A exigência pelos notários de exibição da certidão negativa de tributos tem sido um dos maiores obstáculos à regularização do domínio. Milhares de compromissários compradores não conseguem regularizar o título de propriedade, depois de quitados os respectivos preços pactuados, por ausência dessa certidão negativa reclamada pelos tabeliães e notários. O tempo vai passando e a situação vai se complicando cada vez mais, em razão do falecimento do vendedor ou do cocompromissário comprador, em ambos os casos deixando herdeiros vários. Fácil de imaginar-se os obstáculos que surgem nessas hipóteses, com a necessidade de proceder a abertura de inventários.
Quase todas as legislações municipais impõem aos tabeliães e oficiais de Registro de Imóveis o dever de verificar a regularidade da situação fiscal do vendedor, mediante a apresentação da certidão negativa de tributos que deve ser expressamente mencionada no ato notarial.
A lei do Município de São Paulo de nº 11.154/91, por exemplo, pelos artigos 19 e 21 na redação dada pela Lei nº 14.256/06, impunha a obrigação aos notários e registradores de verificar o recolhimento de imposto e a inexistência de débitos relativos ao imóvel alienado, sob pena de multa.
Contudo, essas disposições foram declaradas inconstitucionais pelo Órgão Especial do TJ/SP por afrontar tanto a competência da União para legislar sobre registro público, como a do Poder Judiciário para disciplinar, fiscalizar e aplicar sanções aos que exercem tais atividades (Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível 0103847-15.2007.8.26.0053, Rel. Des. Corrêa Vianna, Órgão Especial, j. de 5-5-2010).
Aludida certidão negativa é exigida, também, pelo art. 47 da Lei nº 8.212/91, para alienação ou oneração pela empresa de qualquer bem imóvel ou direito a ele relativo. A proliferação de normas legais da espécie (para participar de certame licitatório, para alteração do contrato social, para homologação do plano de recuperação judicial, para operações bancárias com bancos oficiais etc.) ofende escancaradamente três Súmulas do STF abaixo transcritas:
Súmula nº 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadoria como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
As citadas Súmulas foram editadas ilustrativa e didaticamente para coibir o uso do instrumento da certidão negativa como sanção política aos devedores de tributos. Não é preciso editar uma súmula para coibir cada exigência indevida de certidão negativa. A Fazenda Pública dispõe da Lei de Execução Fiscal para a cobrança coativa do crédito tributário, que permite ao executado o exercício do contraditório e ampla defesa.
Não deve o legislador confundir defesa do interesse público com o prestígio que se empresta ao interesse privado do poder público. Isso é confundir interesse público do estado com o interesse privado do poder público. Por óbvio, não consulta ao interesse público a feitura de uma lei que impõe sanção política ao devedor de tributos, suprimindo-lhe o direito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Na esfera do Estado de São Paulo vigoram, atualmente, as normas da Corregedoria Geral da Justiça, que tornam facultativa a exigência da certidão negativa por parte dos tabeliães e registradores.
De fato, dispõe no item 59.2, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça:
“Nada obstante o previsto nos artigos 47, I, b, da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, e no artigo 257, I, b, do Decreto n.º 3.048, de 6 de maio de 1999, e no artigo 1.º do Decreto n.º 6.106, de 30 de abril de 2007, faculta-se aos Tabeliães de Notas, por ocasião da qualificação notarial, dispensar, nas situações tratadas nos dispositivos legais aludidos, a exibição das certidões negativas de débitos emitidas pelo INSS e pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e da certidão conjunta negativa de débitos relativos aos tributos federais e à dívida ativa da União emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, tendo em vista os precedentes do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de inexistir justificativa razoável para condicionar o registro de títulos à prévia comprovação da quitação de créditos tributários, contribuições sociais e outras imposições pecuniárias compulsórias.”
Difícil de entender o sentido dessas normas. Ou o ato de exigir a certidão negativa é ilegal e inconstitucional, devendo ele ser vedado, ou o ato é legal, devendo ser observado pelos tabeliães e notários. Faculdade de descumprir, ou de cumprir, uma norma legal, fica meio difícil de entender juridicamente, a menos que a lei tenha sentido dispositivo.
O Conselho Nacional da Justiça – CNJ – firmou entendimento pela inexigibilidade da certidão negativa:
“RECURSO ADMINISTRATIVO EM PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. IMPUGNAÇÃO DE PROVIMENTO EDITADO POR CORREGEDORIA LOCAL DETERMINANDO AOS CARTÓRIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS QUE SE ABSTENHAM DE EXIGIR CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO PREVIDENCIÁRIO NAS OPERAÇÕES NOTARIAIS. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 47 E 48 DA LEI N. 8.2012/91. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE.
1. Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 1º, inciso IV da Lei nº 7.711/88 (ADI 394), não há mais que se falar em comprovação da quitação de créditos tributários, de contribuições federais e de outras imposições pecuniárias compulsórias para o ingresso de qualquer operação financeira no registro de imóveis, por representar forma oblíqua de cobrança do Estado, subtraindo do contribuinte os direitos fundamentais de livre acesso ao Poder Judiciário e ao devido processo legal (art. 5º, XXXV e LIV, da CF).
2. Tendo sido extirpado do ordenamento jurídico norma mais abrangente, que impõe a comprovação da quitação de qualquer tipo de débito tributário, contribuição federal e outras imposições pecuniárias compulsórias, não há sentido em se fazer tal exigência com base em normas de menor abrangência, como a prevista no art. 47, I, “b”, da Lei 8.212/91.
3. Ato normativo impugnado que não configura qualquer ofensa a legislação pátria, mas apenas legítimo exercício da competência conferida ao Órgão Censor Estadual para regulamentar as atividades de serventias extrajudiciais vinculadas ao Tribunal de Justiça local.
RECURSO IMPROVIDO.(CNJ - RA – Recurso Administrativo em PP - Pedido de Providências - Corregedoria - 0001230-82.2015.2.00.0000 - Rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - 28ª Sessão Virtual - julgado em 11/10/2017).
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua vez, vem rechaçando a exigência de certidão negativa para a prática de atos notariais:
Apelação – mandado de segurança – pretensão de afastar a exigência feita pelo tabelião de notas da apresentação da certidão negativa de débitos federais como condição para a lavratura de escritura com referência à alienação de bem imóvel – admissibilidade – a comprovação da regularidade fiscal não pode ser pressuposto da efetivação do registro da transação imobiliária, sob pena de configurar meio indireto de cobrança de tributos – sentença reformada para conceder a segurança. Recurso provido. (TJSP – Apelação Cível nº 0009830-11.2012.8.26.0053 – São Paulo – 12ª Câmara de Direito Público – Rel. Min. Venicio Salles – DJ 13.12.2012).
Em que pesem as três Súmulas do STF, e apesar da jurisprudência do E. TJ/SP vedando a exigência da certidão negativa, os tabeliães de nosso Estado, em sua maioria, continuam exigindo tal providência do vendedor, sob a alegação de que as normas da Corregedoria Geral da Justiça têm caráter meramente facultativo, e há também o perigo de responsabilização solidária pelo pagamento do tributo eventualmente devido.
Sempre que arraigado o costume de exigir certidão negativa, é muito difícil alterar essa cultura equivocada dos notários e registradores, mesmo havendo alteração legislativa em seu sentido lato.
As normas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, que facultou a dispensa de certidão negativa aos tabeliães e registradores, não podem se sobrepor ao entendimento esposado pelo CNJ, que tem competência em âmbito nacional para averiguar a regularidade das normas da Corregedoria da Justiça local, para regulamentar as atividades de serventias extrajudiciais vinculadas ao Tribunal.
Por derradeiro, não procede a resistência dos tabeliães escudados no perigo de responsabilização solidária pelo crédito tributário por aplicação do art. 134, VI do CTN:
“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
[...]
VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício”.
Verifica-se, de pronto, que não se trata de responsabilidade objetiva. O caput condiciona a responsabilidade dos tabeliães e escrivães a dois requisitos impostergáveis: a impossibilidade de o contribuinte satisfazer a obrigação principal e o fato de o terceiro (tabelião ou notário) ter uma vinculação indireta, por meio de ato omissivo ou comissivo, com a situação configuradora do fato gerador da obrigação tributária.
Pergunta-se: o que é que o ato de lavrar a escritura aquisitiva de um imóvel tem a ver com o fato gerador de tributos até então devidos? Não é a elaboração da escritura pública que desencadeia o fato gerador da obrigação tributária. Nem mesmo em relação ao ITBI, cujo fato gerador ocorre no momento do registro do título de transferência da propriedade no registro imobiliário (art. 1.245 do CC). O inciso VI, do art. 134 do CTN, não tem qualquer pertinência em relação ao tabelião. Talvez tivesse pertinência em relação ao oficial de registro, pois é o registro que transfere a propriedade imobiliária.
Portanto, invocar o inciso VI, do art. 134 do CTN para tentar justificar a exigência da certidão negativa não tem menor sentido jurídico, porquanto equivale a afirmar que a omissão da certidão negativa é que gerou o tributo no passado, incorrendo em uma argumentação teratológica.