como acoplamentos autopoiéticos estruturais. 5.1 Judicialização e pluralismo: o mínimo ético. 5.2 Judicialização e pluralismo: validade e eficácia. 5.3 Judicialização e pluralismo: ética, direito e política. 6. O caso concreto: o Supremo Tribunal Federal e a questão social da anencefalia. 6.1. Análise do julgamento da anencefalia: autopoiese ou alopoiese?. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.  


1 – INTRODUÇÃO.[1]

A comunicação tem como núcleo apresentar uma percepção sobre a denominada judicialização de políticas públicas e sua dinâmica frente ao sistema jurídico e à estrutura social. De fato, no ambiente brasileiro as constantes e incisivas intervenções do Poder Judiciário, em todos os níveis de atuação, invocam, em regra, a análise hermenêutica direcionada à relação entre as três funções estatais de legislar, administrar e julgar. Verificamos, entretanto, que além dessa perspectiva de entropia limitada ao conjunto de governança estatal e que aborda eventuais disfunções nas atribuições definidas pela teoria tripartite, a atuação proativa do Judiciário também desenvolve um outro sistema, agora direcionado para a validade e eficácia perante a sociedade, o que se poderia denominar de judicialização social. Para a fundamentação desse viés, cingido à relação entre o Poder Judiciário e os segmentos sociais, cuja eficácia se apresentará como condição de possibilidade para a consolidação instrumental do pluralismo participativo, a experiência jurídica atualmente manejada pelo principal órgão judiciário e constitucional, o Supremo Tribunal Federal, será correlacionada com o estudo do Direito sob a cifra autopoética como a elaborou Niklas Luhmann. Melhor dizendo, o comportamento do Judiciário, que integra a participação da sociedade como input nos indícios da motivação de suas decisões, aglutina instrumentos de valores éticos na composição de comandos estatais, apesar de suas características predominantemente monopolizadoras e coercitivas. A expressão de poder estatal pela sentença (lato sensu) é decorrente da intersubjetividade do processo binário Estado-juiz e sociedade. A validade do processo participativo é condição de possibilidade para a eficácia decisória que, por sua vez, legitima o sistema jurídico, como monopólio estatal, e o subsistema de valores democráticos no pluralismo social.


2 – METODOLOGIA.

A par dessas considerações, o presente trabalho tem como metodologia a concentração de considerações que identifiquem conteúdos conceituais mínimos da judicialização, dos critérios de como um sistema pode ou não se autoalimentar e, assim, pela autopoiese, oxigenar o pluralismo no interior do sistema hermético de justiça no Brasil. Munidos desses conceitos, o núcleo será a análise em caso concreto onde o Supremo Tribunal Federal desempenhou suas atividades, e, apesar de seu poder de dizer o Direito e do monopólio de sua jurisdição, a decisão final foi o resultado da participação popular na própria instrução e cognição em processo de grande repercussão convivial – a permissão da interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Como referencial teórico apresentaremos a autopoiese, a judicialização e o ativismo judicial como antecedentes à formulação de nossa tese e à conclusão, a fim de municiar o leitor com dados hábeis a estabelecer senso crítico em relação às apostas no aperfeiçoamento do neoconstitucionalismo.


3 – JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL.

Com a Constituição Brasileira de 1988, o Brasil passou a ter um marco histórico em relação à separação dos três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A mesmo tempo em que esses poderes têm suas atribuições típicas legalmente definidas, discute-se, desde então, o exercício de suas funções atípicas, em particular na denominada judicialização de políticas públicas. O relevante papel do Estado quanto aos seus objetivos de garantia de direitos coletivos e individuais não estaria limitado às funções governamentais hermeticamente consideradas, e, por consequência, nem mesmo à restrita interpretação formal baseada na Constituição, ou a racionalidade jurídica para além da dicotomia entre o direito natural e o positivismo (PERELMAN, 1996, p. 361). 

A linha da judicialização[2] das políticas públicas, legislativa e executiva, está diretamente condicionada às mudanças de ruptura social. A sociedade é impelida para a intensa busca na concretização de direitos, ganhando amplo destaque hoje a repercussão dos chamados direitos das minorias, caracterizando, assim, novo direcionamento ao sistema jurídico em relação às relações que hoje se encontram em transição pela carga histórica de omissão estatal.

Constatamos, nesse bordo, que a judicialização está diretamente ligada à postura do Poder Judiciário diante dessa transição e, da inércia institucional das demais funções estatais e crise de legitimidade, transmuda a concepção jurídico-política de modo a permitir um questionamento quanto ao próprio papel do Estado, que seria o de promover o alcance assentado da cidadania, como equilíbrio dos parâmetros da necessidade e adequação da atuação estatal e sua governabilidade.[3]

Evidencia-se, nesse contexto, a atuação do Judiciário. O sistema jurisdicional brasileiro formatando a judicialização com o papel do Supremo Tribunal Federal em relação à questões que norteiam normas constitucionais pelo controle abstrato e com o controle difuso exercido por todos os órgãos jurisdicionais.[4]  

Hoje, com o fenômeno do neoconstitucionalismo, muitos doutrinadores defendem que a Constituição é um texto em aberto, cabendo não apenas aplicação da norma puramente dita.[5] Em outras palavras, se o positivismo kelsiano induz a uma interpretação hermética do sistema jurídico e, ao cabo, do Direito, a atuação judiciária indicada pela judicialização social de participação no processo de motivação permite a manutenção circular das expectativas de comunicação entre Estado e sociedade, como proposto pela contextualização da teoria autopoética, como pretendemos demonstrar.

O ativismo judicial[6] pode ser entendido, por sua vez, como a capacidade de o Judiciário julgar conforme melhor interpretação da norma, de modo a suscitar questões omitidas pela norma, e até mesmo reinterpretar a norma consoante a situação fática presente, dar solução à conflitos individuais suscitados na jurisdição, não apenas pela lei, mas sob a luz dos princípios e da relevância sociológica aos ditos conflitos.[7] É, em suma, o controle difuso perante às normas e princípios constitucionais e o controle da legalidade e da legitimidade da atuação legislativa e executiva.[8]

É da realidade que se cunha a atuação estatal, e não ao contrário. Esse dado impõe a efetiva distinção entre a judicialização de políticas públicas, enquanto política estatal, e, de outro lado, o ativismo, ou, enfim, do controle abstrato e o difuso. Não há, propriamente dita, uma disfunção ou preponderância entre os três Poderes, mas a necessidade imposta pelos fenômenos quanto a intensidade e densidade de atuação entre eles e deles sobre a realidade que se manifesta como fenômeno social, como precedente de novo diálogo dentro do sistema estatal e os subsistemas comunitários.[9]

Esse modo de condução jurisdicional se amolda, de forma instrumental, às noções liberal e republicana incorporadas no sistema normativo de democracia, como qualificado por Jürgen Habermas, na medida em que a política seria “constitutiva do processo de coletivização social como um todo” (HABERMAS, 2002, p. 283), e não tão somente uma instância mediadora de interesses privados. A comunicação pública teria o objetivo de construir consensos. A solidariedade ganha o status de uma das dimensões sociais, ao lado do mercado e do Estado. Os direitos subjetivos, ao invés de servirem como um mapeamento da esfera de soberania individual, permitem ao cidadão participar no processo de construção da sociedade que integra, sendo o Estado o instrumento desta construção. Não são direitos negativos, mas positivos (HABERMAS, 2002, p. 272-3), como patamar crítico cujo objetivo seria, ao final, a política deliberativa como resultado da conexão entre Estado e sociedade.

Pela nossa compreensão, esse caminho pode ser explicado pela autopoiese.


4 – AUTOPOIESE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

O sociólogo Niklas Luhmann (apud RAMOS, 2014, p. 1) desenvolveu uma teoria dos sistemas sociais, com base no conceito de autopoiese, extraído da ciência da Biologia. A partir desta teoria, o autor aprofundou-se no que considerava ser a função do Direito, sua condição de subsistema social e sua relação com o todo da sociedade, ou pluralismo segundo a tese formulada nesta empreitada. Tais considerações permitirão analisar, do início ao fim da presente comunicação, os fenômenos da judicialização social e da participação cidadã no manejo do Direito pelo Poder Judiciário e qual o papel resultante dessa operação num eventual modelo instrumental-deliberativo de democracia e de república.

4.1 – AUTOPOIESE: LUHMANN E A BIOLOGIA.

Inicialmente, cabe definir o que seria autopoiese e qual sua relação com os sistemas sociais. Autopoiese, na Biologia, é o termo que define os sistemas vivos capazes de se autoproduzir. Esta autoprodução consistiria na detenção exclusiva do papel de determinar os próprios rumos operacionais e estruturais. Não se quer dizer que o sistema é independente ou indiferente a seu meio ambiente (sua fonte de insumos para as operações), porém que há uma relação de autonomia (MATURANA apud MARIOTTI, p. 1), na qual o ambiente não pode substituir o sistema na sua posição de decisor interno, entretanto pode produzir estímulos externos significativos sobre ele, os quais Luhmann nomeia “irritações” (LUHMANN apud PEREIRA, 2011, p. 5).

Luhmann (apud PEREIRA, 2011, p. 4), transcendendo o campo biológico e buscando o universal, constrói então uma visão de mundo binária, constituída por sistema e entorno: o sistema dá a própria definição, e tudo que não se encaixa nela é o entorno, em uma relação de identidade circular. No contexto social, a diferença não é espacial, mas operacional, ou seja, o sistema define quais as operações que lhe são pertinentes e, por exclusão, define seu ambiente externo (Bechmann; Stehr, apud PEREIRA, 2011, p. 4). A maior característica deste ambiente é a complexidade no grau mais elevado. Isto se dá porque os elementos que o compõe comportam inúmeras combinações entre si, porém a concretização de algumas destas combinações implica na escolha por elas e consequente negação de outras. A convivência de possibilidades alternativas, isto é, de combinações que não se podem realizar simultaneamente, compõe o conceito de contingência. O número de contingências indica o grau de complexidade do ambiente. (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, apud RAMOS, 2014, p. 1)

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O sistema, ao se definir, diminui a complexidade pois concretiza várias possibilidades e, neste mesmo ato, exclui outras. As reduções de complexidade operadas pelos sistemas efetivam escolhas suficientes para estabilizar a situação dos elementos de uma maneira suficiente a permitir um aumento de complexidade posterior ordenado. A ordenação é regulada pelo sentido. Este movimento de diminuição da complexidade do ambiente para aumento da complexidade dentro do sistema é chamado de evolução (LUHMANN apud RAMOS, 2014, p. 1).

O sistema se define e constrói seu sentido (valor de identidade) por meio de suas operações e estruturas. As estruturas existentes determinam as operações possíveis, e as operações realizadas transformam as estruturas existentes, caracterizando uma relação dinâmica e circular. As operações e estruturas são internas e exclusivas a cada sistema, conforme sua própria determinação (já que o sistema define o que é sistema e o que é entorno), traduzindo-se isto no conceito de encerramento operativo (LUHMANN apud PEREIRA, 2011, p. 4). O sentido, para Luhmann (apud RAMOS, 2014, p. 1), é uma construção do sistema, não algo que exista previamente e possa ser inferido pelo uso da razão. Para relacionarem-se com o ambiente de modo coerente com seu sentido e sua função, os sistemas desenvolvem os próprios códigos binários, sempre compreendendo valor/valor oposto, como forma de classificação dos insumos (LUHMANN apud PEREIRA, 2011, p. 6). Paralelamente, os programas da estrutura servem para refinar o sistema de valor e valor oposto do código binário, regulamentando de forma mais completa sua classificação (LUHMANN apud RAMOS, 2014, p. 1).

4.2 – AUTOPOIESE: LUHMANN E O DIREITO.

Após estas considerações iniciais de sistemas, cabe passar à descrição de Luhmann (apud RAMOS, 2014, p. 1) dos sistemas sociais propriamente ditos. O autor define a sociedade como um sistema autopoiético cujo núcleo operacional é a comunicação, ficando o homem em seu entorno. Os homens são considerados sistemas psíquicos, tendo como operação básica os pensamentos. Logo, ainda que os homens possam influenciar a sociedade e seus subsistemas por meio da comunicação[10], eles não a compõem.

Luhmann (apud RAMOS, 2014, p. 1) define o Direito como um subsistema da sociedade, ou seja, ele tem existência autônoma e considera a sociedade como seu entorno, porém, todas suas operações ocorrem dentro desta sociedade que o enxerga o Direito como parte de si.

É portanto imprescindível para o Direito ter o domínio sobre as próprias operações, enquanto sistema autopoiético, bem como o controle sobre quais operações sociais (comunicações) deverão influenciá-lo, sendo certo que este controle se resume à pertinência para com seu sentido, e ainda à capacidade proporcionada por suas estruturas internas. Sob este prisma, Luhmann (apud PEREIRA, 2011, p. 6) define o Direito como “um sistema normativamente fechado e cognitivamente aberto”, pois é permeável a influxos cognitivos enquanto mantém sua autonomia funcional.

Ao tratar o dever-ser no Direito, Luhmann (apud RAMOS, 2014) nega sua imanência como ideal do Universo, considerando-o um construto derivado das comunicações aceitas pelo sistema jurídico, em raciocínio análogo ao aplicável ao conceito de sentido de forma genérica. O código binário básico do Direito é o lícito/ilícito e seus programas de tratamento e reprodução da informação jurídica são a Constituição, as leis, a jurisprudência etc. (NEVES apud PEREIRA, 2011, p. 6). Sua função enquanto subsistema seria a de “consolidação das expectativas normativas”, ou seja, a defesa das estruturas e de sua capacidade contínua de autopoiese (LUHMANN apud RAMOS, 2014, grifo nosso).

O Direito, como todo sistema ao relacionar-se de modo mais íntimo com outros sistemas específicos, estabelece com eles acoplamentos estruturais, que são ligações aprofundadas e duradouras que permitem a intensificação da transformação circular e do sincronismo entre os sistemas (MATURANA apud PEREIRA, 2011, p. 5).[11]

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Sobre o autor
Marco Falcão Critsinelis

Mestrando Profissional em Justiça Administrativa na Universidade Federal Fluminense/UFF (Brasil), Especialista em Políticas Públicas e de Governo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (Brasil), Especialista em Direito Comunitário Europeu e Mercosul/Faculdade Universo (Brasil) em parceria com a Faculdade de Coimbra (Portugal), Juiz Federal (Rio de Janeiro, Brasil). http://lattes.cnpq.br/6271225868002463.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRITSINELIS, Marco Falcão. Judicialização social, autopoiese e pluralismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4836, 27 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51429. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

O presente artigo foi adaptado a partir do trabalho de conclusão da disciplina “Argumentação, Lógica e Fundamentação das Decisões Judiciais”, coordenada pelo professor doutor Wilson Madeira Filho, no Programa de Mestrado Profissional em Justiça Administrativa da Universidade Federal Fluminense- NUPEJ/PPGJA/UFF, em Niterói, ano 2016.

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