RESUMO: No sistema de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, é obrigatória a matrícula dos jornais, periódicos, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias, conforme constam das disposições contidas no artigo 122 usque 126 da Lei n° 6.015/73. Tais comandos legais foram extraídos da Lei de Imprensa – Lei n° 5.250/67 – que previa, em seu artigo 8° usque 11, o registro destes veículos de notícia, além do resgate das disposições contidas na lei registral que a antecedia, o Decreto n° 4.857/39. Todos estes diplomas normativos foram editados no período ditatorial, onde a liberdade de imprensa e manifestação do pensamento eram restritas e absolutamente controladas pelo governo. Neste cenário de censura, as leis de 1.967 e 1.973 vigoraram e se estenderam pós constituição de 1.988, de cunho democrático. Ante a incompatibilidade da Lei de Imprensa com os comandos da novel ordem constitucional, pelo julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 130, o STF declarou-a não recepcionada. Assim, como os comandos da Lei n° 6.015/73 são de nítida semelhança e vontade legislativa, surge a questão que será abordada neste trabalho: houve recepção do Capítulo III – Do Registro, artigo 122 usque 126 da Lei n° 6.15/73 pela Constituição Federal de 1.988?
Palavras-chave: Lei de Imprensa, ADPF n° 130, não recepção, Lei n° 6.015/73, artigo 122 usque 126, semelhança de comando legal, recepção, ordem constitucional vigente.
INTRODUÇÃO
A questão pertinente a este trabalho cinge-se no desdobramento produzido pelo julgamento, conduzido Supremo Tribunal Federal, da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, notadamente no que se refere à atribuição do Registro Civil das Pessoas Jurídicas prevista no art. 122 usque 126 da Lei n° 6.015/73.
Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista Brasileiro – PDT, foi distribuída em 19/02/08 ao Relator Ministro Ayres Brito, cujo objeto era questionar a recepção ou não, pela ordem constitucional vigente, a Lei n° 5.250/67, que regulava a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, de base nitidamente ditatorial, eis que reflexo do período de sua elaboração.
Após regular tramitação, a mencionada ADPF foi julgada procedente, adianta-se, com efeito de declarar não recepcionada pela Constituição Federal de 1.988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal n° 5.250, de 9 de fevereiro de 1.967. Dito isto, percebemos que o art. 8º usque 11, da lei não recepcionada, integrante do capítulo II – Do Registro, guardava grande similaridade com o art. 122 usque 126 da Lei n° 6.015/73.
Assim, surge a questão: houve a recepção dos supra descritos comandos legais da Lei n° 6.015/73?
As considerações a esta pergunta serão o cerne do que aqui se discute, abordando-se os contornos do aspecto constitucional relativo ao tema, bem como sua interferência no plano registral civil das pessoas jurídicas, no que se refere à matrícula de oficinas impressoras, jornais, agências de notícias e empresas de radiodifusão.
1. DA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.
1.1. Noções Gerais
Como início da abordagem a que se destina, é de bom tom passarmos brevemente pelo instituto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, introduzido no cenário jurídico pátrio pelo advento da Lei n° 9.882/99, que veio regulamentar o parágrafo 1º do art. 102 da Constituição Federal de 1.988.
Diz o referido artigo e parágrafo da ordem suprema vigente, verbis: “§ 1º - A arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Como norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, de “aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque incidem totalmente sobre estes interesses, após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a aplicabilidade” (MORAIS, 2005, p. 7), necessitou-se de adequação legal, daí o advento da Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1.999, 11 anos mais tarde.
Pelo artigo 1º da lei regulamentadora podemos perceber sua intenção, verbis: “A arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; II – Vetado”.
De introito, surge-nos a questão: o que vem a ser preceito fundamental?
No entendimento de André Ramos Tavares,
Há valores incorporados pelas Constituições que se caracterizam por fundamentarem (materialmente) todo o ordenamento jurídico, impondo-se sua observância por todos os mais diversos setores do mundo jurídico. Essa constatação faz surgir – pela própria natureza das coisas, bem como por questões políticas e de ordem lógica – a idéia de que mereceriam estes valores ou preceitos (fundamentais) que os abrigam uma especial ou específica (própria) fórmula protetiva de cunho judicial. (2001, p. 40).
Tendo em vista esta proteção da jurisdição constitucional aos direitos e garantias fundamentais, além das demais matérias constantes do núcleo de organização do Estado e Poder, adverte Tavares:
Os preceitos fundamentais de uma Constituição cumprem exatamente o papel de lhe conferir identidade própria. Albergam, em seu conjunto, a alma de uma Constituição. (...) Se se trata, realmente, de um conjunto de preceitos considerados constitucionais, isso significa que foram consagrados no corpo da Constituição, e dele constam expressa ou implicitamente. Ou ainda, em outras palavras, se são “decorrentes da Constituição”, não há como pretender que decorram da Lei. Como primeira conclusão, tem-se aqui um conceito (de preceito fundamental) intangível ao legislador. (2001, p. 53-54)
Firmado o alcance da expressão preceito constitucional, a norma suprema ainda relata que caberá a ADPF quando do seu descumprimento – preceitos fundantes -, revelando a mera desconformidade dos enunciados constitucionais e a realidade fática verificada. Nisto ainda verifica-se a inconstitucionalidade necessária, no sentido amplo da palavra. A única restrição é a de que o ato descumpridor/lesionador seja perpetrado pelo Poder Público.
Além desta previsão, contida no caput, do artigo 1º, da Lei n° 9.882/99, seu parágrafo único também estabelece que caberá a arguição de descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
Destaca-se, para este trabalho, a parte final do mencionado dispositivo, ou seja, o cabimento de ADPF para questionar fundamento relevante de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição Federal de 1.988.
Salienta Daniel Sarmento:
Como se sabe, a jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal aponta no sentido do não-cabimento de Adin contra ato normativo anterior à Constituição, sob o argumento de que a questão envolvida é de simples revogação, e não de inconstitucionalidade superveniente. (...) Diante desta discutível orientação pretoriana, criou-se um vácuo no controle abstrato de normas, prejudicial à segurança jurídica, à medida que a solução de controvérsias relevantes envolvendo a recepção das normas infraconstitucionais deixou de contar com um instrumento definitivo de pacificação dos conflitos, dotado de eficácia erga omnes. Portanto, entendemos que a Lei 9.882/99 preencheu, em boa hora, este vazio ao possibilitar o controle abstrato do direito pré-constitucional, em sintonia, aliás, com a jurisdição constitucional no direito comparado. (2001, p. 94v-95).
Também se deve ressaltar a questão dos legitimados à propositura da ADPF. O artigo 2º da Lei n° 9.882/99 aduz que poderão propor arguição de descumprimento de preceito fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade, os quais são encontrados na previsão contida no artigo 103 da Constituição Federal, ou seja, o Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
1.2. Da ADPF nº 130 – Questões Relevantes.
Visto as noções acima delineadas, mais especificamente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, tem-se que foi proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, com objetivo de declarar não recepcionada, pela ordem constitucional vigente, a Lei n° 5.250/67, mais conhecida no cenário jurídico pátrio como Lei de Imprensa.
Inicialmente, vemos que o partido político com representação no Congresso Nacional é legitimado para sua propositura. Assim, o PDT cumpriu com este requisito objetivo. Quanto à possibilidade jurídica de seu ajuizamento, recaiu no comando previsto no parágrafo único do artigo 1º, da Lei n° 9.882/99, pois o preceito fundamental constitucional relevante e controvertido – liberdade de manifestação do pensamento e de informação -, estava sendo questionado por previsão legal federal anterior à Constituição e, pior, elaborada em período de cerceamento de liberdades públicas.
Depois de regular tramitação, o pedido foi julgado procedente, declarando-se não recepcionado pela ordem constitucional vigente todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal n° 5.250/67, com eficácia erga omnes e da qual não cabe recurso, tampouco ação rescisória, nos termos do art.12 da Lei n° 9.882/99, com a seguinte ementa de acórdão:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. A ADPF, fórmula processual subsidiária do controle concentrado de constitucionalidade, é via adequada à impugnação de norma pré-constitucional. Situação de concreta ambiência jurisdicional timbrada por decisões conflitantes. Atendimento das condições da ação.
2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome “Da Comunicação Social” (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de “atividades” ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização.
3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional “observado o disposto nesta Constituição” (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da “plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação.
4. MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma Constituição Federal: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5º). Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa.
5. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sem embargo, a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido. Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque, senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de robustez da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e de esqualidez dessa liberdade. Em se tratando de agente público, ainda que injustamente ofendido em sua honra e imagem, subjaz à indenização uma imperiosa cláusula de modicidade. Isto porque todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos.
6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado “poder social da imprensa”.
7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e “real alternativa à versão oficial dos fatos” ( Deputado Federal Miro Teixeira).
8. NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE LEGISLAR. A uma atividade que já era “livre” (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo de “plena” (§ 1º do art. 220). Liberdade plena que, repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à essência mesma do jornalismo (o chamado “núcleo duro” da atividade). Assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu, sem o que não se tem o desembaraçado trânsito das ideias e opiniões, tanto quanto da informação e da criação. Interdição à lei quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no tempo de início e de duração do concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou tamanho do seu conteúdo. Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o “estado de sítio” (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte (“quando necessário ao exercício profissional”); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento dos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (inciso II do § 3º do art. 220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição). Regulações estatais que, sobretudo incidindo no plano das consequências ou responsabilizações, repercutem sobre as causas de ofensas pessoais para inibir o cometimento dos abusos de imprensa. Peculiar fórmula constitucional de proteção de interesses privados em face de eventuais descomedimentos da imprensa (justa preocupação do Ministro Gilmar Mendes), mas sem prejuízo da ordem de precedência a esta conferida, segundo a lógica elementar de que não é pelo temor do abuso que se vai coibir o uso. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”.
9. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. É da lógica encampada pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como mecanismo de permanente ajuste de limites da sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade civil. Os padrões de seletividade do próprio corpo social operam como antídoto que o tempo não cessa de aprimorar contra os abusos e desvios jornalísticos. Do dever de irrestrito apego à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa. Repita-se: não é jamais pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio Texto Magno do País apôs o rótulo de “plena” (§ 1 do art. 220).
10- NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI 5.250 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. 10.1. Óbice lógico à confecção de uma lei de imprensa que se orne de compleição estatutária ou orgânica. A própria Constituição, quando o quis, convocou o legislador de segundo escalão para o aporte regratório da parte restante de seus dispositivos (art. 29, art. 93 e § 5º do art. 128). São irregulamentáveis os bens de personalidade que se põem como o próprio conteúdo ou substrato da liberdade de informação jornalística, por se tratar de bens jurídicos que têm na própria interdição da prévia interferência do Estado o seu modo natural, cabal e ininterrupto de incidir. Vontade normativa que, em tema elementarmente de imprensa, surge e se exaure no próprio texto da Lei Suprema. 10.2. Incompatibilidade material insuperável entre a Lei n° 5.250/67 e a Constituição de 1988. Impossibilidade de conciliação que, sobre ser do tipo material ou de substância (vertical), contamina toda a Lei de Imprensa: a) quanto ao seu entrelace de comandos, a serviço da prestidigitadora lógica de que para cada regra geral afirmativa da liberdade é aberto um leque de exceções que praticamente tudo desfaz; b) quanto ao seu inescondível efeito prático de ir além de um simples projeto de governo para alcançar a realização de um projeto de poder, este a se eternizar no tempo e a sufocar todo pensamento crítico no País. 10.3 São de todo imprestáveis as tentativas de conciliação hermenêutica da Lei 5.250/67 com a Constituição, seja mediante expurgo puro e simples de destacados dispositivos da lei, seja mediante o emprego dessa refinada técnica de controle de constitucionalidade que atende pelo nome de “interpretação conforme a Constituição”. A técnica da interpretação conforme não pode artificializar ou forçar a descontaminação da parte restante do diploma legal interpretado, pena de descabido incursionamento do intérprete em legiferação por conta própria. Inapartabilidade de conteúdo, de fins e de viés semântico (linhas e entrelinhas) do texto interpretado. Caso-limite de interpretação necessariamente conglobante ou por arrastamento teleológico, a pré-excluir do intérprete/aplicador do Direito qualquer possibilidade da declaração de inconstitucionalidade apenas de determinados dispositivos da lei sindicada, mas permanecendo incólume uma parte sobejante que já não tem significado autônomo. Não se muda, a golpes de interpretação, nem a inextrincabilidade de comandos nem as finalidades da norma interpretada. Impossibilidade de se preservar, após artificiosa hermenêutica de depuração, a coerência ou o equilíbrio interno de uma lei (a Lei federal nº 5.250/67) que foi ideologicamente concebida e normativamente apetrechada para operar em bloco ou como um todo pro indiviso.
11. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, “de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”, conforme classificação de José Afonso da Silva. “Norma de pronta aplicação”, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta.
12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
Pelo que ficou decidido, a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial e passa a manter com a democracia a mais estreita relação de mútua dependência. Assim, não haveria compatibilidade alguma com a novel Constituição uma Lei que sufoca a liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa livre.
Assim, dando eloquência aos princípios constitucionais insculpidos no artigo 5º da Constituição Federal de 1.988, em especial o de vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas às qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV), bem como o artigo 220, do mesmo diploma, que trata da Comunicação Social, declarou-se não recepcionada a Lei n° 5.250/67 em todas as suas disposições.
Mas, afinal, o que se reconhece como recepção? Analisaremos abaixo.
1.3. Da Aplicação das normas constitucionais no tempo.
De regra, cabe frisar que a constituição posterior acaba por cessar a vigência das normas constitucionais estabelecidas pelo ordenamento jurídico anterior, visto a ruptura de paradigmas. Porém, pode ser que a novel ordem máxima declare que determinadas regras anteriores ainda continuem vigentes, como leis ordinárias, ocorrendo o fenômeno da desconstitucionalização.
Para Kildare Gonçalves Carvalho,
Pela desconstitucionalização, as normas formalmente constitucionais do regime anterior perdem o caráter hierárquico superior, continuando a vigorar como legislação infraconstitucional. Necessário, para tanto, que haja disposição expressa neste sentido, da nova Constituição, pois se assim não proceder, tem-se que nada da Constituição pretérita sobrevive. (...) As disposições constitucionais passíveis de desconstitucionalização são as de natureza formal, sem disporem de natureza material, pois sempre foram disposições de lei ordinária pela sua matéria. Admite-se, no entanto, que mesmo alguns dispositivos materialmente constitucionais possam ser desconstitucionalizados, desde que não acobertados pelos limites do poder de reforma. (2008, p. 299-300)
Além da aplicação supra referida, temos outra questão: as normas contidas em leis ordinárias anteriores em face da nova constituição. Pela regra geral, permanecem em vigor, desde que compatíveis com o texto constitucional recém aprovado, uma vez que não é crível ao Legislativo elaborar todo um conjunto normativo novo para adaptá-lo ao texto maior vigente. Evita-se, com isto, um vazio de legislação pela transição. Assim, havendo simetria de paradigmas, tanto normativos como principiológicos, ocorre o que se chama de recepção da legislação ordinária pela Constituição.
Neste sentido, observa Kelsen:
Apenas o conteúdo dessas normas permanece o mesmo, não o fundamento de sua validade. Elas não são mais válidas em virtude de terem sido criadas da maneira prescrita pela velha constituição. Essa constituição não está mais em vigor; ela foi substituída por uma nova constituição que não é o resultado de uma alteração constitucional da primeira. Se as leis introduzidas sob a velha constituição ‘continuam válidas’ sob a nova constituição, isso é possível apenas porque a validade lhes foi conferida, expressa ou tacitamente, pela nova constituição. O fenômeno é um caso de recepção (semelhante à recepção do Direito Romano). A nova ordem recebe, i.e., adota, normas da velha ordem; isso quer dizer que a nova ordem dá validade (coloca em vigor) a normas que possuem o mesmo conteúdo que normas da velha ordem. A ‘recepção’ é um procedimento abreviado de criação de direito. As leis que, na linguagem comum, inexata, continuam sendo válidas são, a partir de uma perspectiva jurídica, leis novas cuja significação coincide com a das velhas leis. Elas não são idênticas às velhas leis, porque seu fundamento de validade é diferente. (1990, p. 122).
Lado outro, não tendo as normas ordinárias qualquer fundamento de compatibilidade com a novel constituição, temos que não fora recepcionada por ela, texto maior. É o caso de “extinção de norma jurídica”. (TAVARES, 2002, p.157).
Insta consignar que o fenômeno é tratado por alguns autores como inconstitucionalidade superveniente e outros entendem que o impasse pode ser resolvido com aplicação do princípio lex posterior derogat priori. O STF não admite estas classificações, tratando a matéria como recepção ou não da lei elaborada na vigência de ordem constitucional anterior.
Por fim, é de bom alvitre salientar que não é admitida a realização de controle de constitucionalidade concentrado para questionar leis pretéritas, com substrato material e formal advindo de constituição anterior, em face da nova carta magna. Para estes casos, conforme já analisado, caberá a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, regulamentada pela Lei 9.882/99, em atendimento ao art. 102, § 1º, da Constituição Federal de 1.988.