Das Mädchen aus der Fremde [1]
(...)
Sie war nicht in dem Tal geboren,
Man wußte nicht, woher sie kam,
(...)
von Friedrich Schiller
1. Introdução
O título do poema de Friedrich Schiller com o qual iniciamos este artigo traz consigo a forma como Hanna Arendt se descreveria na fase adulta, a menina vinda do estrangeiro, do desconhecido e não familiar (DUARTE in AQUINO; REGO, 2014). Nascida Johanna Arendt no subúrbio de Hanover em outubro de 1906, cresceu em uma família de judeus assimilados. Suas ideias e pensamentos podem ser tomados como reflexo das tensões sociais vividas ao longo século XX, e que persistem ainda nesse início de século XXI. Foi uma filósofa política, apesar da pretensão de distanciar-se do termo, que exerceu grande influência na teoria política do século passado, notadamente em face dos temas contemporâneos em torno dos quais gravitam sua obra, como o totalitarismo, a vida política, a condição humana, o pluralismo e os direitos humanos, somente para citar alguns. Embora de forma recente, suas ideias também estão sendo debatidas entre os educadores, demonstrando a possibilidade da perplexidade e, por extensão, a coragem de pensar/agir adversativamente (AQUINO; REGO, 2014).
Revisitando a filosofia política clássica, Hannah Arendt propõe-se a realizar uma crítica da filosofia política ocidental, notadamente do seu projeto de modernidade, que acabou por produzir os horrores do totalitarismo, conclamando a humanidade a pensar e agir por amor ao mundo (DUARTE in AQUINO; REGO, 2014).
Claro que sua reflexão sobre o modo de agir no espaço público não poderia prescindir da análise de um dos processos mais importantes na socialização dos indivíduos, a educação. Embora ela mesma tenha se considerado uma leiga em assuntos de educação, acabou por produzir um ensaio chamado “A Crise na Educação”, publicado pela primeira vez na Partisan Review no outono de 1958 e posteriormente reimpresso na obra “Entre o Passado e o Futuro” em 1961 (CARVALHO in AQUINO; REGO, 2014).
Na verdade, de acordo com sua biógrafa Elisabeth Young-Bruehl, esse ensaio, em sua reimpressão, veio como uma proposta de melhor esclarecer suas reflexões sobre o programa de integração escolar forçada de crianças negras no Sul dos Estados Unidos, no final dos anos 50 do século passado, a que se opôs no texto “Reflexões sobre Little Rock” e pelo qual sofreu severas críticas. Em “A Crise na Educação” Hannah Arendt problematiza os temperamentos do político e do social no fenômeno educacional, utilizando-se das categorias trabalhadas ao longo de toda a sua obra.
Neste trabalho, procuraremos aproximações dos conceitos fornecidos por Hannah Arendt com a crise da educação, iniciando uma reflexão de como o sistema de cotas[2], instituído no Brasil pela lei nº 12.711/2012, pode ser tomado nesse processo e, em especial, em relação às suas categorias de compreensão da crise do mundo moderno.
2. O Público e o Privado em Hannah Arendt
Em sua obra “A Condição Humana”, onde aborda os conceitos do trabalho (como necessidade da sobrevivência biológica – animal laborans), obra (produção ou fabricação de coisas duráveis – homo faber) e ação (atividade política exercida sem a mediação das coisas – bios politikos), para refletir sobre o que estamos fazendo, dedicou capítulo específico para tematizar sobre os domínios do público e do privado.
Nesse ponto, realiza uma genealogia da ação política cuja referência está pautada pela oposição entre o espaço comum e o espaço privado, pela demarcação explícita feita pelos antigos entre as necessidades de sobrevivência e as demandas da liberdade, uma vez que na polis o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon) (ARENDT, 2014, p. 29).
Para Arendt, ao tempo da polis na esfera privada, as necessidades e carências obrigavam os indivíduos a viverem juntos, sendo esse o traço distintivo da esfera do lar. Portanto, nascida da necessidade, a esfera privada tinha todas as suas atividades dirigidas por essa carência. Nesse espaço privado vigia o reino da violência, na medida em que o poder despótico era exercido pelo Chefe de família, subordinando mulheres, filhos, escravos, metecos, em função das necessidades de alimentação, alojamento, segurança.
Esclareça-se que nessa condição a mulher era propriedade do chefe de família, cuja função bem definida consistia em procriar e cuidar dos filhos. O fato de que a manutenção individual devesse ser a tarefa do homem e a sobrevivência da espécie a tarefa da mulher era tido como óbvio, e ambas as funções naturais, o trabalho do homem para fornecer o sustento e o trabalho da mulher no parto, eram sujeitas à mesma premência da vida (ARENDT, 2014, p. 37).
Para Arendt, é muito provável que o aparecimento da própria polis e do espaço público comum tenha sido influenciado de forma direta pelo domínio privado da família e do lar. Isso porque para participar dos assuntos do mundo o homem necessitava desincumbir-se dos assuntos afetos ao reino da necessidade. Vale dizer, o homem deveria possuir uma casa, um lar propriamente seu, onde exercesse com plenitude seu poder de vida e morte. Esse era o passaporte da vida pública ao tempo da cidade-estado.
O Certo é que, a partir da cidade-Estado o homem, ou melhor, o chefe de família, passou a ter a possibilidade de empenhar toda a sua vida em ação e em discurso no âmbito da esfera política. De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas e constituíam o que Aristóteles chamava de bios politikos: a ação (práxis) e o discurso (lexis), das quais surge o domínio dos assuntos humanos (...), de onde está estritamente excluído tudo o que é apenas necessário e útil (ARENDT, 2014, p. 30).
Em oposição à violência exercida no âmbito do espaço privado, as decisões no espaço público haviam de ser tomadas mediante palavras e persuasão em vez de força e violência. Era, portanto, o domínio da político o reino da liberdade cuja condição de ingresso era a superação das carências da vida do lar.
No entanto, o advento do espaço social trouxe como consequência, para além da redefinição das fronteiras entre o privado e o político, uma ressignificação de conceitos que influenciaram na vida cotidiana do homem e do cidadão. Isso ocorreu como decorrência lógica da assunção das atividades que governavam a satisfação das necessidades da esfera do lar para o âmbito da esfera pública, próprio do momento da modernidade, considerado aqui o longo hiato vivenciado no período do medievo.
O que hoje chamamos de privado é uma esfera de intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente a qualquer período da antiguidade grega, mas cujas peculiares multiplicidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna (ARENDT, 2014, p. 46). De qualquer forma, o que Hannah Arendt já nos aponta é o fato de que essa mudança das preocupações da esfera privada da família e da casa para o domínio da política oportunizou a anulação da a oposição clássica entre o público e o privado.
O fato é que fica claro, no âmbito da contemporaneidade, que as noções clássicas de público e de privado já não conseguem abarcar as complexas relações existentes no nosso dia a dia, sendo certo que já com a nascimento da modernidade o paradigma público-privado fora retomado já sobre um outro viés.
O advento de um espaço social e a crescente valorização de uma esfera de intimidade colocaram em xeque a possibilidade de se pensar o mundo a partir das tradicionais categorias do público e do privado, uma vez que seus postulados não se deixam subsumir pelos antigos esquemas conceituais (BEDÊ, 2008, p. 25). Para Hannah Arendt, a progressiva indistinção entre os domínios do público e do privado, como marca expressiva da consolidação do mundo moderno, verificada pela indiscutível ascensão do social, com o crescimento das atividades do lar (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público (...) no qual os interesses privados assumem importância pública (ARENDT, 2014, p. 40 e 43). O social espraia-se sobre o privado e o público.
Esse fenômeno é facilmente constatado quando observamos, no âmbito do direito, o processo de constitucionalização do direito privado, na medida que os princípios constitucionais passaram a servir de parâmetro de ponderação na aplicação das regras do direito privado. No mesmo sentido podemos destacar, ainda no âmbito do Direito, a chamada teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Trata-se de uma tese, aceita integralmente no Brasil, já que afirmada pelo próprio STF[3], de forma relativa na Alemanha, onde teve berço, e inadmitida, por óbvio, nos Estados Unidos da América, onde se veicula a possibilidade de os direitos fundamentais serem acolhidos e exigidos nas relações entre particulares, nas relações privadas, portanto.
Para o bem ou para o mal, os ensinamentos de Hannah Arendt nos alertam que estamos em posição bem melhor para compreender as consequências, para a existência humana, do desaparecimento de ambas essas esferas da vida – a esfera pública, porque se tornou uma função da esfera privada, e a esfera privada, porque se tornou a única preocupação comum que restou (ARENDT, 2014, p. 85). Essa noção do público, do privado e da ascensão do social, por óbvio, terão impacto na forma como empreendeu suas reflexões sobre o fenômeno da socialização pela via da educação.
3. A ação em “A Condição Humana”
Da mesma forma que a reflexão sobre o público e o privado, com inspiração nos clássicos, é também em “A Condição Humana” que dedica capítulo específico para tematizar sobre a ação. Assim como a atividade do trabalho refere-se à manutenção da vida, a atividade da obra diz respeito à conservação e renovação do mundo, a atividade da ação relaciona-se à pluralidade humana, materializando no ator político a singularidade da qual é detentor desde o nascimento. A pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos (ARENDT, 2014, p. 218).
Em um sentido mais específico, a ação é a maneira utilizada pelos homens para revelar quem são uns aos outros. Nesse processo o discurso é indispensável. A ação desencadeia o novo, tendo no espaço público o local adequado para adquirir realidade. O que a ação introduz no mundo é a unicidade de alguém, ou seja, não a iniciativa que ele tem de fazer alguma coisa, mas a iniciativa que ele é (MAGALHÃES, 2006, p. 23).
Não incidindo sobre qualquer objeto, mas apenas entre pessoas, a ação as mantem juntas através de uma teia de relações. No caso, o ator é ao mesmo tempo agente e paciente, na medida em que se movimenta entre outros atores e em relação a eles. As estórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém as iniciou e delas é o sujeito, na dupla acepção da palavra, seu ator e seu padecente, mas ninguém é seu autor (ARENDT, 2014, p. 228).
Essa ação e reação dos indivíduos sempre gera uma nova ação e traz implícita as características da ilimitabilidade, imprevisibilidade, irreversibilidade e autonomia da ação. Ao se inserir no mundo mundano através de palavras e atos o homem experimenta um segundo nascimento. A esse segundo nascimento Hannah Arendt chama de natalidade. Tal inserção não é imposta pela necessidade, nem pela utilidade, mas sim pela finitude da existência e dos propósitos humanos.
Para Arendt, o remédio para a irreversibilidade e imprevisibilidade da ação são as potencialidades da própria ação. Em suas palavras: A redenção possível para o constrangimento da irreversibilidade – da incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. O remédio para a imprevisibilidade, para a caótica incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer e cumprir as promessas. As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve para desfazer os atos do passado, cujos “pecados” pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade seria possível nas relações entre os homens – para não mencionar todo tipo de durabilidade (ARENDT, 2014, p. 293).
4. Hannah Arendt e a reconstrução dos Direitos Humanos
Um dos fiadores da introdução da obra de Hannah Arendt no Brasil, Celso Lafer[4], em livro clássico sobre a temática dos direitos humanos – “A Reconstrução dos Direito Humanos”, veicula sua tese fazendo declaradamente uma aproximação com o pensamento de Hannah Arendt. Utilizando o método dicotômico de aproximações sucessivas, tão presente na obra de Norberto Bobbio, de quem sofreu forte influência intelectual, aborda a temática dos direitos humanos que de maneira dispersa é tratada na obra de Hannah Arendt.
Começa por qualificar a autora de referência com a dicotomia raposa/ouriço, cuja inspiração no poeta grego Arquíloco foi aproveitada pelo filósofo inglês Sir Isaiah Berlin para classificar os escritores e pensadores, entre aqueles com visão centrifuga e pluralista (raposa) e os de visão centrípeta e monista da realidade (ouriço). Neste aspecto particular considera Hannah Arendt ouriço no diagnóstico da ruptura dos direitos humanos proporcionada pelos horrores do totalitarismo, seja de inspiração capitalista (Nazismo/Fascismo), seja de inspiração socialista (Stalinismo), o que tornou as pessoas descartáveis, valendo a lógica do “tudo é possível” dos campos de concentração. De outra banda a considera raposa na percepção da realidade pela sua proposta de reconstrução dos direitos humanos baseada na pluralidade e diversidade, cuja garantia somente poderia ser deferida por uma ordem universal de prevalência dos direitos humanos independentemente das nacionalidades.
Especificamente sobre o capítulo OS DIREITOS HUMANOS E A RUPTURA da obra de Celso Lafer, começa por problematizar a ruptura dos direitos humanos ligando sua crise ao advento do “estado totalitário de natureza”, classificando o totalitarismo como uma proposta de organização da sociedade cujo objetivo nada mais é que a dominação total dos indivíduos. Para ele, o caráter supérfluo dos seres humanos assumido pelo totalitarismo desconsidera a especificidade do ser humano como valor-fonte de todos os valores sociais e fundamento da ordem jurídica. Assim, na medida em que a dignidade do ser humano ganha expressão jurídica nos direitos fundamentais, a sua abolição diz respeito de forma direta à crise dos direitos humanos verificada no período entre as duas grandes guerras mundiais. Considera que tal postura de Hannah Arendt constitui uma pista importante com indicações relevantes para a reconstrução da temática dos direitos humanos.
Traz em seguida a origem e traça o desenvolvimento dos direitos humanos através da tradição ocidental. Começa pela indicação bíblica de que “Deus criou o homem à sua imagem” para asseverar que o valor atribuído ao ser humano como fundamento dos direitos humanos é uma asserção que faz parte da tradição, rompida esta pela experiência totalitária. Identifica ainda na tradição grega a referência necessária aos direitos do homem, apontando no estoicismo um movimento importante de divulgação de uma nova dignidade do ser humano após o fim da democracia e das cidades-estados. Aponta a tradição judaico-cristã como importante fonte dos direitos humanos pelo valor absoluto consagrado a cada pessoa humana, pensamento que tornou possível a temática dos direitos do homem.
Faz referência como importante elemento da tradição a fundamentar os direitos humanos o individualismo, pensamento que ao colocar o homem no centro das preocupações, inclui a subjetividade como dado fundamental da realidade. Do mesmo modo vê na reforma que promoveu a ruptura da unidade religiosa, aspiração da liberdade de credo, como outro fator importante para o desenvolvimento da doutrina dos direitos humanos.
Finalmente encontra nos contratualistas da ilustração o fundamento filosófico que permitiu a positivação do tema dos direitos humanos nas declarações de direito que se seguiram às chamadas revoluções burguesas, tendo em vista que as revoluções Americana e Francesa tinham por escopo dar uma dimensão permanente dos direitos concebidos na nova ordem estatal. Essa positivação iria se mostrar relativa do ponto de vista da intenção de permanência dos direitos humanos por ocasião do totalitarismo.
Com essa evolução histórica aponta o movimento de afirmação jurídico-política dos direitos humanos, consagrados em primeira segunda e terceira gerações. Para tal finalidade utiliza a dicotomia, de forma não excludente, ex parte populi/ex parte pincipis, com a finalidade de analisar os direitos humanos sob a perspectiva daqueles submetidos ao poder, no primeiro caso, em inter-relação com a daqueles detentores do mesmo poder, no segundo. Assim é que os direitos humanos de primeira geração são aqueles inerentes ao indivíduo, constituem um não fazer por parte do Estado, estão ligados à perspectiva da liberdade, tido como direitos naturais e precedentes ao contrato social. São os direitos civis e políticos consagrados nas declarações de Virgínia e Francesa.
Já os direitos humanos de segunda geração são aqueles vinculados ao Estado de bem-estar, constituem um fazer para o Estado e um direito de crédito para o indivíduo, havendo perfeita complementaridade com os direitos de primeira geração na perspectiva ex parte Populi, visto que buscam dar efetividade à realização dos direitos civil e políticos. São os direitos sociais, econômicos e culturais, dentre eles o direito à educação.
Arremata que a heterogeneidade jurídica dos direitos de primeira e segunda gerações propiciou que sua tutela no âmbito do sistema universal de proteção dos direitos humanos do pós-guerra tivesse que ser definida em dois documentos distintos, o que refletia a divisão ideológica dos blocos vencedores da segunda guerra mundial e que prevaleceu no mondo até o final da guerra fria.
Os direitos denominados de terceira geração são aqueles considerados de inspiração e titularidade coletiva, como o da autodeterminação dos povos, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à paz, dentre outros.
Ao final do capítulo expõe em dois tópicos a relação entre o princípio das nacionalidades e a crise dos direitos humanos ocorrida no período entre guerras. Começa por conceituar a nacionalidade como o vínculo jurídico-político de um determinado povo a um dado Estado, como fundamento da cidadania que viabiliza o exercício dos direitos fundamentais. Assevera que o final da primeira guerra mundial proporcionou o redesenho do mundo que propiciou o aparecimento de um grupo de pessoas excluídas de quaisquer nacionalidades, fato que, aliado ao desenvolvimento do positivismo jurídico, rompendo o paradigma da filosofia do direito, permitiu que nos estados totalitários o ordenamento jurídico excluísse da fruição dos direitos humanos os povos deslocados no mundo, daí a ruptura que inaugurou a lógica do “tudo é possível” experimentado nos campos de concentração.
Embora não tratado no capítulo analisado, a Reconstrução dos Direitos Humanos de Celso Lafer traz a proposta Arendtiana de conceituar a cidadania como o direito a ter direitos, cuja proteção há de ser pensada no âmbito universal. Vale dizer, um sistema universal de proteção dos direitos fundamentais seria a única forma de prevenir o ressurgimento de regimes totalitários e uma nova ruptura com a dignidade humana. A obra de Celso Lafer, ao propor um diálogo com as ideias de Hannah Arendt nos oferece uma reflexão positiva que viabilize a estabilidade das relações entre os homens através da mediação necessária dos direitos humanos.
Essa perspectiva de reflexão, do ponto de vista local, pode nos remeter ao problema da violência em todas as suas modalidades, que de certa forma, e por outra via que não a da nacionalidade e a quebra do paradigma da filosofia do direito, mas pelas atuais condições sociais, políticas e econômicas, também promove uma ruptura com o princípio da dignidade humana. O mesmo raciocínio vale para a análise da conjuntura nacional, acrescido do fato de que hoje observamos uma verdadeira guinada neoconservadora que tem, de forma escandalosamente explícita (como nunca antes se viu na história desse país), tentado a todo custo subtrair conquistas fundamentais reconhecidas na Constituição Cidadã e que repercutem de forma direta na fruição dos direitos fundamentais.
No plano internacional, chama atenção o problema dos refugiados, na ordem do dia da imprensa internacional, pois a humanidade tem assistido passiva à tragédia humana dia a dia refletida no sofrimento desses deslocados do mundo[5]. Para além do reflexo das atuais condições sociais, políticas e econômicas, é uma situação que nos remete inclusive ao fundamento Arendtiano da relação entre nacionalidade e acesso aos direitos humanos. Tal circunstância nos força à reflexão de que há necessidade premente de fortalecer mais e mais o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a fim de que esse flagelo não nos deixe a todos envergonhados pela incapacidade de enfrentar e dar solução a um problema que, de tempos em tempos, volta a assombrar a humanidade, trazendo a tiracolo o medo do horror e a presença assustadora do fantasma do totalitarismo.
O fato é que as reflexões de Hannah Arendt sobre o fenômeno do totalitarismo marcaram profundamente o pensamento jurídico, notadamente pelo desenvolvimento no pós-guerra da teoria dos direitos humanos como materialização jurídica da dignidade do ser humano e o “direito a ter direitos” pautado no respeito à liberdade, como um espaço que abriga a pluralidade e, a partir dela, constitui esfera política e cria uma realidade compartilhada (CARVALHO in AQUINO; REGO, 2014). E desse respeito à pluralidade de que trata o sistema de cotas, sobre o qual iremos tratar em seguida.