Testamento vital em face do ordenamento jurídico brasileiro

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Trata-se de análise sobre o instituto do Testamento Vital perante o ordenamento jurídico brasileiro.

RESUMO: O testamento vital, objeto do presente artigo científico – cujo intento é abordar o referido tema que é pouco tratado no Brasil –, não possui previsão legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro, porém, seu amparo encontra-se na análise de normas constitucionais previstas no mesmo, bem como na interpretação de princípios que guarnecem direitos e garantias individuais. Legitimou-se, por sua vez, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), cuja regulamentação do tema possibilitou que o paciente registre seu testamento vital no prontuário médico, de forma a mudar a conduta do profissional da área quanto aos pacientes em quadro de estado terminal. Portanto, não restam dúvidas quanto a validade do testamento vital no Brasil, não obstante a ausência de previsão legal no país, pois examina-se à luz do direito comparado, já que encontra guarida em diversos outros países, a exemplo da Argentina, Alemanha, França, Espanha, Holanda, Estados Unidos, dentre outros. No mais, o referido instituto, por meio do princípio da dignidade da pessoa humana – que norteia o Estado Democrático de Direito o qual a sociedade está inserida –, justifica, por si só, a aplicação do testamento vital em determinados casos tratados no Brasil. No entanto, é inegável a necessidade de tal instituto ser reconhecido por lei no ordenamento jurídico brasileiro, pois, carecendo de previsão legal expressa, dificilmente conseguirá atingir a validade e eficácia que faz jus.

Palavras-chave: Testamento Vital; Dignidade da pessoa humana; Constituição Federal, Princípio da autonomia privada.

ABSTRACT: The livin will, the object of the present scientific article, whose intention is to approach the subject that is not very treated in Brazil. There is no legal prediction contained in the Brazilian legal system, however, its support is in the analysis of constitutional norms foreseen in the same, as well as in the interpretation of principles that strengthen individual rights and guarantees. Legitimized by the Conselho Federal de Medicina (CFM), whose regulation of the subject makes it possible for the patient to register his / her living will in the medical record, in order to change the conduct of the specialized professional, for the patients in a terminal condition. Therefore, there is no doubt as to the validity of the living will in Brazil, it is not the absence of legal prediction in the country, since it examines the light of comparative right, since it finds shelter in several other countries, such as Argentina, Germany, France, Spain, the Netherlands, the United States, among others. No longer exist, the mentioned institute, by means of the principle of the dignity of the human person - which guides the Democratic State of Law by means of the principle of the dignity of the human person - which guides the Democratic State of Law in which a society belongs, justifies, by itself, the application of the living will in certain cases treated in Brazil. However, it is undeniable the need for such an institute to be recognized by law in the Brazilian legal system, suspended, express legal prediction research, difficult to achieve, evaluate validity and effectiveness that is justified.

Keywords: The livin will, Dignity of human person, Federal Constitution, Principle of private autonomy.


INTRODUÇÃO

O surgimento do testamento vital se deu pela necessidade de regulamentação de um instituto que fizesse prevalecer a vontade de pacientes em estado terminal – porém incapazes de manifestarem esta – de como querem ser tratados caso um dia encontrem-se nesta situação, ou seja, sobre quais procedimentos médicos querem ser submetidos e quais não querem.

Fazer prevalecer a vontade desses pacientes perante os tratamentos médico-hospitalares é simplesmente assegurar a dignidade da pessoa humana, a autonomia privada e a proibição constitucional de tratamento desumano, princípios norteadores da Carta Magna, inseridos em cláusula pétrea, mais especificamente no art. 5º da Constituição Federal, dispostos em seus incisos.

Justifica-se, o referido testamento, no sentido de que um paciente em estado terminal já está sofrendo o bastante para se submeter a procedimentos médicos que causarão sofrimentos ainda maiores e desnecessários, visto que já se encontra no fim da vida e sem possibilidade de cura, não havendo por que prolongar ainda mais seu padecimento.

No entanto, não há positivação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, e a ausência de previsão legal expressa faz com que o mesmo não possua a eficácia, na prática, que deveria ter, causando insegurança em quem escolhe fazê-lo, já que o paciente não sabe se terá a sua vontade efetivada.

Ainda que o Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução nº 1.995/12, tenha regulamentado esse instituto – o que caracteriza grande avanço no país – insta salientar a necessidade de regulamentação do tema por meio da edição de uma lei específica, pois só assim evitaria questionamentos sobre a validade do testamento como forma de justificativa para o seu descumprimento, e, ainda, regulamentaria questões sobre a elaboração do mesmo.


TESTAMENTO VITAL

TESTAMENTO: NOÇÕES GERAIS, CARACTERÍSTICAS E ESPÉCIES

O Código Civil de 2002, no caput de seu artigo 1.857, dispôs sobre o testamento, cujo texto diz que “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”, mas não trouxe sua definição, cabendo à doutrina conceituar o testamento. Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves (2010) dispõe que “o testamento constitui ato de última vontade, pelo qual o autor da herança dispõe de seus bens para depois da morte e faz outras disposições”.

Assim sendo, pode-se concluir, por meio das características do testamento, que este é um negócio jurídico unilateral, indelegável, personalíssimo, gratuito, causa mortis, revogável, formal e solene.

Quando se fala em negócio jurídico unilateral, significa que para ter efeitos jurídicos, se faz necessária apenas uma única vontade, não precisando da autorização de quem quer que seja para testar, valendo-se tão somente a vontade do testador; indelegável porque a lei proíbe que seja arbitrado por terceiros, ou seja, sua responsabilidade não pode ser transferida para outra pessoa, mesmo que por procuradores ou representantes legais; personalíssimo porque limita-se única, exclusiva e diretamente à vontade do testador; gratuito porque não existe qualquer contraprestação por parte dos prestigiados; causa mortis pois regulamenta o patrimônio de uma pessoa após sua morte, produzindo efeitos somente após a abertura da sucessão; revogável porque o testador pode modificar o que foi manifestado; formal e solene pois sua validade condiciona-se ao preenchimento dos requisitos previstos na lei, e no caso de não cumprimento das formalidades e solenidades, poderá acarretar na nulidade do testamento. Assim sendo, é formal porque exige forma prescrita em lei, e refere-se a ter que ser escrito. É solene, por sua vez, porque pode ser público ou particular, referindo-se à instrumentalização do testamento.  

E, ainda, de acordo com o Código Civil de 2002, a sucessão testamentária possui dois grupos de testamentos: os ordinários e os especiais. Os testamentos ordinários são compostos pelos testamentos: público, cerrado e particular. Já o segundo grupo, determinado de testamentos especiais, são compostos pelos testamentos: marítimo, aeronáutico e militar.

Cumpre ressaltar, ainda, que a pessoa capaz que decide testar, deve se limitar aos tipos de testamentos previstos em lei, não podendo criar um novo testamento, pois os artigos 1.862 e 1.888 do Código Civil dispõem sobre rol taxativo dos testamentos ordinários e especiais, não podendo ser criado qualquer outro testamento que não esteja previsto nesse rol.


TESTAMENTO VITAL

Ressaltou-se, no tópico anterior, que a enumeração dos tipos de testamento é taxativa, não sendo possível a elaboração de qualquer testamento que não esteja previsto nesse rol. Assim sendo, cumpre aduzir que a nomenclatura “testamento vital” é equivocada, pois não se trata de um testamento cuja produção de efeitos é post mortem, já que o instituto ora analisado possui eficácia em vida, e, devido a isso, é sugerido pela doutrina que tal documento deveria ser chamado de “diretivas antecipadas da vontade” ou “declaração vital”. Portanto, apesar da semelhança com o testamento sucessório, por também se tratar de ato personalíssimo, unilateral e revogável, com este não deve ser confundido. No entanto, o testamento vital pode ser ligado ao Direito Sucessório, como será estudado posteriormente.

Define-se o instituto ora analisado como uma declaração de vontade emitida por pessoa capaz, em pleno gozo de suas capacidades mentais, cujo conteúdo trata-se de autorizar ou restringir sua submissão perante determinados cuidados, tratamentos e procedimentos médicos, quando encontrar-se impedido de manifestar sua vontade – ou seja, incapaz –, devido a uma doença grave que acometeu ferozmente seu estado de saúde, deixando-o no vim de sua vida, sem perspectiva de melhora ou cura. Resumidamente, aqui, o paciente não quer ser submetido a determinados procedimentos médicos que vão prolongar sua vida, pois foi tão acometido por uma doença que não sobreviverá, independentemente do que a medicina possa fazer, e, assim sendo, prolongar sua vida lhe causaria ainda mais sofrimento, enquanto este, no fim de sua vida, não quer passar por martírios ainda maiores, sendo desnecessário ser submetido a medidas completamente inúteis para lhe dar uma cura, já que no seu caso isto seria humanamente impossível.

Como já aduzido anteriormente, o testamento vital não tem previsão legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro – o que caracteriza um retrocesso para o país –, devendo sua análise e validade se dar através da Resolução nº 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina e da análise de princípios jurídicos constitucionais.

Cumpre ressaltar que a referida Resolução expedida pelo Conselho Federal de Medicina, em janeiro de 2013, sofreu uma Ação Civil Pública (0001039-86.2013.4.01.3500), cuja pretensão do Ministério Público Federal do Estado de Goiás era de ver suspensa a aplicação da aludida Resolução, e que posteriormente fosse declarada inconstitucional. No entanto, em janeiro de 2014, a ação foi julgada improcedente, pois entendeu o Nobre Magistrado Eduardo Pereira da Silva, que o Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.995/12, respeitou a autonomia da vontade (princípio implícito no caput do artigo 5º da CF), o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF) e a proibição de submissão de quem quer que seja a tratamento desumano e degradante (artigo 5º, III, da CF).

Foi tutelado, o testamento vital, por diversas legislações estrangeiras, sendo elas: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México, Porto Rico, Portugal, União Europeia e Uruguai. Em Portugal a Lei nº 25, de 16 de julho de 2012 entrou em vigor, regulamentando de forma a autorizar a utilização de “Diretivas Antecipadas da Vontade”. Já na Espanha o referido documento denomina-se de “Vontades Antecipadas”. A Alemanha possui em seu ordenamento um instituto chamado Patientenverfügungen, previsto em seu Código Civil, que se equivale às diretivas antecipadas de vontade.

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Historicamente falando, o testamento vital originou-se dos Estados Unidos, no ano de 1967, através de um advogado de Chicago, Luis Kutner, que elaborou um documento para um cliente que recusava receber determinados tratamentos se um dia sobreviesse enfermidade terminal, surgindo, desta forma, o famoso termo living will, sendo o testamento vital propriamente dito.

Salienta-se que o testamento vital não possui forma prescrita pelo Conselho Federal de Medicina, não havendo um padrão a ser respeitado, e, sendo assim, seus requisitos e formalidades são avaliados com base na legislação estrangeira, e também pelo Código Civil nas exigências do testamento particular, mas não “ao pé da letra”. Pontua-se, portanto, a maior necessidade para validade do testamento, sendo a capacidade – conforme critérios da lei civil –, ou seja, que o paciente tenha atingido 18 anos e que não se enquadre em nenhuma situação de incapacidade prevista no Código Civil.

Quanto ao seu registro, por falta de previsão, não se trata de requisito indispensável, mas acarreta em maior credibilidade ao documento. Entende-se que a lavratura da escritura pública por meio de tabelião de notas é de extrema importância, visto que garante maior efetividade do testamento, por estarem os tabeliães revestidos de fé pública, e feito perante estes, a vontade do declarador será tida como verdadeira e o documento permanecerá arquivado no cartório, diminuindo o risco de ser extraviado. E, ainda quanto ao registro, é necessário que o testamento vital seja anexado ao prontuário médico do paciente.

Quanto ao prazo de validade, o testamento vital vale até que o paciente o revogue, assemelhando-se, nesse caso, com o testamento sucessório, podendo ser feita analogia ao artigo 1.858 do Código Civil, que estabelece que “o testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo”, e, portanto, não se faz necessário estabelecer um prazo de validade para o testamento vital. Observa-se, porém, que assim como no testamento sucessório, tanto para testar como para revogar o testamento vital, é imprescindível que o paciente esteja no pleno gozo de suas faculdades mentais, de modo que saiba exatamente o que está fazendo.

Recomenda-se, também, a consulta de um médico de confiança, para que lhe explique quais são os procedimentos ordinários e os procedimentos extraordinários (ou seja, aqueles que objetivam apenas prolongar a vida do paciente, tendo como exemplo a utilização de desfibrilador). No entanto, ressalta-se que existem cuidados paliativos, e estes não podem ser recusados – nem pelo paciente e nem pelo médico –, já que visam melhorar a qualidade de vida do paciente até a hora de sua morte.  

E, ainda, recomenda-se a consulta com um advogado especialista no assunto, pois além de tratar de questões médicas, o testamento vital trata também de questões jurídicas, fazendo exigir o respaldo de um advogado no momento em que irá elaborá-lo.

Sobre o seu conteúdo, conterá disposições de recusa e/ou aceitação de tratamentos que prolonguem, de forma artificial, a vida do paciente, bem como disposição sobre doação de órgãos e, ainda, a nomeação de um representante. Quanto às disposições de recusa e/ou aceitação de determinados procedimentos, ressalta-se mais uma vez que o paciente não pode dispor acerca de cuidados paliativos, pois estes garantem o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Posto isto, somente serão válidas disposições de recusa de tratamentos inúteis e desnecessários frente à situação do paciente. Já sobre doação de órgãos, entende-se inválida, pois o testamento vital possui efeitos inter vivos, e para a doação de órgãos, basta seguir os ditames previstos na Lei 9.434/97 (alterada pela Lei 10.211/01).

Salienta-se que o testamento vital, em nenhuma hipótese, poderá conter disposições contrárias ao nosso ordenamento jurídico, devendo respeitar as leis e suas disposições para que tenha validade e eficácia. Se um testamento tratasse sobre a eutanásia, como por exemplo, o desligamento de aparelhos ou a suspensão de tratamentos ordinários, este seria inválido e ineficaz, pois a eutanásia é proibida no Brasil.

Por fim, importante dizer que o paciente deve ser devida e inequivocamente sempre informado acerca de sua real situação, cabendo ao médico o papel de mantê-lo ciente sobre tudo o que está acontecendo, tanto sobre o seu estado de saúde, como também aos possíveis métodos que poderá ser submetido.

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Sobre os autores
JOÃO BATISTA ARAUJO JUNIOR

Professor de direito civil desde 1988, exerce advocacia desde 1987, bacharel da Faculdade de Direito Laudo de Camargo (1986) e mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (2007)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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