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Uma interpretação da justiça de transição brasileira à luz do sistema interamericano de direitos humanos

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6. EFICÁCIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL.

Podemos afirmar que a justiça de transição no Brasil tem buscado atuar de maneira constante  no sentido de ligar o passado com o presente, fazendo com que as ações ocorridas no período ditatorial não sejam esquecidas.  

A primeira formado tempo jurídico instituinte é a da memória A memória que lembra existir o dado e o instituído. Acontecimentos que importaram e ainda importam e são suscetíveis de conferir um sentido (uma direção e uma significação) à existência coletiva e aos destinos individuais[28]. 

O Estado exerce papel de extrema importância para uma real efetividade da justiça de transição conforme ensina Ost: “De todas as instituições jurídicas suscetíveis de ligar o futuro, a mais importante foi, e continua sendo ainda, em larga medida, o Estado. Sob a condição, contudo, de pensá-lo como poder contínuo, e não somente como poder soberano”[29].

Como sinal de efetividade podemos apontar o processo de localização e abertura dos arquivos do período do regime militar e seus avanços com a Comissão da Verdade Nacional. E ainda, o papel desempenhado pelas universidades que tem realizado pesquisas voltadas para análise do período com cientificidade. Na sexagésima primeira sessão, de 08 de fevereiro de 2005 a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou um conjunto de princípios que servem como justificativa da imprescritibilidade assim como princípios gerais para combater a impunidade. Entre os princípios aprovados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU estão:

  • O direito inalienável à verdade;
  • O direito imprescritível da vítima de saber as circunstâncias em que houve violência, morte ou desaparecimento;
  • O direito à imprescritibilidade como um direito fundamental, quando se refere a crimes que, para o direito internacional, são imprescritíveis;
  • O direito à justiça e especificamente à justiça penal;
  • O direito à jurisdição universal; (Resolução 3074 (XXVIII) da Assembleia Geral da ONU, de 03 de dezembro de 1973, que estabelece que os princípios de cooperação internacional na identificação, detenção, extradição e castigo dos culpados de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade);
  • O direito da restrição à Anistia. Reconhece-se a anistia como uma medida que pode ser benéfica em casos de acordos de paz e assim por diante (processo transicional da África do Sul) mas os autores de tais crimes não podem se beneficiar de tais medidas enquanto o Estado não cumprir suas obrigações, entre as quais levar adiante investigações independentes e imparciais sobre as violações dos direitos humanos e direito internacional humanitário e tomar medidas precisas em relação aos autores, particularmente na área da justiça penal, julgando-os e condenando-os conforme o caso[30].

Assim, “a eficácia das comissões da verdade, em termos de contribuição da reconciliação destas sociedades, é algo a ser determinado nos próximos anos[31]”, mas que numa breve análise podemos verificar a existência de frutos. Em termos de reparação gradativamente temos presenciado avanços, conforme se comprova com as comissões de anistia. 


7. CONCLUSÃO.

A justiça de transição busca cumprir seu papel de contribuir para uma redemocratização segura e gradual, pautada nos pilares da verdade, memória, justiça e reforma das instituições, mas enfrenta obstáculos constantemente para ser efetiva.

Ao avaliarmos a execução e funcionamento dos pilares verificamos que o pilar de verdade tem se desenvolvido de maneira muito sólida. Ao longo dos anos que se passaram, desde o fim do período ditatorial, vários documentários foram elaborados, vários relatórios, documentos, dossiês, o que contribui diretamente para que o pilar da memória também seja mais forte. A história está sendo revisada pelas mãos daqueles que não desejam o esquecimento, mas que buscam a verdade dos fatos sem eufemismos.

No que tange ao pilar da justiça, podemos afirmar que o papel assumido pelo Estado, que ainda não optou por processar os responsáveis pelas violações de direitos humanos, é um dos obstáculos a serem vencidos para uma maior efetividade da justiça de transição. Realizar o processamento e buscar uma punição não possui o mesmo significado que buscar vingança ou punir de forma arbitrária. O processamento permitirá que o pilar da justiça possua bases mais sólidas. A democracia é o sistema que se baseia na manutenção renovada do povo[32]. E o povo precisa acreditar que a justiça está sendo feita. A autoanistia é criticada não só pela sociedade brasileira, mas também pela sociedade internacional, assim como pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Sobre a necessidade de reforma das instituições muito ainda precisa ser feito, afinal não adianta remodelar a instituição se as pessoas que ali exercem suas funções não forem remodeladas. Nesse sentido, é importante seguir a recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de realização de cursos que priorizem a temática direitos humanos, não só para as Forças Armadas, mas para a sociedade de modo geral.

A justiça de transição exerceu e ainda exerce importante função na redemocratização do país.


Notas

[1] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1981. p.229.

[2] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo.Trad. Roberto Raposo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P.515.

[3] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo.Trad. Roberto Raposo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P.393.

[4] Superando a Impunidade na América Latina. (página 228).

[5] Fonte real: SELIGMANN – SILVA, Márcio. Anistia e (in) justiça no Brasil: o dever de justiça e a impunidade. Literatura e Autoritarismo, Memórias da Repressão, n9, 2006. p. 04. Fonte que usei: As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade Construindo a memória social sobre  o período militar no Brasil

[6]  Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 / Comissão responsável Maria do Amparo Almeida Araújo... et al., prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, apresentação de Miguel Arraes de Alencar. — Recife : Companhia Editora de Pernambuco, 1995.  Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964.P.26.

[7] Relatório da comissão nacional da verdade. Volume 1. P.68.

[8] Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001.

[9] O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 estabelece que a anistia se enderece a todos que foram atingidos por atos de exceção, institucionais ou transitórios, ou seja, a anistia é só para quem foi perseguido por atos de exceção. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund retoma esse assunto, ao afirmar que não existe anistia para os que praticaram tortura, perseguições, desaparecimentos forçados, prisões arbitrárias e assassinatos. Justiça de Transição nos 25 anos  da Constituição de 1988 – EmílioPelusoNederMeyer e MarceloAndradeCattonideOliveira. Belo Horizonte 2014. Editora Initia Via.

[10] Caravanas da anistia : o Brasil pede perdão /organização, Maria José H. Coelho, Vera Rotta. –  Brasília, DF : Ministério da Justiça ; Florianópolis: Comunicação, Estudos e Consultoria, 2012. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em 15 de janeiro de 2015.

[11] Ana Paula Ferreira de Brito e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira. As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade Construindo a memória social sobre  o período militar no Brasil.

[12] GASPARINI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. P.406.

[13] GUILHERME GOMES LUND Militante do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B). Nasceu em 11 de julho de 1947, na cidade do Rio de Janeiro, filho de João Carlos Lund e Julia Gomes Lund. Desaparecido, desde 1973, na Guerrilha do Araguaia com 26 anos. Estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro e, posteriormente, no Colégio Santo Antônio Maria Zacaria, no Curso Vetor e na Faculdade de Arquitetura da UFRJ, cursando até o segundo ano. Foi militante do movimento estudantil. Preso em 1968, acabou sendo condenado à revelia a 6 meses de prisão. Em 1969 foi residir em Porto Alegre, e em fevereiro de 1970, mudou-se para a localidade de Faveira na região do Araguaia. Para Guilherme, a adaptação à vida no campo foi dura. Acostumado ao conforto, tudo era estranho e difícil. Devido à sua prática anterior em hipismo, dedicou-se com afinco ao ofício de ‘tropeiro’, sendo um dos melhores. Era também um excelente nadador. Ao iniciar-se a luta guerrilheira, Guilherme já era um excelente mateiro e caçador. Era um companheiro dedicado, sempre preocupado em ensinar aos menos experientes. Era membro do Destacamento A das Forças Guerrilheiras e, posteriormente, foi deslocado para o destacamento C. Em 25 de dezembro de 1973, encontrava-se no acampamento guerrilheiro, doente com malária, quando foi desfechado um violento ataque das Forças Armadas, e ele teria sido fuzilado. O Relatório do Ministério da Marinha confirma a data de sua morte, sem outros esclarecimentos.

[14] Página 103, relatório da comissão. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 / Comissão responsável Maria do Amparo Almeida Araújo... et al., prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, apresentação de Miguel Arraes de Alencar. — Recife : Companhia Editora de Pernambuco, 1995.  Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964.P.235.

[15] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo.Trad. Roberto Raposo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 355.

[16] http://oglobo.globo.com/brasil/50-anos-depois-conservadores-tentam-reeditar-marcha-da-familia-com-deus-pela-liberdade-11918175. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

[17] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/03/manifestantes-se-reunem-para-nova-versao-da-marcha-da-familia-em-sp.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

[18] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo.

Trad. Roberto Raposo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 521.

[19]Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm. Acesso em 08 de janeiro de 2015.

[20] Conforme indicação do ponto 37, Capítulo 18 – Conclusões e recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade de 10 de dezembro de 2014

[21] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 08 de janeiro de 2015.

[22] Nunes, Ramon de Souza. Justíça de Transição no Brasil. p.99/100. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 / Emílio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (organização). – Belo Horizonte : Initia Via, 2014.

[23]http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/02/justica-militar-e-corte-interamericana-discutem-direitos-humanos-na-ditadura. Acesso em 11/02/2015.

[24] OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Edusc, 2005. Página 28.

[25] Justiça de transição : manual para a América Latina / coordenação de Félix Reátegui. – Brasília : Comissão de Anistia, Ministério da Justiça ; Nova Iorque : Centro Internacional para a Justiça de Transição , 2011. Manual da Justiça de Transição para América Latina. P.7.

[26] Disponível em: https://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-carlet-et-al.pdf. Acesso em: 15 de janeiro de 2015. As Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição brasileira. P.4.p.24.

[27] Justiça de transição : manual para a América Latina / coordenação de Félix Reátegui. – Brasília : Comissão de Anistia, Ministério da Justiça ; Nova Iorque : Centro Internacional para a Justiça de Transição , 2011. Manual da Justiça de Transição para América Latina. P.310/311.

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[28]OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Edusc, 2005. Página 28.

[29] OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Edusc, 2005. p. 240/241.

[30] Direitos Humanos Atual. PRONER, Carol. P. 327

[31] Justiça de transição : manual para a América Latina / coordenação de Félix Reátegui. – Brasília : Comissão de Anistia, Ministério da Justiça ; Nova Iorque : Centro Internacional para a Justiça de Transição , 2011. Manual da Justiça de Transição para América Latina. P.260.

[32] OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Edusc, 2005. p. 247.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo.

Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1981.

http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/02/justica-militar-e-corte-interamericana-discutem-direitos-humanos-na-ditadura. Acesso em 11/02/2015.

Nunes, Ramon de Souza. Justíça de Transição no Brasil. p.99/100. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 / Emílio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (organização). – Belo Horizonte : Initia Via, 2014.

OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Edusc, 2005.

Fonte real: SELIGMANN – SILVA, Márcio. Anistia e (in) justiça no Brasil: o dever de justiça e a impunidade. Literatura e Autoritarismo, Memórias da Repressão, n9, 2006. p. 04. Fonte que usei: As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade Construindo a memória social sobre  o período militar no Brasil

Ana Paula Ferreira de Brito; Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

  Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001.

Justiça de Transição nos 25 anos  da Constituição de 1988 – EmílioPelusoNederMeyer e MarceloAndradeCattonideOliveira. Belo Horizonte 2014. Editora Initia Via.

  Caravanas da anistia : o Brasil pede perdão /organização, Maria José H. Coelho, Vera Rotta. –  Brasília, DF : Ministério da Justiça ; Florianópolis: Comunicação, Estudos e Consultoria, 2012. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em 15 de janeiro de 2015.

Ana Paula Ferreira de Brito e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira. As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade Construindo a memória social sobre  o período militar no Brasil.

Relatório da comissão de anistia.

  http://oglobo.globo.com/brasil/50-anos-depois-conservadores-tentam-reeditar-marcha-da-familia-com-deus-pela-liberdade-11918175. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/03/manifestantes-se-reunem-para-nova-versao-da-marcha-da-familia-em-sp.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/02/justica-militar-e-corte-interamericana-discutem-direitos-humanos-na-ditadura. Acesso em 11/02/2015.

Nunes, Ramon de Souza. Justíça de Transição no Brasil. p.99/100. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 / Emílio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (organização). – Belo Horizonte : Initia Via, 2014.

Superando a Impunidade na América Latina. (página 228).

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NAZÁRIO, Geizilaine Camila Silva Rezende Oliveira. Uma interpretação da justiça de transição brasileira à luz do sistema interamericano de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5262, 27 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56230. Acesso em: 23 abr. 2024.

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