A responsabilidade jurídico penal do psicopata sob a ótica da legislação brasileira

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Principais aspectos relacionados com a sistemática da responsabilização penal do psicopata criminoso, à luz do atual ordenamento jurídico penal.

1 INTRODUÇÃO

O estudo sobre o transtorno de personalidade antissocial sempre mexeu com o imaginário da sociedade, porém grande parte jamais se preocupou em compreender a fundo a sistemática desse transtorno. É um grande desafio dentre os doutrinadores das grandes áreas responsáveis pelas pesquisas nesse tema, quais sejam a Psicologia Jurídica, a Psiquiatria Forense, a Criminologia e o Direito, primeiramente identificá-los e, após, dispensar a eles o tratamento correto, tanto clínico quanto legal.

A pesquisa se divide em quatro planos: No primeiro capítulo, será pormenorizada a teoria do crime em um arcabouço histórico, com a breve exposição dos três conceitos existentes, sendo que o conceito analítico aplicável à legislação penal brasileira. Junto a ela, abordaremos o fato típico – conduta humana, comissiva ou omissiva, subsumida à norma penal; o ilícito, que é a contrariedade à norma e a culpabilidade, destaque dessa pesquisa, que se traduz no senso de reprovação social da conduta ilícita praticada pelo agente.

No segundo capítulo, aventaremos a visão criminológica do delito e delinquente, sendo o primeiro tratado como um problema social e o segundo (enfoque do trabalho) a sua atuação no decorrer dos anos, como um ser impulsionado pelos seus desejos ou por sua total distorção do mundo. As Escolas Penais, trará uma luz aos estudos, por ser crucial para a análise da personalidade do delinquente destrinchando seus pensamentos para se chegar aos conceitos arraigados pelos doutrinadores.

No terceiro capítulo, exploraremos o psicopata, que é o cerne deste trabalho, caracterizando sua personalidade, com os aspectos psicológicos, biológicos e experiências que refletem na sua prática criminosa, atestando também, que há uma linha tênue entre a doença mental e o transtorno supracitado.

No quarto e último capítulo, analisar-se-á a figura do psicopata no processo penal, mediante submissão ao exame médico-legal de verificação de insanidade mental, traduzido no Incidente de Insanidade Mental, com respaldo no artigo 149 do Código de Processo Penal, bem como a aplicação da pena nos diversos casos de responsabilidade penal que esse indivíduo portador de transtorno de personalidade antissocial pode ser enquadrado.

Desta feita, importa ressaltar que o objetivo desta pesquisa é promover o debate em relação à responsabilidade penal do psicopata, na forma da legislação brasileira, concluindo pela forma mais eficiente de atribuir a ele a responsabilidade quando do cometimento de algum crime e se há tratamento adequado para o psicopata criminoso em nosso ordenamento jurídico.


2 TEORIA DO CRIME

2.1 Conceito de Crime

Para que se chegue ao conceito de crime propriamente dito, há que se, primeiramente, conhecer os diversos conceitos e a ótica sob a qual foram concebidos.

Lecionam Eugênio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli que a teoria do delito (ou teoria do crime) é “a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é delito em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer delito”.[1]

A doutrina divide o estudo do crime em três conceitos: Conceito Material, Conceito Formal e Conceito Analítico.

Na visão do Conceito Material, o crime é uma conduta humana a qual a própria sociedade trata com repulsa e que deseja a sua proibição com aplicação de sanção na esfera penal. Insta salientar que, nessa fase, não há a prévia intervenção do legislador. A própria sociedade define as condutas e informa ao legislador que desejam a sua transformação em crime. Mas não é qualquer conduta, sim apenas as que “propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social”.[2]

Já para o Conceito Formal, o crime abarcaria os aspectos do conceito material, com a ressalva de que a intervenção legislativa seja anterior à criminalização da conduta. Em outras palavras, considera-se crime a subsunção da conduta humana tida como proibida ao que o legislador definiu como fato passível de aplicação de pena.

O Conceito Analítico, adotado atualmente pelo Código Penal Brasileiro, considera que crime é a prática da conduta humana proibida, legalmente tipificada anteriormente à prática da conduta (princípio da anterioridade da lei penal – CF, art. 5º, XXXIX), sendo esta contrária à norma e submetida a um juízo de censura pela sociedade. Mais. Deve ser o agente praticante da conduta pessoa imputável, com prévia consciência da ilicitude do fato, bem como que lhe seja exigível conduta diversa da adotada no contexto do ocorrido. Temos então, a famosa teoria tripartida, onde se considera crime a ocorrência do fato típico, ilícito e culpável.[3]

Guilherme Nucci ensina que grande parte dos doutrinadores renomados em Direito Penal divergem sobre o conceito analítico do crime. Exemplificando, Julio Mirabete, Damásio de Jesus, Cleber Masson, entre outros, acreditam que o conceito analítico consista apenas no fato típico (conduta humana subsumida) e ilícito (contrariedade à norma) ou na teoria bipartida. Adotam a teoria quadripartida (fato típico, ilícito, culpável e punível) os doutrinadores Basileu Garcia, Emilio Dolcini, entre outros.

Todavia, de forma majoritária na doutrina e na jurisprudência brasileira e assumindo a cadeira principal, adotamos que o crime consiste no fato típico, ilícito e culpável, por ser a de maior receptividade dentre os experts no assunto.

Conceitua Nelson Hungria que o crime consiste em um:

fato (humano) típico (isto é, objetivamente correspondente ao descrito in abstrato pela lei), contrário ao direito, imputável a título de dolo ou culpa e a que a lei contrapõe a pena (em sentido estrito) como sanção específica.[4]

O sujeito ativo do crime é a pessoa (e somente ela, não sendo possível a figuração ativa de animais ou coisas – objetos inanimados, porquanto ausente a vontade) física[5] que pratica a conduta tipificada em lei, bem como quem pratica o delito nas condições de coautoria ou participação. De modo simplificado, qualquer pessoa que concorra para a ocorrência do crime pode ser sujeito ativo de um crime.

O sujeito passivo é o titular do bem juridicamente tutelado (vida, honra, patrimônio etc.) alvo da violação praticada pelo sujeito ativo.

Quanto ao objeto do crime “é o bem jurídico, isto é, o interesse protegido pela norma penal”. Exemplificando, continua: “é a vida no homicídio; a integridade corporal, nas lesões corporais; o patrimônio, no furto; a honra, na injúria; os costumes e a liberdade sexual da mulher no estupro [...]”.[6]

O objeto material consiste no titular do bem jurídico ou no bem jurídico em si sobre quem recai a ofensa. Finaliza exemplificando que “o objeto material do homicídio é a pessoa sobre quem recai a ação ou omissão, e não a vida; no furto, é a coisa alheia móvel sobre a qual incide a subtração [...]”.[7]

Superada essa fase, convém dissecar o estudo acerca dos elementos que cercam o conceito de crime, expondo suas peculiaridades, teorias, diferenças e analisando casos abstratos ou concretos sob a égide de cada um deles.

2.2 Elementos do Crime

2.2.1 Fato Típico

Para uma perfeita compreensão do que venha a ser fato típico e qual a sua relevância para o Direito Penal, convém citar algumas conceituações.

Fato é a ação humana, comissiva (produtiva) ou omissiva (não impeditiva), dotada de vontade e voltada a uma finalidade.

Analisando estruturalmente, tem-se por fato típico com a existência concomitante dos seguintes elementos: Conduta, Resultado, Nexo Causal e Tipicidade.

Entende-se por fato típico toda a ação ou omissão penalmente relevante, dolosa ou culposa, exteriorizada, livre e consciente, voltada a uma finalidade ilícita, ou seja, amoldada ao modelo legal.[8]

Conduta é toda ação ou omissão, voltada a uma finalidade. Resultado é toda e qualquer consequência da lesão de um bem jurídico tutelado, com produção de alteração no mundo externo.[9] O nexo causal reside na relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado[10]. A tipicidade, por sua vez, é a subsunção do fato da vida real à norma penal.[11]

O artigo 13 do Código Penal determina que só poderá imputar a autoria de um crime a quem, de qualquer forma, lhe der causa:

Artigo13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A teoria adotada pelo Código Penal acerca do nexo causal é a da equivalência dos antecedentes, a qual dispõe que a ocorrência de quaisquer das condições que compõe o evento são causas do resultado pois, se suprimida alguma, certamente o evento não ocorreria.[12]

Em síntese, a tipicidade é a subsunção perfeita da conduta humana aos tipos penais permissivo (descrevem fatos que, quando praticados, serão classificados como criminosos) ou incriminador (condutas proibidas), dispostos no Código Penal.

O fato aparentemente típico pode ter a sua tipicidade suprimida quando da ocorrência de alguma causa excludente de tipicidade, como a do artigo 20 do Código Penal (erro sobre elementos do tipo). Tem-se então a atipicidade da conduta.

Exemplo – A, proprietário de um automóvel de montadora X e modelo Y, cor preta, destrói automóvel de terceiro, idêntico ao seu, acreditando tratar-se de seu automóvel. Nesse caso, A não estava impelido de vontade de praticar dano em detrimento do terceiro, mas sim em prejuízo próprio.[13]

Da narrativa, extrai-se o enquadramento no artigo 163 do Código Penal – Dano. Todavia, A está amparado pelo instituto do erro sobre elementos do tipo (elementar do tipo Dano: Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia), que é causa de excludente da tipicidade pela exclusão do dolo. Tendo em vista que o crime de dano não comporta a modalidade culposa, sobressair-se-á a atipicidade da conduta.

Em suma, é indispensável que haja a ocorrência dos quatro elementos componentes do fato típico para a sua configuração, sob pena de incorrer na atipicidade da conduta ou inocorrência de crime caso ausente algum deles.

2.2.2 Ilicitude

Para Fernando Capez, a ilicitude “é a contradição entre a conduta e o ordenamento jurídico, pela qual a ação ou omissão típicas tornam-se ilícitas”.[14]

Leciona Guilherme Nucci que ilícito é a “contrariedade de uma conduta com o direito, causando efetiva lesão a um bem jurídico protegido”.[15]

Somente cumprirá o elemento da ilicitude se a conduta do agente for dotada de potencial significativamente lesivo ao bem jurídico protegido, evitando assim a aplicação da sanção penal por condutas que trazem em seu bojo um risco mínimo ou irrelevante de lesão, donde deverá ser aplicado, prima facie, o princípio da insignificância.

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No seio jurídico-penal, o ilícito é aquilo que é positivado e contrário à norma, subdividindo-se em duas espécies: a ilicitude formal e a material.

O ponto controvertido entre ambas cinge-se na ideia de que a ilicitude formal não despende maior atenção quanto à reprovabilidade social da conduta e, por outro giro, a material leva em consideração o “sentimento comum de justiça”. Trata-se basicamente do chamado injusto penal.[16]

O injusto penal está intimamente ligado ao citado sentimento comum de justiça da sociedade, podendo ou não ser ilícito. O que o difere do ilícito, já que este, como explanado, consiste na contrariedade do fato com relação à norma consolidada.

Fernando Capez explica e exemplifica:

O injusto, ao contrário do ilícito, tem diferentes graus, dependendo da intensidade provocada pela repulsa provocada pela conduta. Por exemplo, o estupro, embora tão ilegal quanto o porte de arma, agride muito mais o sentimento de justiça da coletividade.[17]

Há grande probabilidade de um fato típico ser ilícito. Todavia, essa premissa não é absoluta.

Tanto é verdade que, quando o agente pratica um fato aparentemente típico e ilícito, estando coberto pelo manto de alguma das excludentes de ilicitude, tem-se a tipicidade, porém padece de ilicitude.

Exemplo – D, policial em folga, presenciando uma cena de roubo com emprego de arma de fogo praticado por B contra C, usando os meios moderados, mediante uso de sua própria arma de fogo repele a injusta agressão atual sofrida por C. (Legítima defesa de terceiro – artigo 25 do Código Penal).

De outra banda, exemplificam Eugenio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli:

Devemos ter presente que a antijuridicidade não surge do direito penal, mas de toda a ordem jurídica, porque a antinormatividade pode ser neutralizada por uma permissão que pode provir de qualquer parte do direito: assim, o hoteleiro que vende a bagagem de um freguês, havendo perigo na demora em acudir a justiça, realiza uma conduta que é típica do art. 168 do CP, mas que não é antijurídica, porque está amparada por um preceito permissivo que não provém do direito penal e sim do direito privado (art. 1.470 do CC/02).[18]

Além disso, há que se ressaltar que a lei penal permite o reconhecimento da exclusão do ilícito baseado na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito (artigo 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro) – as chamadas causas de justificação supralegais -, não estando adstrito apenas às causas legais expressas no artigo 23 do Código Penal.

2.2.3 Culpabilidade

Trata-se de um juízo de censura social em relação ao agente e ao fato. Em outras palavras, é o olhar julgador social quando da ocorrência de um fato típico e ilícito, o qual se preenchido os requisitos intrínsecos, seguindo a cronologia penal, será também culpável, somente aí passível de aplicação de sanção penal.

Guilherme Nucci leciona que a culpabilidade:

trata-se de um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato e seu autor, devendo o agente ser imputável, atuar com consciência potencial de ilicitude, bem como ter a possibilidade e a exigibilidade de atuar de outro modo, seguindo as regras do Direito.[19]

Fernando Capez sintetiza e exemplifica:

quando se diz que “Fulano” foi o grande culpado pelo fracasso de sua equipe ou de sua empresa, está atribuindo-se-lhe um conceito negativo de reprovação. A culpabilidade é exatamente isso, ou seja, a possibilidade de se considerar alguém culpado pela prática de uma infração penal. Por essa razão, costuma ser definida como juízo de censurabilidade e reprovação exercido sobre alguém que praticou um fato típico e ilícito.[20]

Ainda nesse sentido, diz Hans Wezel: "O conceito da culpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica – tanto de uma ação dolosa quanto de uma não dolosa – um novo elemento, que é o que a converte em delito".[21]

Todavia, esses conceitos não foram concebidos de forma célere. A evolução teórica do conceito da culpabilidade atravessou séculos até a forma atual.

Primitivamente, cultuava-se a ideia de que apenas a punição - sem culpa (responsabilidade objetiva) - bastava para caracterizar o que atualmente temos como os requisitos para o enquadramento do fato da vida real ao fato típico. Acreditava-se que a transgressão a um preceito ético ou moral provocava a cólera dos deuses, sendo a vingança um presente divino e que os infratores deveriam ser punidos. Nota-se facilmente que não havia critério racional nem limites para a punição: Uma vez infringida a paz e a ordem da sociedade, por qualquer que seja a forma da punição, surgia o dever de “pagar pelos seus atos”.[22]

Há que se citar também a famosa Lei de Talião, a qual carregava o lema “olho por olho, dente por dente”. Traduzindo em simples palavras, significa que se qualquer do povo transgredisse qualquer norma estatuída por aquela Lei, seria punido com o mesmo modus operandi que a infringiu. Apesar de ainda carregar resquícios selvagens do período primitivo, passou-se à individualização das transgressões de modo que fossem “pessoal e proporcional à agressão sofrida, além de previamente fixada”.[23]

Apesar da passagem pelo período romano (que trouxe inovações quanto à responsabilidade dos chamados ofensores), com introdução da ideia de responsabilidade subjetiva, que exigia a ocorrência de culpa ou dolo, a entrada no período germânico trouxe a tona os ideais primitivos, como a vingança, a responsabilidade objetiva e a batalha de sangue.[24]

A partir da Idade Média, com a influência cristã, jusnaturalista e do direito canônico, passou-se a exigir muito além do que a frágil responsabilidade objetiva. Para que fosse punido, o infrator deveria agir com dolo ou culpa e, além disso, sua punição seria pessoal e proporcional à lesão praticada, isto é, introduziu-se a ideia de desconsiderar a responsabilidade objetiva e, em seu lugar, incluir a responsabilidade subjetiva. Foi no Período Moderno que as penas injustas encontraram o seu fim. Juristas como Carmignani e Carrara, entre outros, pintaram um novo horizonte para a finalidade de aplicação das punições.

Carmignani sustentava de forma contrária, isto é, o direito de castigar não tem fundamento na justiça moral, mas sim na necessidade política de manter-se a paz social. No que se refere à pena, defendeu que esta tem como função evitar delitos futuros e não se vingar dos delitos passados, não adotando, uma concepção retribucionista, mas sim utilitarista.

Para Carrara, o crime deve ser entendido como um “ente jurídico”. A materialização de um crime depende simultaneamente de uma lesão ou ameaça de lesão ao direito de outrem e que essa tenha sido praticada por alguém que entende o que faz e é capaz de controlar suas vontades.

Assim, [...], somente pode ser responsabilizado por crime aquele que é moralmente imputável, aquele possuidor da “vontade inteligente e livre”. Um dos pensamentos do Carrara é o “livre arbítrio”.[25]

Por fim, as Escolas Positivistas Italianas, trouxeram uma visão até então não explorada pelos estudiosos, juristas e filósofos da época. Precursores como Cesare Lombroso e Raffaele Garofalo “defendiam que a criminalidade derivava de fatores biológicos, contra os quais era inútil o homem lutar. [...] A pena não se relacionava com a ideia de castigo; era concebida como um remédio social aplicável a um ser doente”.[26]

Superada essa fase, o Código Penal Brasileiro vigente recepcionou a culpabilidade como fundamento da pena, levando em consideração a responsabilidade subjetiva, isto é, dolo ou culpa.

Então, houve a necessidade de estabelecer critérios para a responsabilização do agente. Nascem as principais teorias acerca da responsabilização: Psicológica, Normativa e Normativa Pura.

Guilherme Nucci ilustra hipoteticamente um fato da vida, passível de observação pela ótica das três teorias. Analisemos:

se o gerente de um banco tem a família sequestrada, sob ameaça de morte, ordenando-lhe o sequestrador que vá ao estabelecimento onde trabalha e de lá retire o dinheiro do cofre, pertencente ao banqueiro. O que poderá fazer? Coagido irresistivelmente, cede e subtrai o dinheiro do patrão para entregar a terceiro. Seu livre-arbítrio poderia tê-lo conduzido a outro caminho? Sem dúvida. Poderia ter-se negado a agir assim, mesmo que sua família corresse risco de morrer. Seria, no entanto, razoável e justo? [...][27]

Para a teoria psicológica, o agente que pratica fato típico e ilícito, impelido de dolo ou culpa e que seja imputável, é passível de ser considerado culpável. Note que não há menção ao requisito intrínseco da “exigibilidade de conduta diversa”, razão pela qual foi severamente criticada pelos penalistas.

Confrontando a teoria psicológica com o fato da vida acima mencionado, nota-se que seria imputado ao gerente do banco a prática de um fato típico, ilícito e, por consequência, culpável, pois ele era imputável e pessoa sã. Todavia, tendo em vista que a exigibilidade de conduta diversa não integra o rol dos requisitos da culpabilidade, não seria possível o enquadramento da causa excludente de culpabilidade pela ocorrência da “coação irresistível”, atualmente insculpida no artigo 22 do Código Penal.

Para a teoria normativa, abarca-se o conteúdo da teoria psicológica, acrescentando-se a reprovação social da conduta, incidindo sobre o agente que praticou o fato. Ademais, acresceu-se nessa teoria a necessidade da produção de provas no sentido de que esse agente deveria ter adotado ou que houvesse a possibilidade de se adotar conduta diversa da praticada (exigibilidade de conduta diversa).

Analisando o exemplo, o gerente do banco praticou um fato típico e ilícito, porém não culpável. Isso porque agiu sob o manto de uma excludente de culpabilidade, qual seja a inexigibilidade de conduta diversa da praticada. Ora, se não tivesse adotado tal postura, provavelmente seus familiares seriam vítimas de injustos nas mãos dos sequestradores.

Por fim, para a teoria normativa pura (adotada pelo nosso Código Penal), passou-se à analise da finalidade da conduta do ser humano (toda conduta possui uma finalidade). Nessa teoria, o juízo de reprovação social passa a incidir não somente sobre o agente que praticou a conduta, mas sim sobre todos os elementos do crime (fato típico, ilícito) e também sobre o agente. Frise-se que devem estar presentes os elementos caracterizadores do crime e o agente deve ser penalmente culpável pelos seus atos. Na prática, a análise legal do exemplo do gerente do banco seria semelhante ao da teoria normativa.

A doutrina divide-se quanto ao modo de aferição da culpabilidade: Deve-se medir a culpabilidade pelas características do agente ou pelas características do crime?

Para a culpabilidade do autor, as correntes doutrinárias convergem para o sentido de que a culpabilidade deve ser auferida através das características pessoais do infrator da lei. Para tanto, leva-se em consideração apenas as circunstâncias estatuídas no artigo 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da vítima). Tem-se então um critério de culpabilidade do caráter do agente.

Já para a culpabilidade do fato, censuram-se as características do agente, bem como o fato criminoso em si, medindo-se a conduta pelo seu grau de lesividade, porém sempre respeitando os requisitos primários para a sua configuração: Imputabilidade, Potencial Consciência da Ilicitude e Exigibilidade de Conduta Diversa. Essa é a corrente adotada pela doutrina penalista majoritária.

Partindo desse princípio, o Direito Penal atual adota como critérios de aferição da culpabilidade a Imputabilidade, a Potencial Consciência da Ilicitude e a Exigibilidade de Conduta Diversa, sendo que ao presente trabalho nos interessa explorar a Imputabilidade e seus desdobramentos.

2.2.3.1 Imputabilidade

Imputabilidade, do latim “imputare”, significa “atribuir (a alguém) a responsabilidade de; assacar, responsabilizar”.[28]

Para Damásio Evangelista de Jesus, “imputar é atribuir a alguém a responsabilidade de alguma coisa. Imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível”.[29]

Para Eugênio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, a imputabilidade é a capacidade psíquica e física, pela qual se extrai o grau de discernimento e autodeterminação do agente frente a uma conduta típica e ilícita.[30]

Fernando Capez leciona que imputabilidade é a “capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento”.[31]

Guilherme Nucci vai mais adiante:

É o conjunto das condições pessoais, envolvendo inteligência e vontade, que permite ao agente ter entendimento do caráter ilícito do fato, comportando-se de acordo com esse conhecimento. O binômio necessário para a formação das condições pessoais do imputável consiste na sanidade mental e maturidade. [32]

Esse binômio recebe outro nome – “higidez biopsíquica (sanidade mental + capacidade de apreciar a criminalidade do fato) e maturidade (desenvolvimento físico mental que permite ao ser humano estabelecer relações sociais bem adaptadas [...])”.[33]

Seguindo a linha de Hans Welzel, citado por Fernando Capez,

a capacidade de culpabilidade apresenta dois momentos específicos: um “cognoscivo ou intelectual” e outro “de vontade ou volitivo", isto é, a capacidade de compreensão do injusto e a determinação da vontade conforme ao sentido, agregando que somente ambos os momentos conjuntamente constituem, pois, a capacidade de culpabilidade.[34]

Em síntese, para que seja imputável, deve o agente ser portador de capacidade suficiente para - ao tempo da ação ou da omissão - entender ou, pelo menos, determinar-se de acordo com o entendimento - do que é aceitável pela sociedade. É o indivíduo mentalmente são e consciente de seus atos. Essa é a regra.

Na falta completa de capacidade ou nas hipóteses em que esta seja reduzida ou limitada, o agente será considerado inimputável ou semi imputável, de acordo com o caso concreto.

2.2.3.2 Semi Imputabilidade

Tem-se que o agente que praticou a conduta típica e ilícita, estando afetado por perturbação de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não dispunha, à época da ação ou da omissão, total discernimento para compreender a ilicitude de sua conduta. A capacidade cognosciva e/ou volitiva, nesse caso, deve apresentar-se reduzida ou limitada para que seja possível atribuir a semi imputabilidade a um agente que cometeu um fato típico e ilícito.

Assim prevê o artigo 26, parágrafo único, do Código Penal:

Artigo 26. [...]

Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. (grifo nosso).

Tem-se por perturbação da saúde mental a doença mental que “embora não retirando do agente, completamente, a sua inteligência ou a sua vontade, perturba-o, mas não elimina a sua possibilidade de compreensão”.[35] (grifo nosso).

Nesse caso, provada que a capacidade de compreensão do agente é limitada, o juiz atenuará a reprimenda de um a dois terços, quando da aferição da última fase em sua aplicação.

É passível ainda, considerando as peculiaridades do caso, que o agente portador de capacidade de discernimento reduzida seja submetido à aplicação de medida de segurança. Há que se ressalvar que, para tanto, a capacidade cognosciva e intelectual deverá ser intensamente afetada, de modo que o indicado seja o tratamento curativo.

A maioria dos juristas crê na existência da semi imputabilidade. Porém, nomes de peso na doutrina penalista lecionam a rejeição do meio-termo: Ou o agente é imputável e responderá como se são fosse, ou é inimputável, sendo-lhe aplicada a medida de segurança. É a ótica de Nelson Hungria, ao escrever “como os estados contrários são excludentes entre si, é logicamente impossível o meio-termo”.[36]

Segundo Antônio Carlos da Ponte:

Cabe frisar que não há uma categoria de semi-loucos ou semi-responsáveis, há sim, entre a zona de sanidade psíquica ou normal e a loucura, estados psíquicos que representam uma variação mórbida, fazendo com que seus portadores sejam responsáveis, embora com menor culpabilidade, justamente por apresentarem uma capacidade reduzida de discernimento ético – social ou auto inibição ao impulso criminoso.[37]

Dessa forma, extrai-se que os agentes que apresentam estados fronteiriços entre a normalidade e a loucura são passíveis de responsabilidade penal, ainda que de forma reduzida, nos exatos termos do artigo 26, parágrafo único, do Código Penal.

Quanto aos psicopatas, tema central desta pesquisa, mister se faz acrescentar algumas informações:

No que concerne aos psicopatas [...], o doutrinador Júlio Fabrini Mirabete preleciona, acerca do enquadramento destes indivíduos como semi imputáveis: “Refere-se a lei em primeiro lugar à “perturbação da saúde mental”, expressão ampla que abrange todas as doenças mentais e outros estados mórbidos. Os psicopatas, por exemplo, são enfermos mentais, com capacidade parcial de entender o caráter ilícito do fato. A personalidade psicopática não se inclui na categoria das moléstias mentais, mas no elenco das perturbações da saúde mental pelas perturbações da conduta, anomalia psíquica que se manifesta em procedimento violento, acarretando sua submissão ao art. 26, parágrafo único”.[38]

Compactuamos das lições de Mirabete, no sentido de que os psicopatas se enquadram na classe dos perturbados mentalmente e, por consequência, dos semi imputáveis, visto que têm plena capacidade cognosciva, porém são dotados de perversão (desvio acentuado na personalidade que tem por finalidade atingir o caráter do sujeito, extrapolando o que é considerado normal) e despidos de sentimentos de afeto, carinho e principalmente de empatia, sendo incapaz de frear a impulsividade de praticar o ato criminoso, ou seja, desprovidos de capacidade volitiva.[39]

2.2.3.3 Inimputabilidade

Ao contrário do até então exposto, a inimputabilidade tem lugar quando o agente que pratica uma conduta típica e ilícita é totalmente incapaz de entender o caráter criminoso dela, seja por doença mental que suprima de forma absoluta o seu discernimento e sua capacidade volitiva, seja por critérios biológicos, como por exemplo, a menoridade.

Antônio Leiria apud Franciele Almeida observa que:

A doença mental, para os efeitos da norma jurídica, apresenta-se como um estado morboso da psique, capaz de produzir profundas inibições na Inteligência ou na vontade, no momento da ação ou da omissão. Por outro ângulo, é de se ter presente que o conceito psiquiátrico de doença mental, embora sirva de base para a formulação do conceito jurídico, nem sempre coincide exatamente com este. Igualmente, não é de se confundir a perturbação da saúde mental, com a doença mental propriamente dita. Nas enfermidades psíquicas, há sempre uma perturbação da saúde mental, mas, tais perturbações nem sempre decorrem de uma doença mental, na concepção científica do termo.[40]

O artigo 26, “caput” do Código Penal reza:

Artigo 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (grifo nosso).

O agente portador de doença mental, ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, se incapaz ao tempo da prática do fato, não será apenado pela sua conduta, mas ser-lhe-á aplicada a medida de segurança ou qualquer outra sanção prevista em legislação especial, observando o caso concreto. Isso porque, se o indivíduo tem suprimida a sua capacidade de discernimento da infração praticada, não compreende o caráter ilícito de sua conduta. Nesse sentido é a lição de Rogério Greco:

É que um doente mental jamais poderá agir com dolo ou culpa, porque, sem a capacidade psíquica para a compreensão do ilícito, não há nenhuma relação psíquica relevante para o Direito Penal, entre o agente e o fato. Sem a imputabilidade, não se perfaz a relação subjetiva entre a conduta e o resultado. Não se pode falar em dolo ou culpa de um doente mental. O dolo e a culpa como formas de exteriorização da culpabilidade em direção à causação do resultado, pressupõem a imputabilidade do agente.[41]

São causas excludentes da culpabilidade pela inimputabilidade a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (artigo 26 do Código Penal) e a embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou de força maior (artigo 28, § 1º do Código Penal).

Entende-se por doença mental a patologia psíquica ou tóxica, de qualquer ordem, que seja capaz de suprimir a vontade e o entendimento do indivíduo acerca do fato e de seu conteúdo ilícito. Capez cita patologias mentais, tais como “epilepsia, condutopática, psicose, neurose, esquizofrenia, paranóias, psicopatia, epilepsias em geral etc.”[42]. Como patologias de origem tóxica, podemos citar o alcoolismo e a dependência química, que podem carrear em inimputabilidade.

Há que se registrar que o rol não se restringe apenas às patologias mentais. Estende-se a qualquer patologia que, ao tempo da ação ou da omissão, retire por completo a capacidade volitiva e cognosciva do indivíduo.

No desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o indivíduo tem sua capacidade volitiva e cognosciva limitada e precária, sendo que ainda não alcançou a maturidade total, tanto intelectual como física.[43]

Os menores de dezoito anos, para fins penais, são considerados inimputáveis pela presunção de que seu desenvolvimento mental ainda esteja incompleto. Todavia, serão sujeitas a várias medidas estatuídas em legislação especial – O Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 27 do Código Penal c.c. Lei 8.069/90), dentre elas, a imposição de medida sócio educativa.

Os silvícolas não civilizados (aspecto mesológico) e os surdos sem capacidade de comunicação são exemplos de inimputáveis pelo desenvolvimento mental incompleto ou retardado.[44]

Os sonâmbulos, fora os casos de simulação, ao mergulharem no estado profundo de sono, permanecem com a atividade motora ativa, porém desprovidos de capacidade volitiva. Nesse caso, observadas as peculiaridades do caso concreto, os sonâmbulos podem ser classificados como inimputáveis se, à época da conduta delituosa, ostentava tais características.[45]

Em suma, se o agente não possui aptidão para entender a diferença entre o certo e o errado, terminará - vez ou outra - praticando um fato típico e antijurídico sem que possa por isso ser censurado, isto é, sem que possa sofrer juízo de culpabilidade.

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Sobre as autoras
Gabrielle Dayane de Macedo Rangel

Graduada em Direito pela Universidade de Taubaté (2017).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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