1 INTRODUÇÃO
O escopo do presente é analisar a invisibilidade institucionalizada incidente no sistema prisional brasileiro em relação às lésbicas e à ausência de políticas para a promoção dos direitos fundamentais de tal minoria sexual. No Brasil, a legislação prevê amplas prerrogativas para a população carcerária feminina, desde condições adequadas de amamentação e cuidado com recém-nascidos, ao direito de visitas intimas de companheiros e companheiras, desde que respeitem as normas impostas.
Aludidas condições foram semeadas pelos mais diversos dispositivos, indo desde a Constituição Federal de 1988 às Regras de Bangkock, alcançando eficácia próxima de zero, face à invisibilidade que as presidiárias recebem após serem lançadas no sistema carcerário esfacelado pelas mazelas do Estado, principalmente as minorias que ali se encontram, restando apenas o apoio uma das outras, visto que até mesmo no núcleo familiar se tornam invisíveis, indignas e desprezadas.
As discriminações e prejulgamentos que cerceiam discussões de gênero, subordinando a mulher a um papel inferior ao homem, traçam um delineado de que os delitos cometidos por mulheres tenham uma maior depreciação diante da interpretação da sociedade. A responsabilidade que acomete mulheres sujeitas ao cárcere não reflete apenas em sua pessoa, mas nos filhos que deixou ao bel prazer, nos afazeres domésticos que deixou por fazer, no desgosto e vergonha para a família.
Tal constituição de gênero, voltada à submissão da mulher, faz com que a reprovação do delito por ela cometido seja intensificado, evidenciando tal afirmativa no estado de abandono familiar que se encontram as mulheres em situação carcerária brasileira. A prisão como ambiente punitivo de delitos não apenas priva a mulher da liberdade, mas de toda sua antiga vida, surgindo a necessidade se adaptar à realidade prisional.
Além disso, a doutrina invisibilizou os direitos sexuais das mulheres em situação carcerária, tratando dos direitos humanos em detrimento deste e, ainda, abordando o sistema penitenciário como um todo, sem exemplificar a feminilidade e a sexualidade das detentas. Tal violação de direitos humanos prisionais se encontra alicerçada pela invisibilidade vivida por mulheres que, muitas vezes renegadas por suas famílias, se veem vítimas de um Estado que pune além do necessário, tornando a sobrevivência das presidiárias um verdadeiro desafio e sua luta diária por dignidade e higiene se estreitando à medida que caem no esquecimento da sociedade.
A metodologia empregada na construção do presente parte do método dedutivo e do método historiográfico, empregando-se como técnicas de pesquisa: a pesquisa documental e a revisão de literatura sob o formato sistemático, bem como análise de dados secundários disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional.
2 A MULHER COMO PROPRIEDADE NA CULTURA BRASILEIRA
As discriminações e prejulgamentos que cerceiam discussões de gênero, subordinando a mulher a um papel inferior ao homem, traçam um delineado de que os delitos cometidos por mulheres tenham uma maior depreciação diante da interpretação da sociedade. A responsabilidade que acomete mulheres sujeitas ao cárcere não reflete apenas em sua pessoa, mas nos filhos que deixou ao bel prazer, nos afazeres domésticos que deixou por fazer, no desgosto e vergonha para a família. Tal constituição de gênero, voltada à submissão da mulher, faz com que a reprovação do delito por ela cometido seja intensificado, evidenciando tal afirmativa no abandono familiar que se encontram as mulheres em situação carcerária brasileira (SILVA, 2015, p. 58-59).
As brasileiras estão vencendo os estereótipos formados e alcançando novos espaços na cultura brasileira, mas a desigualdade de gênero é um fantasma que persegue a mulher brasileira aonde quer que vá, posto que os números são inegáveis: as mulheres são responsáveis pelo sustento de 37,3 das famílias. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais, em 2014, o número de mulheres com carteira de trabalho assinadas chegou a 43,25%. Neste sentido, não é notável a desigualdade de gênero, mas analisando dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Instituto Ethos é possível entender que as mulheres alcançam apenas 13,6% dos cargos de liderança, e ainda assim, ganham menos que os homens que ocupam as mesmas funções. Além de todos esses fatores, as mulheres, por sua maioria, necessitam conciliar sua vida doméstica com o trabalho, fato que de início torna a jornada de trabalho ainda mais difícil para elas (VASCONCELLOS, 2017, s.p.).
Em termos de violência, 85% das mulheres brasileiras têm medo de sofrer algum tipo de violência sexual, de acordo com a pesquisa Percepção da População Brasileira sobre Violência Sexual, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública/datafolha em 2016. Em 2016, o Brasil ocupava a 5ª posição no ranking mundial de violência contra a mulher, totalizando 13 feminicídios por dia. A mulher negra é o maior alvo de toda essa violência, vindo geralmente de alguém próximo. Segundo o relatório da Anistia Internacional, 70% dos estupros são cometidos por parentes, companheiros ou conhecidos da vítima. De acordo com pesquisa realizada no Instituto Avon em parceria com o Data Popular, em 2014, três em cada cinco mulheres jovens já sofreram violência nos relacionamentos (VASCONCELLOS, 2017, s.p.).
É importante, ainda, ressaltar o conceito de heterossexualidade compulsória, enquanto se discute o papel da cultura machista na sociedade brasileira, veja-se:
A heterossexualidade compulsória é um regime político que visa manter o acesso de homens aos corpos e capacidades laborais e reprodutivas de mulheres, através do conceito ferrenho de núcleo familiar, da monogamia, da dicotomia entre espaços públicos e privados, e de uma naturalização da mulher enquanto categoria reprodutiva resumida à sua especificidade biológica e, portanto inferior, complementar, existente apenas em oposição ao masculino, saída da costela (SAPATARIA RADICAL, 2016, online).
Neste sentido, é possível entender o papel de submissão ao qual a mulher é submetida física e culturalmente, motivando sua existência para agradar aos homens em todos os sentidos (SAPATARIA RADICAL, 2016, online). Às mulheres lésbicas, portanto, não resta muito além de resistência e invisibilidade, visto que estas ficam em condições ainda maiores de opressão diante de sua orientação sexual.
3 O CORPO FEMININO LÉSBICO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA
O termo “lesbianismo” identifica e a afasta o tema da homossexualidade em si, visto se tratar de um relacionamento composto por duas mulheres, que na atualidade se deparam em um contexto difícil na busca por uma “identidade” na qual tenham espaço e mais que isso, sejam compreendidas como iguais na sociedade. A comunidade LGBT têm conquistado muitos avanços quando se trata de direitos e aceitação junto à sociedade, embora alguns subgrupos recebam mais atenção que outros.
Neste sentido, vale dizer que os homossexuais masculinos são o grupo de maior avanço em todas as áreas, enquanto os transexuais, travestis e transgêneros são marginalizados e as lésbicas ocupam lugar de total invisibilidade (SASSE, 2016, s.p)
Antes que existisse ou pudesse existir qualquer classe de movimento feminista, existiam as lésbicas. Mulheres que amavam outras mulheres, que recusavam o comportamento esperado delas, que recusavam definir-se em relação aos homens. Aquelas mulheres, nossas antepassadas, milhares cujos nomes não conhecemos, foram torturadas e queimadas como bruxas, caluniadas em escritos religiosos, e mais tarde “científicos”, retratadas na arte e na literatura como mulheres bizarras, amorais, destrutivas, decadentes. Por um longo tempo as lésbicas foram a personificação do mal feminino (REVERSO ONLINE, s.d., online).
As lésbicas são invisibilizadas em produções audiovisuais, nas quais apenas ocupam lugar de fetiche, nas narrativas históricas, na literatura, nas famílias, políticas públicas, no mercado de trabalho e nos dados sobre violência, tornando até mesmo os dados de crimes por lesbofobia, difíceis de se estipular. Em vida ou em morte, a lesbianidade é ignorada por diversos setores e grupos sociais iguais (SANCHES, 2017, s.p.). A designer autônoma, Yasmin Marinho, relata que:
As lésbicas só são lembradas pelas próprias lésbicas. Ou a gente fala da gente mesma, das nossas questões, necessidades, demandas, seja no espaço que for, ou ninguém mais vai falar, não. Infelizmente é assim, enquanto cobram que as lésbicas lembrem e lutem por todos os grupos marginalizados da sigla LGBT, enquanto cobram que as lésbicas permaneçam em seus armários em nome de suas famílias, pela manutenção dos seus empregos, nem gays, bissexuais e trans, nem família e empregadores se importam com nós iguais (MARINHO apud SANCHES, 2017, s.p.)
Numa história marcada pela invisibilidade, as mulheres lésbicas sofreram diversas tentativas de ter suas histórias completamente apagadas, desde a destruição de poemas, escritos e fotos à internação compulsória e tratamentos de tortura realizados pela medicina e igrejas, incluindo o casamento forçado. A história lésbica é um resgate difícil, diante dos silêncios acometidos durante os séculos, mas também marcada por muita luta e resistência, pois novamente traçam seus destinos e memórias, sem deixar que calem suas vozes, para que o mundo saiba sobre si e suas iguais (SANCHES, 2017, s.p.)
4 A INVISIBILIDADE DO CORPO LÉSBICO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO
A dignidade da pessoa humana foi instituída como um dos pilares da Constituição Federal e a igualdade de gênero evidenciada no art. 5º, I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (BRASIL, 1988). Tal dignidade não existe na prática vivenciada pelas presidiárias brasileiras, ainda que existam aparatos legais diversos, tais como a própria Carta Magna, as Regras de Bangkok, o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, além de inúmeros Tratados Internacionais com os quais o Brasil está comprometido. O pressuposto utilizado é o de proteção da mulher custodiada, ainda quando se tratando de direitos sexuais, da liberdade de exercer sua sexualidade e suas prerrogativas como cidadã. Ressalte-se ainda que o sistema carcerário brasileiro foi pensado por e para homens, invisibilizando a mulher desde seus primórdios (BORGES, 2011, p.65-66).
É irrefutável a obrigatoriedade do Estado em prover direitos fundamentais aos que estão sob sua “proteção” e também observar a realidade vivida pelas mulheres que vivem em cárcere. Entretanto, o Estado vem deixando o princípio da dignidade da pessoa humana engaiolado em qualquer das celas obscuras e insalubres, convivendo com esgotos abertos e absorventes íntimos produzidos com miolo de pão.
As queixas das sobreviventes submetidas ao poder do Estado não se caracterizam por reivindicações banais, mas pelo direito de consultas ginecológicas, visitas íntimas, celas minimamente habitáveis, atendimento psicológico, mantimentos para as detentas e seus bebês, que nascem e ficam por meses como se criminosos fossem, padecendo diante do descaso de um Estado que não direciona seu olhar a tais necessidades, transformado uma medida punitiva em verdadeira tortura à seres humanos que estão encarcerados para pagar por delitos cometidos contra uma sociedade que as negligencia (BRASIL, 2010, p. 150).
O prefácio da obra Presos que menstruam, corrobora a compreensão da precariedade vivida pela população carcerária feminina no Brasil, note-se:
É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam (QUEIROZ, 2015, s.p.).
A autora Nana Queiroz relata que ao entrevistar detentas para sua obra presos que menstruam, relata que:
[...] O sistema carcerário brasileiro trata as mulheres exatamente como trata os homens. Isso significa que não lembra que elas precisam de papel higiênico para duas idas ao banheiro em vez de uma, de papanicolau, de exames pré-natais e de absorventes internos (QUEIROZ, 2015, s.p.).
A prisão como ambiente punitivo de delitos, não apenas priva a mulher da liberdade, mas de toda sua antiga vida, surgindo a necessidade se adaptar à realidade prisional. Além disso, a doutrina invisibilizou os direitos sexuais das mulheres em situação carcerária, tratando dos direitos humanos em detrimento deste e ainda, abordando o sistema penitenciário como um todo, sem exemplificar a feminilidade e a sexualidade das detentas (FERNANDES, 2005).
Ainda existe grande complexidade acerca da sexualidade feminina e sua imposição na sociedade, porquanto as mulheres se veem arraigadas a uma sociedade patriarcal, principalmente ao se tratar de mulheres presas. Ao exigir esses direitos, se deparam com grande burocratização para concessão de visita íntima, fatores que confirmam a discriminação dos direitos sexuais no sistema prisional feminino (BORGES, 2011, p. 73).
O aviltamento da dignidade da pessoa humana ocorrido no sistema carcerário brasileiro é alvo da invisibilidade e é entendido pela sociedade como um “castigo” para os que cometeram delitos, na ideia de que, ao serem inseridos nos presídios, deixam suas prerrogativas do lado de fora das grades. Daí a imprescindibilidade em se falar em direitos humanos prisionais, para garantia de uma qualidade de vida mínima para quem se encontra nessa situação, sendo que a privação de liberdade, por si só, é a pena à qual foram submetidos, não devendo existir nenhuma privação de direito além deste, estabelecido em lei.
A violação de dignidade prisional é preocupante, pois não pode ser desconsiderada sob nenhuma justificativa, ainda que esta seja resultado da prática de qualquer tipo de delito. A condição humana, por si só, é requisito indispensável para a prática e efetividade da dignidade da pessoa humana. O que ocorre, atualmente, é que a ideia de ressocialização do preso se vê massacrada diante da violação e corrompimento dos indivíduos postos sob condições indignas, bem como a precariedade vivida nas instituições carcerárias (BERTOCINI; MARCONDES, 2013, p. 14).
A punição feminina não se restringe ao delito cometido, mas ao fato de frustrar um ideal de feminilidade que foi imposto às mulheres desde o nascimento. Apesar dos avanços jurídicos estabelecidos no sistema prisional feminino, assegurando direitos específicos às detentas na Lei de Execução Penal e na Constituição Federal, a prática penitenciária é semelhante ao sistema carcerário masculino, trazendo danos irreparáveis às detentas. As presas são submetidas a situações degradantes, mantidas em lugares insalubres, expostas aos mais variados tipos de violência, sem qualquer intervenção estatal, deixando os Direitos Humanos completamente adormecidos dentro das penitenciárias brasileiras (MACHADO; SCHIRMER, 2016, p. 6).
Conforme a Organização Just Detention International, os LGBT em situação carcerária são os mais vulneráveis dentro do sistema prisional. Neste diapasão, é necessário que se haja um preparo para acolher essa população em condições minimamente dignas dentro do ambiente prisional, enquanto este cidadão estiver sob a tutela do Estado. Os casos de violência física e sexual são incontáveis e a violação do direito de expressão da liberdade sexual dos LGBT configura grave conduta discriminatória à diversidade de gênero.
Nas penitenciárias brasileiras, poucos estados implementaram alas específicas para o público LGBT, ainda assim, essas dependências não estão dispostas em todas as penitenciárias, restando apenas nas principais. Existem algumas resoluções utilizadas nos sistemas penitenciários, que dispõem sobre o assunto em tela, entretanto, o mesmo fica sob critério da diretoria das penitenciárias, visto que não existe qualquer sanção para seu descumprimento.
Em âmbito nacional apenas há que se falar na Resolução Conjunta 1 proposta pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, publicada em 17 de abril de 2014, estabelecendo os parâmetros de acolhimento para pessoas LGBT em privação de liberdade no Brasil. As garantias já alcançadas são um passo em direção ao que se pretende, mas não é o mínimo necessário para uma vida digna dentro do sistema prisional brasileiro, visto que tais regras não são cumpridas em sua integralidade (SESTOKAS, 2015, s.p).
O encarceramento é visto pela sociedade como ato de vingança pelos delitos cometidos e não como um ambiente para se promover a ressocialização, esquecendo-se, portanto, que o indivíduo preso, ao cumprir sua pena, voltará às ruas com uma bagagem de experiências traumáticas e negativas ainda maior que a anterior, aumentando gradativamente o nível de probabilidade de reincidência criminal. A ideia de que o sistema prisional é um lugar que não merece atenção e direitos básicos para uma vida digna é refletido pela omissão da sociedade em relação ao tema, diante da premissa de que quem pratica um crime não merece qualquer tipo de atenção ou medida social, ou seja, são considerados não humanos, aos olhos da sociedade (BARROS; JORDÃO, 2002, p.7). O Estado atua como maior violador dos direitos prisionais, veja-se:
A crise do Sistema Penitenciário do Brasil reflete a incapacidade dos governos em assumir o gerenciamento das unidades prisionais como ambientes de reeducação e recuperação social. Ao contrário, são espaços dadesumanização dos indivíduos forçados a conviver com as condições insalubres: espaço físico limitado, ausência de higiene, inúmeras doenças, e a precariedade de acesso à Justiça e aos direitos fundamentais, previstos nos tratados internacionais, na Constituição Brasileira de 1988 e na Lei de Execução Penal (BARROS; JORDÃO, 2002, p.7).
Diante do perfil das mulheres presas no Brasil, depara-se com um considerável número de detentas por tráfico de drogas, motivados pelo sustento do vício, da família ou até mesmo por influência dos companheiros. Via de regra, são mulheres jovens, de 20 a 35 anos, com baixa escolaridade, mas fortes vínculos familiares, que perdem suas vidas e sua dignidade, ao entrar no sistema prisional brasileiro, tornando-se invisíveis não somente ao Estado, mas às famílias, que, aos poucos, deixam de comparecer às visitações, deixando as detentas à própria sorte, visto que o sistema não foi criado para atender ao gênero feminino, tendo sido pensado para atender à população carcerária masculina e não promovendo qualquer tipo de adaptação carcerária com a inserção e aumento populacional carcerário feminino no Brasil (NEIA; MADRID, 2015, p. 13).