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Uma interpretação da justiça de transição brasileira à luz do sistema interamericano de direitos humanos

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A justiça de transição busca contribuir para uma redemocratização segura e gradual, pautada nos pilares da verdade, memória, justiça e reforma das instituições, mas enfrenta obstáculos constantemente para ser efetiva.

1.      INTRODUÇÃO.

O presente artigo tem por finalidade analisar o desempenho da Justiça de Transição Brasileira à luz do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.  A ditadura militar no Brasil teve início com o golpe militar em 31 de março de 1964, que resultou no afastamento do então Presidente da República, João Goulart, tendo assumido o poder em 15 de abril de 1964 o Marechal Castelo Branco.

O período que se instaurou foi cercado de incertezas e de limitações a muitos direitos dos brasileiros. Fato é que, não apenas o Brasil, mas também outros países da América Latina, enfrentaram limitações semelhantes.

Dreifuss[1] afirma que a ditadura militar não foi apenas militar, mas sim uma verdadeira ditadura civil-militar, pois apesar da nomenclatura dada por muitos autores, afirmam vários estudiosos que a participação dos civis era contínua, e que alguns civis chegaram a ser chamados de técnicos, dada a importância do trabalho que executavam; tanto os civis como os militares exerceram importante papel na manutenção do período ditatorial.

A Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964 permaneceu até 1985 e marcou sua trajetória com repressão política, violação de direitos e garantias fundamentais, bem como de direitos humanos daqueles que demonstraram contrariedade ao regime que se instaurara.

Passado o período ditatorial era preciso permitir que o país retomasse seus rumos utilizando uma estrada que não fosse a do totalitarismo e que adotasse uma postura coerente para se tornar um Estado democrático de direito. Dado ao contexto de redemocratização, se fez necessária a justiça de transição, que com fundamento nos pilares da memória, reparação, justiça e reforma das instituições democráticas, atuaria como um mecanismo seguro, apto a transformar o Estado violador de Direitos Humanos, em um Estado Democrático de Direito, sem cair no risco do esquecimento ou da amnésia seletiva sobre os fatos.

Um longo e contínuo processo que perdura até os dias de hoje foi iniciado e a fim de estudar a Justiça de Transição Brasileira à luz do Sistema Interamericano de Direitos Humanos analisaremos sua aplicação no Brasil, seus avanços e retrocessos, no que tange ao direito à memória e à justiça, bem como a eficácia do auxílio do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no cumprimento dos ideais de justiça, processamento e reparação.


2. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL.

Afirma Hannah Arendt que na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis de movimento[2]. Os regimes totalitários se caracterizam comumente pela forte repressão aos dissidentes políticos e ideológicos, pela intensa presença de propaganda social e pelo incentivo ao patriotismo, bem como pela censura dos meios de comunicação. Devido a essas características, podemos afirmar que o período ditatorial de 1964 a 1985 tinha nuances totalitárias.

A propaganda é, de fato, parte integrante da “guerra psicológica”; mas o terror o é mais. Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico, o regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada[3].

A justiça de transição, que também ficou conhecida como “o conjunto de processos designados a tratar do passado violento ou autoritário”[4], passou por algumas fases em que os doutrinadores tendiam a falar nas chamadas “escolhas trágicas”, segundo as quais seria preciso escolher entre paz ou justiça; estabilidade ou justiça; ou ainda entre verdade ou justiça. Entendiam ser impossível uma conciliação e que qualquer tentativa nesse sentido terminaria por desencadear o conflito. Atualmente, fala-se em justiça de transição como uma justiça transformativa, que faça escolha inclusivas ao invés de escolhas trágicas e assim possua uma maior efetividade.

No Brasil, a Justiça de Transição surge como uma resposta à sociedade brasileira, uma garantia de que todas as atrocidades cometidas pelo Estado não cairiam no esquecimento e de que finalmente a democracia está retornando para o cotidiano dos brasileiros. O processo de redemocratização, contudo, é lento e gradual, sendo preciso aparar as arestas para que as melhores decisões sejam tomadas.

2.1 Pelo fim do esquecimento

Justiça de transição não pode ser confundida com esquecimento. Ao longo de quase três décadas, muitos brasileiros defenderam a ideia do esquecimento, como se esquecer fosse a melhor solução para aqueles que foram vítimas do Estado. José Sarney, em defesa da anistia e do olvido, afirmou que “... é necessário um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos esses fatos no esquecimento da história. Não remexamos esses infernos, porque não é bom para o Brasil”[5].

Um dos pilares da justiça de transição é o direito à memória, que garante o direito a verdade histórica, o direito de que não apenas os brasileiros, mas de que o mundo inteiro saiba o que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1985.

Logo após a Anistia, os familiares entregaram um dossiê relatando de maneira suscinta os casos dos mortos e desaparecidos ao Senador Teotônio Vilela, então presidente da Comissão Mista Sobre a Anistia, no Congresso Nacional. Este dossiê, elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos do Comitê Brasileiro pela Anistia – CBA – foi editado, em 1984, com o apoio do CBA/RS – o único que ainda atuava na época no país –  pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. É o documento que tem servido de base para todo o trabalho de pesquisa e para elaboração deste atual Dossiê. Dele constavam 339 nomes, sendo 144 desaparecidos[6].           

Contudo, em recente relatório apresentado pela Comissão Nacional da Verdade[7] o número de mortos foi elevado para 434, sendo fruto da integração dos familiares das vítimas de repressão, assim como dos trabalhos da Comissão.

2.2 Sobre a anistia

Segundo Washington dos Santos, o termo anistia, do grego amnestía, pode ser definido como o ato pelo qual o poder público declara impuníveis, por motivo de utilidade social, todos quantos, até certo dia, perpetraram determinados delitos, em geral políticos, seja fazendo cessar as diligências persecutórias, seja tornando nulas e de nenhum efeito as condenações, também sendo entendida como perdão geral[8].

A Lei n.º 6683, de 28 de agosto de 1979, concedeu a anistia e essa abrange aqueles que cometeram crimes político ou conexos com estes, crimes eleitorais. Consta da referida lei:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

Está definido, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que a anistia compreende aqueles que foram atingidos em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares. Ou seja, a anistia concedida pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é menos abrangente do que aquela concedida pela Lei 6.683 de 1979, conhecida como Lei da Anistia, que, ao assumir uma postura mais abrangente, terminou por abarcar crimes que não possuem natureza política, mas sim natureza de violação de Direitos Humanos.

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição[9], foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.    

Cabe aqui nos questionarmos sobre a utilidade social decorrente da declaração de anistia nos moldes da Lei 6683 de 1979, tanto para aqueles que foram atingidos como para aqueles que atingiram. Podemos afirmar que essa não era a anistia pretendida pelas vítimas de tortura, sequestro, perseguições, desaparecimentos forçados. A anistia brasileira contribui de maneira decisiva para a impunidade. É importante esclarecer que não se trata de vingança, mas sim de processar os perpetradores de violações de direitos humanos.

2.3 Comissão de Anistia no Brasil

A Comissão de Anistia foi criada no ano de 2001 e tinha por objetivo a reparação, dos pontos de vista econômico e moral, para as vítimas de atos de exceção, arbítrio e violação aos direitos humanos entre 1946 e 1988. Está ligada ao Ministério da Justiça e possui 24 conselheiros, a maioria deles agentes da sociedade civil e professores universitários, que são indicados pelas vítimas e pelo Ministério da Defesa e busca ser um ponto de encontro do Brasil com o passado, valorizando o papel daqueles que resistiram[10]

Conforme esclarecem Ana Paula Ferreira de Brito e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira, os processos de redemocratização no Brasil foram marcados por reivindicações tanto da sociedade civil como do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que queriam que o Estado respondesse efetivamente aos crimes do passado. A demanda, contudo, não se limitava ao Brasil, se estendendo a outros países da América.

A conclusão a que se chegara era de que a impunidade não poderia perdurar e de que danos individuais e coletivos precisam ser reparados. Além disso, considerou-se que se tornava cada vez mais necessário garantir a não repetição dos mesmos erros no futuro. A fim de solucionar a demanda, foi criado o instrumento da Comissão da Verdade, que buscaria a verdade histórica[11].

No Brasil, mobilizaram-se grupos da sociedade civil, vítimas, familiares, a Ordem dos Advogados do Brasil e estudantes, a fim de que a Comissão Nacional da Verdade fosse criada para apurar os fatos ocorridos durante a ditadura militar.

Assim, em 18 de novembro de 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.


3.      O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi criado pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948, Decreto 30.544 de 14/02/1952. Em 1961, iniciou um processo denominado “visitas in loco”, a fim de, como observadora, analisar a situação geral dos direitos humanos em cada país e desde 1965, a Corte Interacional de Direitos Humanos tem autorização para receber petições e processar denúncias sobre violação de direitos humanos.

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O Sistema Interamericano de Direitos Humanos se aplica aos Estados das Américas, é administrado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e é orientado por vários tratados que buscam promover a dignidade da pessoa humana, possuindo diversos órgãos competentes para monitorar e exigir o cumprimento desses compromissos.

O sistema de proteção internacional dos direitos humanos no âmbito da Organização das Nações Unidas caracteriza-se como um sistema de cooperação intergovernamental que tem por objetivo a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana. Com esse sistema, além de ter consagrado a proteção internacional dos direitos humanos como princípios fundamentais de seu texto normativo, a Carta da ONU também deixou explícito que a proteção dos direitos humanos é um meio importante para assegurar a paz.

Em 1969 foi aprovada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978 e que foi ratificada, até janeiro de 2012, por 24 países: Argentina, Barbados, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.

A Convenção define os direitos humanos que os Estados ratificantes se comprometem internacionalmente a respeitar e a dar garantias para que sejam respeitados. Ela cria, também, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial de natureza autônoma sediado em San José, na Costa Rica, e cuja principal finalidade é aplicar a Convenção e outros tratados de Direitos Humanos, possuindo competência contenciosa e consultiva e integrando o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

Conforme esclarece o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, é importante destacar o papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no caso Guerrilha do Araguaia, de 1972. Na ocasião, o Exército brasileiro realizou uma série de operações contra a guerrilha do Araguaia, um movimento organizado pelo Partido Comunista do Brasil  (PCdoB), às margens do Rio Araguaia, na região limítrofe dos estados do Tocantins (então parte de Goiás), Maranhão e Pará, reunindo algumas dezenas de militantes.

Toda a área foi declarada zona de segurança nacional, e o Estado empregou diversos recursos para acabar com o movimento, levando cerca de dois anos para concluir sua missão. O caso ganhou destaque pelo fato de que em 1975 todos os guerrilheiros estavam presos ou mortos, com denúncias de tortura utilizada pelo exército contra os militantes e contra os camponeses da região.

O que se deu no Araguaia foi o paroxismo do choque dos radicalistas ideológicos que, com seus medos e fantasias, influenciaram a vida política brasileira por quase uma década. A esquerda armada supusera que estava no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia uma revolução socialista a cominho[12].

Em 24 de novembro de 2010 a Corte Internacional de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Gomes Lund[13] e outros, conhecido como “Guerrilha do Araguaia”, analisou pela primeira vez um caso de graves violações de direitos humanos praticadas pelo Brasil durante o regime militar.

A Corte entendeu que a interpretação dada à Lei de Anistia de 1979, que impede a investigação, julgamento e sanção dos responsáveis por tais violações, é incompatível com as obrigações que o país assumiu quando se vinculou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Determinou, ainda, em sentença definitiva e inapelável: a) a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado dos guerrilheiros do Araguaia, cumulada com a obrigação de determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e também, se for possível, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; b) a continuidade das ações desenvolvidas em matéria de capacitação e a implementação de um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas; c) que o delito de desaparecimento forçado de pessoas seja tipificado, de acordo com os padrões internacionais.

O Brasil ainda não cumpriu integralmente a decisão. No mesmo julgamento, a Corte reafirmou sua jurisprudência no sentido de que as graves violações de direitos humanos devem ser consideradas imprescritíveis[14].

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAZÁRIO, Geizilaine Camila Silva Rezende Oliveira. Uma interpretação da justiça de transição brasileira à luz do sistema interamericano de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5262, 27 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56230. Acesso em: 21 nov. 2024.

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