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Processo jurisdicional e política na democracia constitucional: parte 1

09/02/2017 às 08:13
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O presente texto, que se divide em cinco partes, pretende abordar as interações e tensões entre o constitucionalismo e a democracia e entre o processo jurisdicional e a política, mormente em face do atual tema da judicialização da política.

Desde os nossos primeiros textos publicadas aqui no Jus Navigandi, temos frisado o significado sociopolítico do processo jurisdicional e sua evolução histórica, deixando registrado que ele inicialmente se consagrou como garantia (ativa e passiva) inerente ao Estado de Direito e em seguida, já em meados do século XX, passou a ser visto também em sua importante faceta político-participativa, como instrumento da democracia participativa. Esta e as vindouras partes têm por objetivo justamente abordar o último aspecto citado, a começar por suas premissas.

O aprofundamento dos estudos acerca das relações entre o Direito, a política e a democracia, sob os mais diversos enfoques teóricos, culminou no desenvolvimento de posições ou teses que, em linhas gerais, podem ser agrupadas em dois eixos analíticos: o procedimentalismo e o substancialismo (STRECK, 2007, p. 40). A celeuma fundamental entre tais vertentes se sintetiza na discussão sobre os papeis da Constituição e da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito.

A corrente procedimentalista atribui à Constituição a tarefa de garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrática, ficando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a definição dos valores e das opções políticas da comunidade. A corrente substancialista, ao seu turno, sustenta competir à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais (BARCELLOS, 2012, p. 6-7). Como consequência da adoção de um ou outro posicionamento, varia a extensão da admissibilidade da censura judicial das leis e dos atos normativos e governamentais. Enquanto os procedimentalistas reconhecem à jurisdição constitucional legitimidade para tal controle somente no que tange à verificação da correta observância dos procedimentos públicos de deliberação e formação da vontade coletiva, os substancialistas vão além, autorizando-lhe a averiguação conteudística dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, tendo como parâmetros as escolhas ético-políticas fundamentais cristalizadas na Lei Maior. Assim, uma visão fortemente substancialista tenderá a justificar um controle de constitucionalidade mais rigoroso dos atos e normas produzidos no âmbito do Estado, ao passo que uma percepção procedimentalista conduzirá a uma atitude mais deferente acerca do núcleo das decisões dos Poderes Públicos (BARCELLOS, 2012, p. 8).

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2007, p. 140-141), defensor do procedimentalismo, afirma que, por um lado, não é mais possível compreender o Estado como a corporificação e a instância única de estabilização de uma identidade ética, de uma dada forma de vida e de certos padrões de vida boa. Não há mais, portanto, como restringir a esfera pública ao ente estatal, como atestam os chamados direitos fundamentais de terceira geração. O público deve hoje ser visto como uma dimensão bem mais complexa do que simplesmente a de um locus estatal, isto é, como uma dimensão discursiva de mobilização e expressão dos diversos fluxos comunicativos. Sob outro ângulo, se até um passado bastante recente a homogeneidade artificialmente levada a efeito pelo processo formativo do denominado Estado-Nação, que propiciou a constituição de uma identidade política, era tida por indispensável para a garantia e a manutenção de uma república de cidadãos livres, hodiernamente a autoconsciência por parte de um consórcio de cidadãos livres e iguais perante o Direito requer o reconhecimento do pluralismo social e cultural.

Para Dierle José Coelho Nunes (2008, p. 216), no paradigma procedimental de Estado Democrático de Direito se impõe a concomitante prevalência da soberania do povo e dos direitos fundamentais em todos os campos, especialmente na esfera estatal, em que existe a constante formação de provimentos que gerarão efeitos para uma pluralidade de cidadãos. Destarte, conforme exara André Cordeiro Leal (2008, p. 146), a forma de tornar possível a legitimidade permanente do ordenamento jurídico se dará mediante a institucionalização das condições para a ação comunicativa (ou condições pragmáticas do discurso), ou seja, pela garantia de constante participação dos destinatários das normas em sua produção, afastando a contingência de decisões arbitrárias ou que determinem o retorno continuado à autopoiese.

Jürgen Habermas (2003, p. 325-326), um dos maiores expoentes mundiais da corrente procedimentalista, preleciona que, no contexto do Estado Democrático de Direito e da ideia de auto-organização da comunidade jurídica, a Constituição não há mais que ser compreendida como uma ordem que regula primariamente a relação entre o Estado e os cidadãos, deixando de fora os poderes social, econômico e administrativo, nem como uma ordem jurídica global e concreta, destinada a impor a priori certa forma de vida sobre a sociedade. Ao contrário, ela determina procedimentos políticos mediante os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida. Somente as condições processuais da gênese democrática das leis são capazes de assegurar a legitimidade do Direito. Nessa ótica, cabe à jurisdição constitucional proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos, examinando leis e atos normativos controvertidos especialmente sob o prisma dos pressupostos comunicativos e das condições procedimentais do processo de legislação democrático. Em suma, compete-lhe tutelar a integridade dos ritos político-constitucionalmente exigidos para a escorreita formação da vontade da maioria.

De acordo com Lenio Streck (2009, p. 19-26), adepto em parte das teses substancialistas, estas, em oposição, colocam ênfase justamente na regra contramajoritária (freios às vontades de maiorias eventuais), o que, para elas, reforça a relação Constituição-democracia. Com efeito, a regra contramajoritária traduz a materialidade do núcleo político-essencial da Constituição, representado pelo compromisso do resgate das promessas da Modernidade, que apontará, simultaneamente, para vinculações positivas (concretização dos direitos prestacionais) e negativas (proibição de retrocesso social), até porque cada norma constitucional possui diversos âmbitos eficaciais. As posturas substanciais, por isso, intensificam a força normativa da Constituição, ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais sociais a serem concretizados. Ademais, mostra-se difícil defender as teses processuais-procedimentais em países como o Brasil, em que o déficit de cumprimento dos direitos fundamentais sociais ainda é grande, parecendo muito pouco, mormente se considerada a pretensão de aqui se construírem as bases de um Estado Social, destinar ao Poder Judiciário o encargo de zelar apenas pelo respeito às normas procedimentais da política deliberativa.

Para Luís Roberto Barroso (2009, p. 88-90), que também pode ser ligado ao substancialismo, a Constituição de um Estado Democrático de Direito reúne duas funções principais. Em primeiro lugar, incumbe-lhe veicular consensos mínimos, basilares para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem estar sujeitos à disposição de maiorias políticas ocasionais. Tais consensos, conquanto variem em razão das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa. Em segundo lugar, compete à Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos, posto que há um conjunto de decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo povo em cada momento histórico. Destarte, inexiste antagonismo entre o constitucionalismo, que significa em essência limitação do poder e supremacia da lei, e a democracia, que se traduz como soberania popular e governo da maioria, sendo antes fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo. Ambos se destinam, em última análise, a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social. Por meio do equilíbrio entre os preceitos materiais contemplados na Constituição e a deliberação majoritária as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das necessidades cotidianas, a cargo das autoridades políticas eleitas pelo povo.

Segundo Robert Alexy (2008, p. 581), um modelo puramente procedimental de Constituição é incompatível com a vinculação jurídica do legislador aos direitos fundamentais, pois é definido pela negação de toda e qualquer obrigação legiferante (positiva ou negativa) material. Registre-se ainda a advertência de Arthur Kaufmann (2010, p. 427), para quem os conteúdos do Direito e da justiça são demasiado importantes para serem deixados unicamente aos sempre parciais políticos.

Ana Paula de Barcellos (2012, p. 7), por sua vez, não vislumbra incontornável contradição entre o procedimentalismo e o substancialismo, argumentando que mesmo o primeiro, em suas diferentes linhas, admite que o funcionamento do sistema de deliberação democrática demanda a satisfação de determinadas exigências, que podem ser descritas como opções materiais e se reconduzem a escolhas valorativas ou políticas. De fato, não é possível haver deliberação majoritária minimamente consciente e consistente sem respeito aos direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a garantia das liberdades individuais e de um mínimo de condições materiais indispensáveis ao exercício da cidadania.

O debate entre procedimentalismo e substancialismo não será profícuo para a realidade brasileira se perder de vista nossa vigente Constituição da República de 1988 e o contexto histórico-geográfico e socioeconômico em que ela se insere. No magistério de J. J. Gomes Canotilho (1993, p. 75-76), a compreensão de uma lei constitucional só ganha sentido útil, teorético e prático, quando referida a uma situação constitucional concreta, historicamente existente em um determinado país. Essa compreensão, portanto, há que ser “construída” com base em um específico diploma constitucional, e não derivada ou desenvolvida a partir da teoria da Constituição. Eis porque o conceito de Constituição deve ser constitucionalmente adequado.

Diante dessa acurada observação, forçoso concordar com Daniel Sarmento, que sustenta ser nossa atual Carta Magna nitidamente substancial, porque “pródiga na consagração de valores substantivos. Ela não se contenta em traçar as regras do jogo democrático, nem se limita a estabelecer as condições materiais necessárias para tornar a democracia possível – embora também o faça. Ela não é, definitivamente, uma Constituição do tipo procedimental, já que acolhe valores materiais como dignidade da pessoa humana e solidariedade social, tornando-os de observância compulsória no âmbito do Estado e da sociedade. Ao dar forma jurídica a estes valores, convertendo-os em princípios expressos em linguagem vaga e abstrata, mas não obstante dotados de plena normatividade, a Constituição prepara o terreno para a filtragem constitucional de todo o ordenamento jurídico.” (2010, p. 179)

Também Lenio Streck (2009, p. 32-34) destaca que a Constituição da República de 1988 aponta as linhas de atuação para a política, estabelecendo as condições para a mudança da sociedade pelo Direito. É, portanto, uma pauta para a alteração das estruturas sociais, uma vez que reconhece as desigualdades e coloca à disposição os instrumentos para alcançar aquele desiderato. Trata-se de uma cláusula transformadora permanente, quer-se dizer, a Lei Maior veio albergar os conflitos que antes eram ignorados pelos juristas. A Constituição, assim, não trata apenas dos meios, cuidando também dos fins, elencados no seu art. 3º., que exatamente caracterizam o seu aspecto compromissório e dirigente, voltado à construção de um Estado Social. A sua efetividade, por conseguinte, é agenda obrigatória de todos que se preocupam com a transformação de uma sociedade que, em cinco séculos de existência, produziu pouca democracia e muita miséria, fatores geradores de violências institucionais e sociais.

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Todavia, mesmo se reconhecendo o caráter notadamente substancialista da Constituição, e tal qual alerta Gustavo Zagrebelsky (2009, p. 152), ela não deve ser concebida como um sistema fechado de princípios, mas como um contexto aberto de elementos, cuja determinação histórico-concreta, dentro dos limites de elasticidade que tal contexto permite, é deixada ao legislador, porquanto somente assim se torna possível a coexistência de uma lei constitucional que contenha princípios substantivos com o pluralismo, a liberdade da dinâmica política e a competição entre propostas alternativas. Segundo o constitucionalista italiano, pensar o contrário não só representa uma manifestação de soberba dos juristas, como também um risco “holístico” de asfixia política por saturação jurídica, situando a Constituição contra a democracia. Em linha similar, Luís Roberto Barroso (2012, p. 12) leciona que a importância da Constituição, e do Judiciário como seu intérprete maior, não pode suprimir a política, o governo da maioria e o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Respeitados os valores e fins constitucionais, cumpre à lei fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Mundo Jurídico. Disponível em: <https://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2012.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf> Acesso em: 26 jan. 2012.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Breno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1.

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de António Ulisses Cortês. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, política e filosofia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

______. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas: da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón. 9. ed. Madri: Trotta, 2009.

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Sobre o autor
Thadeu Augimeri de Goes Lima

Pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Pesquisador, autor de livros, capítulos de livros e artigos científicos (publicados no Brasil e no exterior), professor e palestrante nas áreas do Direito Processual (Penal, Coletivo, Constitucional, Civil e Teoria Geral do Processo) e do Direito Penal. Professor convidado em atividades promovidas por Escolas Superiores/Centros de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional de Ministérios Públicos do Brasil e em cursos de pós-graduação "lato sensu" (especialização). Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular na Comarca da Região Metropolitana de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Thadeu Augimeri Goes. Processo jurisdicional e política na democracia constitucional: parte 1. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4971, 9 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54099. Acesso em: 21 nov. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado como coluna no sítio eletrônico Jurisconsultos (http://www.jurisconsultos.org/), na seção "Transformações no Direito Processual". Também publicado em LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Transformações no Direito Processual - Volume I". Saarbrücken, Alemanha: Novas Edições Acadêmicas, 2016. p. 67-74.

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