Poucos dias atrás, deparei-me com uma louvável notícia advinda das decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Fazendo cumprir com seu título de Corte Cidadã ou Tribunal da Cidadania, o STJ, por meio do entendimento firmado pelo colegiado da Quarta Turma, acolheu pedido de modificação do prenome (“primeiro nome”) de transexual, bem como do seu gênero, sem que este precisasse ser submetido à intervenção cirúrgica para retirada do seu órgão genital masculino a fim de possibilitar a modificação do seu sexo no registro civil.
Em outras palavras, o (ou, agora, “a”) transexual que deu origem ao processo conseguiu modificar seu sexo no registro civil de nascimento sem ter se condicionado à uma cirurgia de mudança de gênero (“adaptação” do órgão sexual masculino para o feminino, no caso).
A tese vencedora foi do Relator do processo, Ministro Luís Felipe Salomão. A ação subiu ao STJ a partir do Recurso Especial contra a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Estado de onde a demanda originou-se, pois negou, em primeira instância recursal, o direito de mudança do sexo no registro civil, autorizando, somente, a mudança do prenome.
É digna de aplausos a referida decisão!
Consegue perceber a relevância social que essa decisão pressupõe? Essa é uma vitória para aqueles que são “subju(l)gados” pela sociedade massacrante e que, por isso, vivem à margem, sofrem calados.
Em razão disto, resolvi escrever sobre um tema diferente do usual, mas de grande importância. O STJ reconheceu, sobremaneira, que hábitos e costumes da sociedade se modificam e evoluem, e cabe ao Judiciário, quando o Legislativo e o Executivo não o fazem, observar/extrair essas sutilezas sociais.
QUAIS FORAM OS FUNDAMENTOS USADOS PELA DECISÃO DO STJ (Ministro Luís Felipe Salomão e Ministra Nancy Andrighi)
A decisão que se sagrou vencedora no processo tem total fundamento e encontra sua base em preceitos fundamentais da nossa sociedade.
Já se sabe que o prenome e o sobrenome de alguém, hoje, não é a única forma de identificá-lo (la). Apesar de a Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) estabelecer que o nome é imutável, o parágrafo único, do art. 55 e o art. 58, ambos da própria lei, oportuniza/autoriza a modificação quando do nome resultar situações vexatórias, expor o indivíduo ao ridículo ou fazê-lo sofrer degradação ou preconceito social.
No caso de um transexual, entende-se que, geralmente, não há identidade entre como a pessoa se vê, psíquica e emocionalmente, e o seu sexo biológico (como nasceu).
Foi exatamente neste tocante que o Ministro Relator Luís Felipe Salomão encontrou sustento à sua decisão. Tanto que, analisando os conceitos de sexo, identidade de gênero e orientação sexual, percebeu, no caso por ele relatado, que havia uma desconexão entre como o transexual se via e como se julgava ser e seu gênero de nascimento.
O que o douto Ministro fez foi buscar uma forma de adequar os sentimentos e avaliações internas do transexual ao seu sexo psicológico. Daí que, independentemente da regra da Imutabilidade do Nome, valeu-se da possibilidade de alteração do nome para os casos de situações vexatórias ou de degradação social, como base para acatar a justificativa da divergência entre o nome e a aparência física do indivíduo a fim de possibilitar a modificação, também, do gênero no assentamento civil.
Acrescentou, ainda, que todos nós temos direito à felicidade, direito inerente à dignidade da pessoa humana, fundamental a todos, indistintamente, de modo que apenas a mudança no prenome do transexual continuaria a divergir com a identidade do indivíduo, permanecendo sujeito aos constrangimentos da vida social. Vejamos o que o Ministro disse na íntegra:
“Se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante do registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se, a meu juízo, flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade”
Em outra oportunidade, a Ministra Nancy Andrighi, representante vanguardista em diversas decisões do STJ, entendeu que, em outros tempos, o registro civil baseava-se no nome e no sexo (no órgão sexual), apenas. Todavia, com as inovações tecnológicas e científicas, vários outros fatores servem para identificar o sexo de alguém, motivo pelo qual o sexo aparente não deve limitar a identificação da pessoa.
Fatores psicológicos, familiares, culturais, sociais, integram o arcabouço da identidade do ser humano, de modo que contextos psíquicos e comportamentais externam a realidade biológica do indivíduo, cabendo ao Estado conceder meios e formas necessárias para que o cidadão tenha uma vida digna em sociedade, tal como a modificação do sexo em seu registro civil.
Para o ou a transexual, é alcançar aquilo que tanto almeja: ser reconhecido (a) e respeitado (a) civilmente como que ser visto (a), objetivando evitar novos constrangimentos, preconceitos e infortúnios cotidianos.
Busca-se, assim, ratificar que seu nome social, ou seja, como o (a) transexual é chamado (a) cotidianamente em seu ciclo familiar, de trabalho, de amigos, em repartições públicas etc., não contraponha o seu nome registrado oficialmente, visto que este não reflete sua identidade de gênero, não reflete como se enxerga perante o mundo.
Em outra passagem, o Ministro Luis Felipe Salomão realça que não é porque a pessoa não tem condições financeiras suficientes ou que está aguardando anos na fila do SUS que o STJ vai se eximir de admitir o direito mínimo ao cidadão de bem, que apenas busca dignidade, igualdade e respeito, direitos básicos de uma sociedade democrática.
Em pensar que, nas décadas passadas, nem sequer se discutia a possibilidade de alguém mudar o gênero do nome no registro civil (do masculino para o feminino, ou vice e versa), sob a singela justificativa de que esse era considerado imutável por força da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).
Vivemos em tempos diferentes dos passados e, cada vez mais, complexos, integrando culturas, religiões, ideologias e, indiscutivelmente, escolhas sexuais e de gêneros, cada mais diversificadas.
É o multiculturalismo em todas as suas instâncias, tomando conta do enredo do cotidiano e cabe a cada um de nós aceitar o outro, independente de suas opções, pois é assim que se vive numa democracia verdadeira. Do contrário, “viv(emos)eremos” em uma democracia às escuras, de fachada, de mera nomenclatura.
COMO MODIFICAR O SEXO NO REGISTRO CIVIL?
Analisando casos de notório conhecimento, podemos afirmar que a mudança no prenome não possui grandes objeções. Por outro lado, a mudança do sexo no assentamento civil merece atenção especial, pois cada caso ressalta suas especificidades, de modo que a decisão tomada pela Quarta Turma do STJ não vale como regra para toda e qualquer situação.
O STJ já teve a oportunidade de se manifestar em casos semelhantes ao descrito acima, de modo que, em todos eles, a parte requerente informou laudos psíquicos, avaliações psicológicas, testemunhos, documentos, fotos, a comprovação de utilização de hormônios femininos durante anos, além de cirurgias para adequar a aparência à realidade psíquica.
É obrigatório o ajuizamento de AÇÃO JUDICIAL, da qual fará parte o Ministério Público, tendo de estar o (a) interessado (a) devidamente representado (a) por um ADVOGADO.
Isto porque, por força daquela Lei de Registros Públicos, a mudança pela via administrativa ainda não é possível, apesar de já haver, tramitando no Congresso Nacional, Projeto de Lei que visa discutir esta e outras matérias (Projeto de Lei nº 5002/2013).
É preciso comprovar a divergência entre a identidade psicológica e física com os dados constantes no assentamento civil (no registro), através de documentos, laudos e avaliações psicológicas, testemunhos etc.
Após a sentença do juiz, autorizando a modificação do prenome e do sexo no registro civil da pessoa, transitar em julgado, será averbado no Cartório de Registro Civil.
CONCLUSÃO:
Fica aqui meu registro e apreço pelo entendimento da Quarta Turma do STJ e pela louvável relatoria no processo pelo Ministro Luís Felipe Salomão, sem tirar o mérito de outras decisões vanguardistas, como da Ministra Nancy Andrighi, Ex-Ministro Noronha e Ex-Ministro Direito, entre outros.
Que a evolução positiva faça parte do nosso cotidiano forense e que decisões como essas auxiliem no papel do ADVOGADO: a busca dos direitos dos necessitados, dos incapacitados, dos não legitimados, indistintamente. Esse é o nosso papel social!
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