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A criminalização da homotransfobia e a judicialização da política no STF como forma de concretizar direitos fundamentais

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Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADO nº 26/DF, equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, aplicando a Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

  • A decisão foi baseada na interpretação de que o racismo é um fenômeno de segregação social, não se limitando a aspectos biológicos ou antropológicos, mas também abrangendo discriminação contra grupos sociais específicos.

  • Apesar de constituir um avanço na proteção de direitos fundamentais da comunidade LGBT, a decisão suscitou debates sobre possíveis violações aos princípios da separação dos poderes e da reserva legal, uma vez que criminalizou uma conduta sem lei específica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO STF E A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SEM DEMOCRACIA

A judicialização da política pode ser conceituada, em suma, como um fenômeno jurídico-político que atribui o ônus da definição de aspectos da vida em sociedade ao Poder Judiciário, o que deveria, no entanto, ser tarefa de instâncias políticas, ou seja, dos representantes eleitos pelo povo.

Nas palavras de Luís Roberto Barroso (2018, pp. 44-45):

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. [...] Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito.

No Brasil, tal fenômeno encontra guarida no próprio desenho institucional criado pela Lei Maior, que franqueou poder e autonomia jamais vistos ao Judiciário, com uma ampla gama de competências institucionais, estrutura hipertrofiada e um complexo sistema de controle de constitucionalidade.

Aliado a isso e à inércia do Poder Legislativo quanto à disciplina de temas polêmicos, a postura ativista do Supremo Tribunal Federal permitiu grandes avanços no que tange à concretização de direitos fundamentais de grupos minoritários. A interpretação ampliativa da Constituição reconheceu direitos e valores não expressamente previstos, muitas vezes exercendo um papel contramajoritário, isto é, decidindo a contrario sensu da vontade das maiorias, com o escopo de conferir-lhe maior eficácia e extensão.

 Como visto, a configuração institucional definida em 1988 confere ao Poder Judiciário e, especialmente, ao STF grande protagonismo, o que não constitui, necessariamente, violação ao princípio da separação dos poderes. Contudo, a falta de padrões decisórios bem definidos e a falta de vinculação à sua própria jurisprudência advoga contra a segurança jurídica e a legitimidade de seus julgados.

 Para tratar dos amplos poderes conferidos ao Supremo Tribunal Federal pela Constituição Federal de 1988, o professor Oscar Vilhena Vieira cunhou o termo “supremocracia”, definido por ele como:

[...] o poder sem precedentes conferido ao Supremo Tribunal Federal para dar a última palavra sobre as decisões tomadas pelos demais poderes em relação a um extenso elenco de temas políticos, econômicos, morais e sociais, inclusive quando essas decisões forem veiculadas por emendas à Constituição. A supremocracia é uma consequência da desconfiança na política e da hiperconstitucionalização da vida brasileira. [...] A supremocracia também tem sido favorecida pela sua ampla discricionariedade, decorrente da ausência de uma cultura consolidada de precedentes no país; da dificuldade do Tribunal de estabelecer standards interpretativos; assim como da indisposição do STF de se submeter apenas àquilo que foi pedido pelas partes. (VIEIRA, 2018, pp. 162-163)

Quanto ao julgamento da ADO nº 26/DF, embora louvável no quesito de proteção à comunidade LGBT, é possível afirmar que se trata de um precedente perigoso, uma vez que relativiza o princípio da reserva legal em matéria penal, insculpido no inciso XXXIX, do artigo 5º, da Lei Maior, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 2020). Ao equiparar a homotransfobia ao racismo, o efeito prático da decisão foi o de criminalizar uma conduta sem lei, o que é capaz de gerar enorme insegurança jurídica:

Hoje, é genericamente aceita a noção de que os direitos fundamentais só podem ser restringidos em caráter geral por meio de lei em sentido formal. Isso ocorre tanto em matéria de restrições expressamente autorizadas pela Constituição como quando se trata de restrições implicitamente autorizadas. É que, se a Constituição exige a forma de lei ao permitir expressamente uma restrição, não haveria sentido algum em afastar essa exigência nas hipóteses em que as restrições aos direitos não decorrem de autorização constitucional explícita. Em ambos os casos, o princípio jurídico aplicável é o da “reserva de lei restritiva”. (PEREIRA, 2018, p. 344)

Não obstante ser juridicamente criticável, verifica-se que, cada vez mais, as instâncias políticas brasileiras estão se afastando dos princípios fundamentais da República, tais quais o princípio da dignidade da pessoa humana e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer sorte, ignorando os pleitos de grupos vulneráveis.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal e o sistema de controle de constitucionalidade se firmaram como um importante bastião da luta contra a opressão de grupos majoritários, ignorando suas vontades e promovendo direitos sem democracia, nos dizeres de Yascha Mounk (2019, p. 97):

[...] Em momentos de crise, juízes que estejam isolados da vontade popular são mais capazes de proteger as minorias vulneráveis e fazer frente às tentativas de tomada do poder por déspotas. O controle de constitucionalidade é uma salvaguarda necessária.

E, no entanto, nossa defesa do controle de constitucionalidade não deve nos cegar para sua natureza: a pura verdade é que ela remove da contestação política muitos assuntos sobre os quais as pessoas têm opiniões fortes. É perfeitamente razoável supor que, digamos, proteger as minorias sexuais e religiosas da discriminação é tão importante que justifica ignorar a vontade do povo. Mas se for esse o caso, a honestidade intelectual exige que admitamos a natureza da instituição com a qual estamos tão comprometidos: embora muitas vezes vá contra a vontade popular, podemos então dizer que o controle de constitucionalidade é justificado pelo fato de que protege os direitos individuais e a soberania da lei.

Assim, em uma visão geral, a concretização de direitos fundamentais pela via judicial, longe de ser a maneira mais adequada para tanto, se sobressai como a alternativa mais eficaz para grupos marginalizados pelo restante da sociedade.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 O julgamento da ADO nº 26/DF representou grande avanço para a proteção de indivíduos historicamente vulneráveis que compõem a comunidade LGBT, mas constitui um precedente juridicamente criticável, eis que flexibilizou o princípio da reserva legal em matéria penal.

O STF, in casu, atuou muito mais como instância política do que propriamente jurídica, o que é característica do paradigma constitucional contemporâneo, que se assenta no pós-positivismo e impõe interpretação que tende a se distanciar da legalidade estrita e a se aproximar da moral, primando pela idéia maior de justiça social.

A judicialização e o ativismo do STF não constituem apenas os efeitos do desenho institucional brasileiros, mas também a consequência da postura alheia do Congresso Nacional aos problemas da minoria LGBT. 

Por todo o exposto, ao não se omitir no caso em tela, o Pretório Excelso foi inovador e garantiu maior eficácia aos valores basilares da Constituição Federal, como o princípio da dignidade da pessoa humana e a promoção do bem de todos, sem preconceitos, aprofundando a noção de democracia e evitando os desígnios tirânicos de grupos majoritários. Entretanto, é necessário que a Corte fortaleça sua jurisprudência e estabeleça standards interpretativos coesos, sob pena de incorrer, no futuro, em graves contradições e enfraquecimento de sua legitimidade.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº  4.277/DF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Perda parcial de objeto. Recebimento, na parte remanescente, como Ação Direta de Inconstitucionalidade. União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Convergência de objetos entre ações de natureza abstrata. julgamento conjunto. [...] Requerente: Procuradora-Geral da República. Relator: Min. Ayres Britto, 05 mai. 2011. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, 14 out. 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acesso em: 19 jan. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – exposição e sujeição dos homossexuais, transgêneros e demais integrantes da comunidade LGBTI+ a graves ofensas aos seus direitos fundamentais em decorrência de superação irrazoável do lapso temporal necessário à implementação dos mandamentos constitucionais de criminalização instituídos pelo texto constitucional (CF, Art. 5º, incisos XLI e XLII) [...] Requerente: Partido Popular Socialista. Relator: Min. Celso de Mello, 13 jun. 2019. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 142, 01 jul. 2019. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26ementaassinada.pdf. Acesso em: 18 jan. 2021.

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[1] Acórdão publicado no DJe nº 142/2019, em 01 jul. 2019.

[2] Acórdão publicado no DJ, em 19 mar. 2004.

[3] SCHIAVONI, Eduardo. Mãe acusada de matar filho por homofobia é condenada a 25 anos de prisão. UOL, Ribeirão Preto, 27 nov. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/27/justica-condena-mae-acusada-de-matar-filho-por-ser-gay-a-25-anos-de-prisao.htm. Acesso em: 15 dez. 2020.

[4] TV BAHIA. ‘Foi alguém que já foi com ódio no coração por ele ser homossexual’, diz irmã de cabelereiro agredido na BA; estado da vítima é grave. G1 Bahia, 24 out. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/10/24/foi-alguem-que-ja-foi-com-odio-no-coracao-por-ele-ser-homossexual-diz-irma-de-cabeleireiro-agredido-na-ba-estado-da-vitima-e-grave.ghtml. Acesso em: 15 dez. 2020.

[5] BECKER, Geraldo. ‘Racismo homotransfóbico’, diz polícia sobre caso de jovem que levou 17 facadas no DF. G1 Distrito Federal, 11 nov. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/11/11/racismo-homotransfobico-diz-policia-sobre-caso-de-jovem-que-levou-17-facadas-no-df.ghtml. Acesso em: 15 dez. 2020.

[6] LAVOR, Thays. Um ano depois, acusados de linchar e matar travesti Dandara vão a julgamento. BBC Brasil, Fortaleza, 04 abr. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43648715. Acesso em: 15 dez. 2020.

[7] SANTANA, Vitor. Polícia conclui inquérito e divulga vídeo da morte de jovem gay em GO. G1 Goiás, 10 out. 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/goias/noticia/2014/10/policia-conclui-inquerito-e-divulga-video-da-morte-de-jovem-gay-em-go.html. Acesso em: 15 dez. 2020.

[8] CARVALHO, Ketryn. Em Camaçari, jovem leva quatro tiros após beijar outro rapaz. Observatório G, 23 out. 2019. Disponível em: https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/em-camacari-jovem-leva-quatro-tiros-apos-beijar-o-namorado. Acesso em: 15 dez. 2020. 

[9] Art. 266. Attentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencias ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral:                   

Pena - de prisão cellular por um a seis annos.

Paragrapho unico. Na mesma pena incorrerá aquelle que corromper pessoa de menor idade, praticando com ella ou contra ella actos de libidinagem.

[10] Art. 282. Offender os bons costumes com exhibições impudicas, actos ou gestos obscenos, attentatorios do pudor, praticados em logar publico ou frequentado pelo publico, e que, sem offensa á honestidade individual de pessoa, ultrajam e escandalisam a sociedade:

Pena - de prisão cellular por um a seis mezes.

[11] Art. 379. Usar de nome supposto, trocado ou mudado, de titulo, distinctivo, uniforme ou condecoração que não tenha;

Usurpar titulo de nobreza, ou brazão de armas que não tenha;

Disfarçar o sexo, tomando trajos improprios do seu, e trazel-os publicamente para enganar:

Pena - de prisão cellular por quinze a sessenta dias.

[12] Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:

Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.

[13] Acórdão publicado no DJe nº 198/2011, em 14 out. 2011.

[14] Acórdão publicado no DJe nº 45/2019, em 07 mar. 2019.

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Sobre o autor
Igor Nóvoa dos Santos Velasco Azevedo

Mestre em Direito Internacional e Europeu Público e Privado, pela Universidade Nice Sophia Antipolis; Especialista em Direito Público, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), e em Ciência Política, pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); Advogado e Professor do curso de graduação em Direito da Faculdade Estácio do Pará.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Igor Nóvoa Santos Velasco. A criminalização da homotransfobia e a judicialização da política no STF como forma de concretizar direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6624, 20 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92013. Acesso em: 22 dez. 2024.

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