A Lei 8.009/90 criou a impenhorabilidade do imóvel de residência, dispondo que tal bem não responderá por dívidas de qualquer natureza, ressalvados os casos previstos na própria lei (que se encontram no art. 3º do referido diploma legal).
O art. 3º, IV, da Lei 8.009/90 garante a penhorabilidade do imóvel residencial no caso de “cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar”.
Há entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário no sentido de que a cobrança de cotas condominiais estaria incluída em “contribuições devidas em função do imóvel familiar”.
Refuta-se tal entendimento, considerando-se que as contribuições mencionadas naquele dispositivo são somente aquelas de natureza tributária, conclusão a que se chega mediante uma interpretação restritiva da norma em questão. E é certo que normas que restringem direitos devem ser interpretadas restritivamente. Assim, incabível seria a penhora do único imóvel residencial, mesmo em se tratando de dívida em função de cotas condominiais.
Conforme ensinamento do Professor Amilton Bueno de Carvalho, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, “a Lei 8.009/90 incorporou ao direito legislado avanço na busca da utópica vida em abundância para todos. O legislador, ao trazer ao sistema legal a impossibilidade de penhora sobre bens que garantam a dignidade do devedor e de sua família, cumpriu sua obrigação constitucional e o compromisso com aquilo que se reputa direito”.
Mesmo que se entendesse de forma contrária, acredita-se que deveria ser negada aplicabilidade à exceção esculpida no art. 3º, IV, da Lei 8.009/90, quando no imóvel residir criança ou adolescente membro da família do devedor.
A Constituição da República de 1988, em seu art. 227, caput, consagrou o princípio da absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente, ao estatuir que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O mencionado dispositivo relaciona-se intimamente com a dignidade e com os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. A mesma Carta Magna de 1988 erigiu o princípio da dignidade humana à condição de princípio político-constitucional, o que significa que o mesmo tornou-se paradigma a influenciar todo o ordenamento e todas as relações jurídicas levadas a efeito no país.
A dignidade da pessoa humana trata-se de um atributo inerente a todas as pessoas, em torno do qual gravitam todos os direitos humanos (previstos expressamente em lei ou não), na esteira da concepção consagrada por Immanuel Kant de que toda pessoa representa um fim em si mesma.
E a melhor ideia sobre o sentido de dignidade da pessoa humana provém realmente da obra do festejado filósofo prussiano:
“Quando uma coisa tem preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade”.
(Tradução livre do original: “Im Reiche der Zwecke hat alles entwerder einen Preis oder eine Würde. Was einen Preis hat, an dessen Stelle kann auch etwas anderes als Äquivalent gesetzt werden; was dagegen über allen Preis erhaben ist, mithin kein Äquivalent vestattet, das hat eine Würde”.)
Definição simples, porém crucial, é a de Gustavo Tepedino, catedrático da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que afirma que a dignidade humana nada mais é que o direito que cada um possui de atingir a felicidade.
Assim, pode-se dizer que violações a direitos fundamentais de um indivíduo representariam desrespeito à sua dignidade. Em virtude do mencionado princípio da prioridade dos direitos das crianças e adolescentes, dimensão ainda maior tomam violações a direitos fundamentais de menores, entre os quais se destaca o direito à moradia digna, consagrado no art. 6°. da Constituição de 1988 como direito social a ser protegido.
O Estatuto da Criança e do Adolescente funciona no ordenamento jurídico brasileiro como verdadeiro braço armado da Carta Magna de 1988, impondo à sociedade o respeito à dignidade dos menores de 18 anos de idade, mediante a doutrina da proteção integral (art. 1° do ECA).
E o ECA (Lei 8.069/1990) expressamente visa a resguardar a dignidade dos menores de 18 anos, em função de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Para tanto, estatui, em seu art. 3º que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata aquela lei, sendo-lhes assegurado, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
O art. 4º daquele diploma legal, não bastasse a natureza esclarecedora do dispositivo acima mencionado, ainda dispõe que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Tais princípios são ainda expostos no art. 18 do diploma menorista, que estabelece que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
A mesma proteção também é encontrada no direito internacional, o que se vislumbra pela leitura do art. 3°, 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil em 24/09/1990, aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14/09/1990, e promulgada pelo Decreto 99.710, de 21/11/1990:
Art. 3°.1. Em todas as medidas relativas às crianças, tomadas por instituições de bem estar social, públicas ou privadas, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão consideração primordial os interesses superiores da criança.
A preocupação com crianças e adolescentes é pertinente, pois os mesmos representam, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, 33% da população brasileira, ou seja, 60 milhões de pessoas.
Ademais, atividades acadêmicas demonstram que o crescimento e desenvolvimento de crianças dependem de fatores intrínsecos, que são relacionados à herança genética, e extrínsecos, relacionados ao meio ambiente.
Os doutrinadores Nery Jr. e Machado observam que, por não terem as crianças e adolescentes o desenvolvimento pleno de sua potencialidade, característica inerente à condição de seres humanos ainda em processo de formação sob todos os aspectos (tanto físico quanto psicológico), devem ser protegidos até que atinjam seu desenvolvimento pleno.
Portanto, qualquer decisão no sentido de autorizar a penhora do bem onde reside criança ou adolescente iria de encontro a todas as normas protetivas constantes da Constituição da República, da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente, vez que haveria violação ao seu direito de moradia digna, o que poderia lhe causar traumas para o resto da vida.
Para o festejado psicanalista inglês Donald Woods Winnicot, a base da saúde mental adulta é constituída ao longo da infância e da adolescência, considerando que um lar, por mais simples que seja, é mais importante para o sujeito do que qualquer outro local, devendo haver o cuidado de jamais se interferir em um lar que esteja funcionando.
Ainda segundo o notável psicanalista inglês, a possibilidade de sentir-se pertencente à segurança de um lar é condição fundamental para o saudável desenvolvimento da personalidade de uma criança ou adolescente.
Santos traz uma definição importante para o termo lugar. Segundo ele, uma experiência “antes de ser uma experiência espacial, é uma experiência em que o indivíduo sente que existe na subjetividade do outro. Ter um lugar é existir no meio ambiente humano”. Assim, vê-se o quanto ter um lugar, sentir-se acolhido em um ambiente físico, é, não apenas importante, mas fundamental. De fato, o acolhimento tem uma função muito mais ampla e significativa do que normalmente se percebe.
Para Winnicott, dois aspectos relacionados à estabilidade de um ambiente são fundamentais para que uma criança ou adolescente possa se sentir pertencente a ele e ter um desenvolvimento mental adequado: a estabilidade gerada pela continuidade da permanência do sujeito no ambiente e a estabilidade do ambiente enquanto lugar continente.
O que aqui se quer afirmar é que, em se tratando de imóvel residencial em que reside menor de 18 anos, que não é responsável pela dívida dos pais ou responsável, mesmo no caso de cobrança fundada em dívida condominial, haveria impenhorabilidade. Estamos diante de uma “exceção da exceção”.
Não se pretende aqui jogar na inutilidade o art. 3º da Lei 8.009/90. Pelo contrário, o que se quer é compatibilizar a Lei 8.009/90 com a Constituição de 1988 e com a Lei 8.069/90, vez que o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática.
Em suma, não se pode colocar em risco a dignidade de uma criança ou de um adolescente, jogando-o na sarjeta, em troca de uma dívida pecuniária. Qualquer entendimento em contrário significaria um vilipêndio às normas de direitos fundamentais da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mostra-se necessária uma ponderação de direitos, na linha do que preconizado por ilustres pensadores como Ronald Dworkin e Robert Alexy: direito de crédito do condomínio “versus” direito fundamental de moradia digna de uma criança. Não há dúvidas de que este deve prevalecer.
Logo, conclui-se que, em ações movidas por condomínios visando a cobrar cotas condominiais ou outras despesas afetas ao imóvel, na fase de execução não deve o Juízo determinar a constrição do bem, caso nele resida criança ou adolescente familiar do devedor. Caso contrário, estar-se-ia privilegiando direito patrimonial de crédito em detrimento de direitos fundamentais de criança ou adolescente, o que significaria vilipêndio ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e um imenso retrocesso jurídico, no sentido de que o Direito deve ser encarado, sob um viés democrático, como ferramenta na busca de vida abundante para todos.
Notas
[1] AMILTON BUENO DE CARVALHO. Direito Alternativo em Movimento. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 46.
[2] KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Edição crítica de Felix Meiner Verlag. Hamburg: 1994.
[3] TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[4] IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2005. Rio de Janeiro 2006. 330 p. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/
[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da Criança. Acompanhamento do crescimento de Atenção Básica. (Cadernos de Atenção Básica) n. 11, Brasília – DF, 2002.
[6] NERY JÚNIOR, Nelson; MACHADO, Martha de Toledo. O estatuto da criança e do adolescente e o novo código civil à luz da constituição federal: princípio da especialidade e direito intertemporal. Revista de Direito Privado, São Paulo, v.3, n.12, p. 17, out./dez. 2002.
[7] WINNICOT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Tradutor Irineo Constantino Schuch Ortis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. 268p. Título original: The Maturational Processes and the Facilitating Enviornment.
[8] SANTOS, M. M. S. As angústias impensáveis e o manejo técnico na clínica – um estudo de caso. In: OUTEIRAL, J. (org.). Winnicott: seminários brasileiros. Porto Alegre: Revinter, 2004. cap. 52, p. 420 – 428.