Testamento vital em face do ordenamento jurídico brasileiro

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A ATUAÇÃO DO TABELIÃO DE NOTAS NO TESTAMENTO VITAL

Segundo o Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, entre 2010 (que em abril do referido ano entrou em vigor o novo Código de Ética Médica) e 2016, o número de testamentos vitais registrados em cartório cresceu, em média, 57% ao ano, até mesmo pelo fato de o testamento vital conter disposições imprescindíveis, e que em determinados casos vão contra a vontade de entes próximos do declarante, o que justificaria, por si só, o número crescente da quantidade de lavratura desse documento em face do tabelião de notas, pois muitas vezes as famílias negligenciam a vontade do paciente por não saberem lidar com a situação.

Por ser inadequada a expressão “testamento vital”, os Tabelionatos de Notas tem registrado o documento como “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”, que é considerado como uma escritura declaratória.

Com a lavratura do documento no cartório, o paciente sente-se seguro por saber que terá sua vontade resguardada, uma vez que o tabelião de notas é dotado de fé pública, garantindo maior efetividade quanto a vontade do declarante, já que o documento será revestido de presunção juris tantum, isto é, até que se prove o contrário, haverá a presunção de veracidade. A fé pública objetiva-se a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia de atos jurídicos levados até determinado tabelionato de notas. Portanto, conclui-se que o papel do tabelião de notas é acautelar os direitos individuais das pessoas, e assim o faz quando lavra a “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade”, ou seja, o testamento vital, garantindo ao declarante uma certeza de veracidade.

No que se refere à lavratura do testamento vital, este deve conter alguns elementos, como a fundamentação legal, o tipo de tratamento de saúde, a autorização ou recusa de submissão a determinados procedimentos médicos, sejam diagnósticos ou terapêuticos, a disposição sobre o próprio corpo – isto é, poderá constar no documento se é doador de órgãos ou não –, bem como a nomeação de um representante legal para fazer cumprir estas diretivas.

Dispensa-se, no ato da lavratura, a presença de testemunhas. E, como já discutido anteriormente, o testamento vital assemelha-se ao testamento sucessório quanto a possibilidade de ser revogado.

Por fim, cumpre aduzir que o novo Código de Ética Médica permite aos médicos a prática da ortotanásia, que se trata do não prolongamento artificial e inútil do processo de morte, ou seja, o médico, ao analisar o caso concreto e sua necessidade, bem como a autorização ou não do paciente, poderá deixar de empregar procedimentos e técnicas terapêuticas que sejam inúteis no prolongamento da vida daquele – e, muito pelo contrário, que provavelmente lhe trariam ainda mais sofrimento. O médico, para que assim possa proceder, necessita da autorização de seu paciente ou representante legal, de forma inequívoca, e esta se dá por um documento: o testamento vital, ou a “Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade” – expressão que tem sido utilizada pelos cartórios ao lavrarem o documento –, que se realizadas em Tabelionatos de Notas, por meio de instrumento público, garantem maior segurança tanto ao paciente, como ao médico, por tornar o documento dotado de veracidade, tornando-o mais eficaz para o cumprimento da vontade do declarante.


INVIABILIDADE DA LAVRATURA DO TESTAMENTO VITAL POR ESCRITURA PÚBLICA

Embora se entenda que a lavratura do testamento vital por meio de escritura pública lhe traria, de certa forma, maior segurança e efetividade, ressalta-se, todavia, que em determinadas situações a sua feitura é totalmente inviabilizada, sendo viável que o faça somente da forma mais simples possível, diante da situação que o paciente se encontra.

Quando pensamos na lavratura do referido testamento pelo tabelião de notas, de imediato imaginamos a situação de uma pessoa que se encontra estável, distensa e sem qualquer problema de saúde iminente, que escolhe, num determinado dia e momento, elaborar um testamento vital para utilizar quando – e se – estiver acometido por doença que seja capaz de lhe tirar a vida, ou seja, quando se encontrar em estado terminal.

No entanto, cumpre acentuar que nem sempre um indivíduo sentirá a necessidade da elaboração do testamento vital quando estiver em uma situação amena, sem qualquer risco de vida, sendo completamente cognoscível que é bem mais razoável que um paciente, já no hospital, enfermiço e acamado, opte por elaborar o referido instituto, e não quem não está acometido por alguma doença.

Assim sendo, encontrando-se o paciente hospitalizado, como seria possível a lavratura do testamento vital por escritura pública? Indubitável que nestas circunstâncias é inteiramente inviável a atuação do tabelião de notas, devendo o testador utilizar-se da maneira mais simples, acessível e rudimentar que houver no momento, inviabilizando, por completo, que se lavre em cartório seu testamento, posto que este defronta-se em um quadro clínico já grave.

Desse modo, entende-se que a lavratura do testamento por meio do tabelião de notas, na maioria dos casos, torna-se irrealizável, sendo preferível que o paciente elabore seu testamento vital sem qualquer formalidade – que este já não exige, por sua vez – e o entregue para um responsável nomeado, garantindo sua execução.


O TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: POSSIBILIDADE DE SUA APLICAÇÃO

Ainda que inexista norma jurídica acerca do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, sua validade tem como base a interpretação e a análise de princípios dos princípios constitucionais e, ainda, de normas infraconstitucionais.

O princípio da dignidade da pessoa humana, como será demonstrado adiante, possui papel de extrema importância na validade do testamento vital, o que se justifica pelo simples fato de que esse instituto é garantidor da dignidade humana quando autoriza um indivíduo a decidir sobre os tratamentos e procedimentos médicos que deseja ou não ser submetido. Aqui, valoriza-se a morte com dignidade, pois o paciente já está em estado terminal, e submetê-lo a procedimentos inúteis só causaria ainda mais sofrimento, e poupa-lo de tal, respeitando sua vontade anteriormente expressa, só faz cumprir o princípio norteador da nossa Constituição: a dignidade da pessoa humana.

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Não há que se falar em conflito entre testamento vital e o direito à vida, pois este faz presumir, também, uma morte digna, e não viver a qualquer custo, quando não há qualquer possibilidade – por menor que seja – de reabilitação do paciente.

Acima, quando falamos sobre normas infraconstitucionais, o artigo 15 do Código Civil serve de exemplo quando estabelece que ninguém deve ser constrangido a submeter-se, com riso de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica.

Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2014, tratou do assunto em seu enunciado nº 37, na I Jornada de Direito da Saúde – o que caracteriza avanço de extrema relevância – dispondo que:

As diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.

Mais uma vez, agora por meio de um digníssimo órgão do Poder Judiciário, o testamento vital teve reconhecimento de sua validade, legalidade e importância.

Desse modo, embora não faltem argumentos jurídicos para a aplicação e validade do testamento vital, vê-lo previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, sem dúvidas, traria mais segurança a quem escolhe elaborá-lo e aos médicos, uma vez que não existiriam mais dúvidas sem respostas acerca do assunto, e, ainda, o tornaria mais conhecido, visto que a falta de previsão legal acarreta indiretamente no desconhecimento do referido instituto. Inegável, portanto, que a inclusão do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro o tornaria mais seguro e procurado, garantindo-lhe maior credibilidade.


PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A República Federativa do Brasil funda-se no princípio da dignidade da pessoa humana, que é norteador da Carta Magna, o qual encontra-se expressamente previsto no artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988.

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 III - a dignidade da pessoa humana;”.

O Estado tem o dever de assegurar aos indivíduos uma vida digna, com respeito, bem como seu direito de liberdade garantido, de modo que tenham capacidade para determinar suas próprias ações, e é nisso que se baseia o testamento vital, pois ter uma vida com dignidade não é apenas estar vivo, é ter condições de viver de forma humanitária e plena, tendo garantido seu direito ao acesso a condições existenciais mínimas, podendo usufruir de seu livre arbítrio, desde que respeitando o ordenamento jurídico brasileiro.

Ainda nesse contexto, o referido princípio assegura que os indivíduos não sejam submetidos a qualquer ato degradante ou desumano, uma vez que a qualidade de vida é requisito imprescindível, não sendo possível que lhes seja retirada ou que abram mão.

O princípio da dignidade da pessoa humana serve de alicerce para a interpretação das normas jurídicas e dos demais princípios, e também do caso concreto, e qualquer ato contrário a esse princípio deve ser repudiado e deverá sofrer as sanções cabíveis.

Assim sendo, da mesma forma que o princípio garante uma vida digna, deve haver uma ampliação em sua interpretação para entender, também, que é garantido aos indivíduos o direito a uma morte com dignidade, e mesmo em estado terminativo, no processo de morte, o médico, enfermeiro ou qualquer outro interventor que venha a afetar a decisão do paciente em não ser submetido a determinados tratamentos, sendo contrário à sua decisão previamente estabelecida, cometerá ato contra a própria vida, ferindo, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, norteador da Constituição, bem como demais princípios expressamente previstos.

Cumpre ressaltar que o instante da morte é o último ato da vida, e assim como essa deve ser respeitada e levada com dignidade, a morte também, não devendo um paciente ter sua vida prolongada artificialmente se não for de sua vontade, e qualquer ato que contrariar sua decisão estará infringindo um direito fundamental, pois a partir do momento que não se pode mais viver com dignidade, não faz qualquer sentido querer manter a vida de alguém forçosa e inutilmente, contrariando a vontade do maior atingido, que é o próprio paciente. O íntegro e correto, nesse caso, é respeitar o que o mesmo estabelecendo enquanto estava no pleno gozo de suas faculdades mentais, lhe garantindo seu direito a morrer com dignidade – viabilizando a ortotanásia, que caracteriza-se a morte digna, sem intervenção médica que seja inútil –, pois viver com ela já não é mais uma opção.

Portanto, o testamento vital serve como garantia a um indivíduo que o faz enquanto plenamente capaz, de que terá direito à uma morte digna, que respeite os limites estabelecidos pelo mesmo e respeite sua decisão, sob pena de infringir o princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro, até porque alguns procedimentos são demasiados invasivos e não trariam, de forma alguma, benefícios para o quadro do paciente – que já se encontra em estado terminativo.

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Sobre os autores
JOÃO BATISTA ARAUJO JUNIOR

Professor de direito civil desde 1988, exerce advocacia desde 1987, bacharel da Faculdade de Direito Laudo de Camargo (1986) e mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (2007)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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