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A audiência de custódia e a dignidade do policial

30/04/2018 às 16:00
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Diante da afirmação do preso de que sofreu tortura ou maus tratos por parte de policiais, juiz e promotor devem estar atentos para colher outros elementos de prova que a corroborem e evitar uma possível situação de denunciação caluniosa que prejudique a polícia.

1. Introdução

A audiência de custódia já é uma realidade emergente em todos os Estados e no Distrito Federal.

O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecida como Pacto de San José, e do Pacto dos Direitos Civil e Políticos, que estabelecem a obrigatoriedade de apresentar o preso à presença de um juiz. Esses tratados possuem caráter supralegal, conforme interpretação consolidada no Supremo Tribunal Federal, ao §2º, do art. 5º, da Constituição Federal.

Nesse viés, em fevereiro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e o TJSP, lançou o projeto Audiência de Custódia, que foi sendo ampliado para outros Estados, sendo que em 15 de dezembro de 2015, o CNJ editou a Resolução n. 213, que regulamentou a audiência de custódia em todo território nacional.

É importante destacar que a audiência de custódia visa à apresentação rápida do preso a um juiz. O objetivo é que ele seja entrevistado pelo juiz, momento que também serão ouvidas as manifestações do Ministérios Público, do advogado do preso ou da Defensoria Pública. Na audiência, o juiz deverá analisar se a prisão atendeu os aspectos da legalidade, da necessidade e da adequação para continuidade da prisão ou se deve conceder liberdade, com ou sem imposição de outras medidas cautelares. Ademais avaliará eventual ocorrência de tortura ou maus-tratos e outras irregularidades durante a prisão.[1]

Desse modo é evidente que a audiência de custódia visa a resguardar a dignidade do preso, enquanto sujeito de direitos e ser humano.

Noutro norte, o presente estudo propõe analisar, como deve ser procedido na audiência de custódia, a luz da legislação brasileira, quanto a eventuais reclamações do preso, em desfavor dos executores da prisão e/ou responsáveis pela sua custódia.

Para tanto, se explanará brevemente sobre a atribuição do Ministério Público e sua fundamental atuação na audiência de custódia, para a avaliação da atuação dos policias, não somente como sujeito de deveres, mas, também de direitos, a fim de serem tratados dignamente, diante da árdua missão que exercem em defesa da sociedade.


2. A atuação do Ministério Público durante a audiência de custódia

A atuação dos membros do Ministério Público nas audiências de custódia foi disciplinada em âmbito nacional, por meio da Recomendação nº 28, de 22 de setembro de 2015, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que dispõe:

O Ministério Público brasileiro, observadas as disposições constitucionais e legais, adote as medidas administrativas necessárias para assegurar a efetiva participação de seus membros nas audiências de custódia, objetivando garantir os direitos individuais do custodiado e promover os interesses da sociedade, aderindo, ainda, aos termos de cooperação técnica firmados pelos respectivos tribunais. [2]

Depreende-se que a mencionada Recomendação foi devidamente motivada com justificativas atinentes a competência constitucional do Ministério Público, descritas nos artigos 127 e 129 da Constituição Federal, que estabelecem que o Ministério Público é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; e que tem por funções promover, privativamente, a ação penal pública e exercer o controle externo da atividade policial.

Desse modo a referida Recomendação aduz que cabe ao Ministério Público, na audiência de custódia, manifestar-se:

[...] sobre a conversão da prisão em flagrante em preventiva, opinar, concordando ou não, pela concessão de liberdade provisória com ou sem cautelares à pessoa detida e zelar para que a pessoa presa se manifeste apenas sobre seus dados pessoais e as circunstâncias objetivas que ensejaram a custódia [...] compete, ainda, adotar as medidas necessárias e pertinentes em eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. [3]

É possível, portanto identificar através da mencionada recomendação a imprescindibilidade do Ministério Público, na audiência de custódia, pois deverá se manifestar acerca da manutenção ou não da prisão, bem como, adotar as medidas pertinentes em decorrência de eventuais torturas ou maus-tratos, entre outras irregularidades na prisão.

Ocorre que de acordo o artigo 4º da Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015, do CNJ, a referida audiência deverá ser realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso o preso não tenha constituído defensor, entretanto, em seu parágrafo único, veda expressamente, a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação, na audiência.

Presam-se, portanto, em tese, os direitos do preso e garante-se um tratamento digno a este, com a presença, no ato da audiência de custódia, de um defensor, do Ministério Público e de um Juiz. No entanto, diante da restrição dos policiais responsáveis pela prisão ao referido ato, será indispensável a atuação do Ministério Público, não somente para avaliar a necessidade de manutenção ou não da prisão, mas, também sobre eventual reclamação do custodiado de torturas ou maus-tratos, entre outras irregularidades, supostamente cometidas pelos executores de sua prisão.

Destarte é necessário elucidar quais são as medidas necessárias e pertinentes que deverão ser adotadas pelo Ministério Público, diante das reclamações do preso em desfavor dos executores de sua prisão.

Inicialmente cabe destacar que o artigo 11 da Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015, do CNJ, elenca as providências a serem adotadas, pelo Juiz que está presidindo a audiência de custódia, diante da declaração do preso ou constatação, de tortura e mau tratos “in verbis”:

Art. 11. Havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado.

§ 1º Com o objetivo de assegurar o efetivo combate à tortura e maus tratos, a autoridade jurídica e funcionários deverão observar o Protocolo II desta Resolução com vistas a garantir condições adequadas para a oitiva e coleta idônea de depoimento das pessoas presas em flagrante delito na audiência de custódia, a adoção de procedimentos durante o depoimento que permitam a apuração de indícios de práticas de tortura e de providências cabíveis em caso de identificação de práticas de tortura.

§ 2º O funcionário responsável pela coleta de dados da pessoa presa em flagrante delito deve cuidar para que sejam coletadas as seguintes informações, respeitando a vontade da vítima:

I - identificação dos agressores, indicando sua instituição e sua unidade de atuação;

II - locais, datas e horários aproximados dos fatos;

III - descrição dos fatos, inclusive dos métodos adotados pelo agressor e a indicação das lesões sofridas;

IV - identificação de testemunhas que possam colaborar para a averiguação dos fatos;

V - verificação de registros das lesões sofridas pela vítima;

VI - existência de registro que indique prática de tortura ou maus tratos no laudo elaborado pelos peritos do Instituto Médico Legal;

VII - registro dos encaminhamentos dados pela autoridade judicial para requisitar investigação dos relatos;

VIII - registro da aplicação de medida protetiva ao autuado pela autoridade judicial, caso a natureza ou gravidade dos fatos relatados coloque em risco a vida ou a segurança da pessoa presa em flagrante delito, de seus familiares ou de testemunhas.

§ 3º Os registros das lesões poderão ser feitos em modo fotográfico ou audiovisual, respeitando a intimidade e consignando o consentimento da vítima.

§ 4º Averiguada pela autoridade judicial a necessidade da imposição de alguma medida de proteção à pessoa presa em flagrante delito, em razão da comunicação ou denúncia da prática de tortura e maus tratos, será assegurada, primordialmente, a integridade pessoal do denunciante, das testemunhas, do funcionário que constatou a ocorrência da prática abusiva e de seus familiares, e, se pertinente, o sigilo das informações.

§ 5º Os encaminhamentos dados pela autoridade judicial e as informações deles resultantes deverão ser comunicadas ao juiz responsável pela instrução do processo. [4]

Os incisos I a VI, do § 2º e o § 3º, do art. 11, da referida Resolução, descrevem as informações que deverão ser coletadas, com o devido respeito à vontade da vítima. Nesse sentido denota-se que cabe ao juiz coletar o maior número de informações, na audiência, inclusive quanto à existência de provas que corroborem a afirmação do preso de que sofreu tortura ou maus tratos pelos executores de sua prisão, para então requisitar a investigação dos relatos.

É nesse momento, que o Ministério Público deve intervir a fim de que sejam tomadas todas medidas necessárias e pertinentes, a fim de esclarecer se existem indícios mínimo que permitam a deflagração de um inquérito policial ou processo administrativo, para investigar os fatos registrados pela suposta vítima.

Para tanto deverá advertir o preso, quanto ao crime de denunciação caluniosa, em conformidade com o “caput” do art. 339 do Código Penal “in verbis”:

Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa. [5]

Assim, o Ministério Público como legítimo defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis deve se manifestar no ato da audiência de custódia, a fim de que sejam esclarecidos melhor os fatos pelo recluso, em conformidade com o art. 11, da Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015, do CNJ. Neste viés, se forem apresentados indícios mínimos para deflagrar uma investigação, como indicação dos autores, provas testemunhais, periciais ou documentais, as medidas pertinentes serão a instauração da apuração correspondente para apuração dos referidos fatos, bem como, adotar as providências cabíveis para incluir o preso em programa de proteção a vítima.

De outro modo, caso não tenha subsídios mínimos para deflagrar uma apuração, deverá solicitar ao Juiz, para que registre o fato em ata, em conformidade com § 3º, do art. 8º, Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015, do CNJ, e o preso também deverá ser denunciado pelo crime de calúnia, em conformidade com o “caput” do art. 138 do Código Penal “in verbis”: “Art. 138. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.” [6]


3. Considerações finais

A necessidade de respeitar os direitos do preso na audiência de custódia não anula os direitos dos servidores públicos, responsáveis pela execução da prisão e custódia do recluso.

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Assevera-se que o policial deve ser respeitado enquanto sujeito de direitos, não podendo a audiência de custódia servir como um ato coator, para aqueles que exercem sua profissão legitimamente.

Ressalta-se que o policial ao responder a um procedimento investigativo, sendo manifestamente inocente atenta contra o princípio constitucional da economicidade e da eficiência, pois há um ônus para o Estado, tanto com a respectiva apuração, quanto com o afastamento do policial de suas atividades ordinárias. Além disto, lhe causa um desgaste profissional, emocional e financeiro, tendo inclusive que arcar com os custos de um advogado, para sua defesa.

Assim, cabe ao Ministério Público, durante a audiência de custódia dentro de sua competência constitucional, além de atuar como garantidor dos direitos do preso, também resguardar os direitos dos policias, promovendo um tratamento digno a estes profissionais, que arriscam a sua própria vida, em defesa da sociedade, em homenagem ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III da Constituição Federal.

Por fim, a presente análise não teve como objetivo esgotar o tema, mas, estimular a reflexão neste prisma, com referência a audiência de custódia.


REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia. Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia>Acesso em: 18 Abr. 2018.

  • ______. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução Nº 213 de 15/12/2015. Disponível em:< http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059>Acesso em: 18 Abr. 2018.

  • ______. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Recomendação nº 28, de 22 de setembro de 2015. Disponível em:< http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3º-028-.pdf>Acesso em: 18 Abr. 2018.

  • ______. Código Penal. Disponível em:< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-norma-pe.html>Acesso em: 18 Abr. 2018.


Notas

[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia. Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia>Acesso em: 19 Abr. 2018.

[2] BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Recomendação nº 28, de 22 de setembro de 2015. Disponível em:< http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3º-028-.pdf>Acesso em: 18 Abr. 2018.

[3] BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Recomendação nº 28, de 22 de setembro de 2015. Disponível em:< http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3º-028-.pdf>Acesso em: 18 Abr. 2018.

[4] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução Nº 213 de 15/12/2015. Disponível em:< http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059>Acesso em: 18 Abr. 2018.

[5] BRASIL. Código Penal. Disponível em:< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-norma-pe.html>Acesso em: 18 Abr. 2018.

[6] BRASIL. Código Penal. Disponível em:< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-norma-pe.html>Acesso em: 18 Abr. 2018.

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Sobre o autor
Alex Sandro Zeferino

Graduado em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2004) e Curso de Formação de Oficiais (1996). Experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal. Possui como áreas afins Direito Penal Militar, Processual Penal Militar e Processo Administrativo. Pós Graduações: Especialização em Ciência Penais (mercado do trabalho e exercício do magistério superior) (2009), Polícia Comunitária (2009), Administração em Segurança Pública (2010) e Curso Superior de Polícia Militar com Titulação de Especialização lato sensu em Altos Estudos de Política e Estratégia na PMSC (2020).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZEFERINO, Alex Sandro. A audiência de custódia e a dignidade do policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5416, 30 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65546. Acesso em: 22 dez. 2024.

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