2. DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS E SUA RELAÇÃO COM O MERCADO INTERNACIONAL GLOBALIZADO
O presente capítulo se reporta à maneira pela qual os direitos humanos são protegidos, na esfera internacional, realizando, inclusive, um paralelo entre referidos direitos humanos internacionais e o mercado internacional globalizado.
A título de introdução, é importante mencionar que os direitos humanos encontram um pequeno impasse quanto a sua efetivação ao passo que avança a globalização econômica e ganham mais poder as grandes empresas. Isto porque enquanto o mercado cresce e aumenta seu poder, o Estado perde força. Neste sentido disserta o professor José Eduardo Faria:
A globalização econômica – e este é apenas um juízo de fato, não de valor – está substituindo a política pelo mercado, como instância privilegiada de regulação social. Por tornar os capitais financeiros muitas vezes imunes a fiscalizações governamentais, fragmentar as atividades produtivas em distintas nações, regiões e continentes e reduzir as sociedades a meros conjuntos de grupos e mercados unidos em rede, tal fenômeno vem esvaziando parte dos instrumentos de controle dos atores nacionais. À medida que o processo decisório foi sendo transnacionalizado, as decisões políticas tornaram-se crescentemente condicionadas por equilíbrios macroeconômicos que passaram a representar um efetivo princípio normativo responsável pelo estabelecimento de determinados limites às intervenções reguladoras e disciplinadoras dos governos. Sua autonomia decisória, como conseqüência, tornou-se progressivamente vulnerável a opções feitas em outros lugares, sobre as quais dirigentes, legisladores, magistrados e promotores têm reduzida capacidade de pressão e influência. Acima de tudo, ao gerar novas formas de poder, autônomas, desterritorializadas, a transnacionalização dos mercados debilitou o caráter essencial da soberania, fundado na presunção superior em non recognoscens, e pôs em xeque tanto a centralidade quanto a exclusividade das estruturas jurídico-políticas do Estado-nação.[31]
Extrai-se da afirmação de Faria que há um crescimento constante do mercado internacional e uma consequente diminuição do poder do Estado, principalmente enquanto instrumento de regulação social. Assim, por exemplo, em relação ao Estado, as empresas têm muito mais capacidade de gerar renda às pessoas, a qual é fundamental à manutenção da vida de cada uma delas.
Isso fica evidente observando-se as imagens a seguir, que expõe casos em que o valor de empresas supera Produtos Internos Brutos de certos países, retiradas da matéria “Quando as empresas são mais poderosas que os países” do jornal “El país”[32]:
Nesse contexto é que surge a questão complicada da grande força que ganha o impulso da internacionalização dos direitos humanos, por conta da Segunda Guerra Mundial, objetivando conter ou responsabilizar o Estado. Mas, considerando que o crescimento do mercado internacional diminui o poder do Estado, pode ele (Estado), precisar de ajuda em face desta nova e crescente “ameaça”.
2.1 Sistema global de proteção aos direitos humanos
O Sistema Global De Proteção Internacional dos Direitos Humanos é dirigido pela Organização das Nações Unidas (ONU), que, por meio de comitês, conselhos, tratados, relatórios e outros mecanismos, atua de modo a garantir o respeito aos Direitos Humanos, conforme revela Flávia Piovesan,
Para iniciar este estudo, insta relembrar que a Carta da ONU de 1945, em seu art. 55, estabelece que os Estados-partes devem promover a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Em 1948, a Declaração Universal vem a definir e fixar o elenco dos direitos e liberdades fundamentais a serem garantidos.[33]
A autora destaca que, antes de tudo, espera-se que os próprios Estados-partes promovam a proteção dos direitos humanos. Ou seja, não é esperado que a ação internacional seja a primeira a ser realizada, mas sim, que o problema de desrespeito aos direitos humanos seja, em primeiro lugar tratado dentro do próprio Estado. Anota que, sendo o documento de 1948, considerado uma Declaração, sob o ponto de vista legal, não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante. Por essa razão foi necessária a realização de uma "judicialização" da Declaração de 1948, processo este ocorrido por meio de tratados e pactos que trariam força jurídica, capazes de promover ações de proteção aos direitos humanos, na esfera internacional.
Com o decorrer do tempo foram elaborados diversos pactos e tratados multilaterais de direitos humanos, sendo o primeiro e um dos mais significativos o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966.
Ao discorrer sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, será apresentada a maneira de procedimento da proteção dos direitos humanos, no âmbito internacional.
2.1.1 Pacto de Direitos Civis e Políticos
No texto do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, coloca-se em evidência, mais uma vez, o dever do Estado de resolver internamente problemas relacionados ao desrespeito dos direitos humanos, conforme expõe, a seguir, Flávia Piovesan:
O Pacto dos Direitos Civis e Políticos proclama, em seus primeiros artigos, o dever dos Estados-partes de assegurar os direitos nele elencados a todos os indivíduos que estejam sob sua jurisdição, adotando medidas necessárias para esse fim. A obrigação do Estado inclui também o dever de proteger os indivíduos contra a violação de seus direitos perpetrada por entes privados. Isto é, cabe ao Estado-parte estabelecer um sistema legal capaz de responder com eficácia às violações de direitos civis e políticos.[34]
Além de evidenciar esse dever do Estado nacional, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos estabelece uma sistemática que objetiva garantir o respeito aos direitos nele arrolados, o que é explicado por André de Carvalho Ramos, da seguinte maneira
O pacto prevê (...) a necessidade de submissão ao comitê pelos Estados Partes, de relatórios sobre as medidas adotadas para tornar efetivos os direitos nele reconhecidos, bem como os fatores e as dificuldades que prejudiquem sua implementação, caso existam.[35]
Os relatórios referidos pelo autor revelam se os direitos estabelecidos pelo pacto estão sendo respeitados no Estado relatado. O Comitê referido pelo autor é o ao “Comitê de Direitos Humanos” instituído pelo próprio Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966.
Após a submissão e análise dos relatórios, o Comitê emite um "relatório final contendo recomendações, sem força vinculante ao Estado”[36]. Essa é uma das maneiras de monitoramento do respeito, ou não, dos direitos humanos, feita pelo Comitê, de acordo com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Um outro meio de monitoramento é o mecanismo interestatal, pelo qual um Estado-parte comunica ao Comitê que está havendo desrespeito aos direitos garantidos no pacto, por outro Estado-parte. Referido mecanismo é opcional, e depende de uma declaração do Estado-parte que reconheça a competência do Comitê para receber as comunicações interestatais.
Além do mecanismo internacional, há mais um instrumento, instituído pelo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que é conhecido como o mecanismo de petição individual, por meio do qual um indivíduo faz comunicação ao Comitê de Direitos Humanos alegando ter seus direitos - aqueles arrolados no pacto -, violados. Após essa comunicação, conforme orienta André Carvalho Ramos
O Comitê dará conhecimento das comunicações que lhe forem apresentadas aos Estados Partes que aleguem que tenham violado direitos estabelecidos no Pacto, os quais deverão, em seis meses, submeter por escrito ao Comitê as explicações ou declarações que esclareçam a questão, indicando, se for o caso, as medidas que tenham tomado para remediar a situação (art. 5º).
Nesse sentido, observa-se que o Estado, alvo das alegações, traz explicações sobre o fato alegado, concretizando, portanto, um monitoramento, cobrando-se uma resposta do Estado.
Pergunta-se, na sequência, se a força vinculante das deliberações do Comitê é concreta e, em resposta, afirma-se que, de um lado seria natural que fossem seguidas as recomendações da entidade internacional que o próprio Estado reconhece, ao aderir ao pacto, ser for competente para deliberar a respeito daquele assunto; de outro lado, pode parecer estranho pensar em uma recomendação ou orientação que tenha força vinculante, poder de obrigar.
Neste sentido, André de Carvalho Ramos menciona o caso da petição individual enviada pelo ex-presidente Lula, para ilustrar a questão da força vinculante. No caso em questão, o ex-presidente, por meio de petição individual, pediu ao Comitê de Direitos Humanos que deliberasse medida provisória que assegurasse sua participação no pleito eleitoral em 2018, até que houvesse trânsito em julgado. Os relatores do caso reconheceram que haveria dano irreparável aos seus direitos políticos, se não fosse assegurada esta participação, solicitando, assim, ao Brasil que adotassem medidas necessárias à garantia dos referidos direitos políticos. Todavia, o ex-presidente não pode participar do pleito eleitoral, matéria essa tratada por André de Carvalho Ramos, a seguir
(...) os Estados, ao ratificar o Primeiro Protocolo Facultativo, avançaram na proteção de direitos de seus jurisdicionados, permitindo que as pretensas vítimas possam contar com uma proteção adicional, não prevista no Pacto. Essa proteção adicional não pode gerar uma deliberação que tenha força de mera recomendação, como se fosse o resultado da avaliação dos relatórios estatais submetidos periodicamente ao Comitê por força do disposto no Pacto. No que tange às medidas provisórias, o Comitê, no Comentário Geral n. 33 de 2009 dirimiu as dúvidas e deliberou que os Estados, em nome do princípio da boa-fé, têm que cumprir as deliberações provisórias do Comitê no exame das comunicações individuais. O próprio conceito de “medida provisória" exige seu cumprimento imediato, uma vez que há risco de dano irreparável ao resultado útil da análise da comunicação pelo Comitê. No Caso Piandiong et al. vs. Filipinas, o Estado reu descumpriu, em 1999, a medida provisoria que suspendia a execucao da pena de morte ao peticionario ate o final do tramite do caso no Comite de Direitos Humanos. Mesmo após a execução do peticionário, o Comitê continuou a analisar o caso e decidiu, em 2000, que o Estado descumpriu seu dever de cumprir tais medidas provisórias. Esse dever, para o Comitê, é oriundo implicitamente da própria adesão do Estado ao Primeiro Protocolo Facultativo, pois de nada serviria o direito de petição das vítimas se o Estado não adotasse as medidas necessárias para assegurar o resultado útil da futura decisão do comitê.[37]
Extrai-se da matéria exposta que, realmente, não existe nada concreto que determine a obrigação do Estado-parte de seguir a deliberação do Comitê, porém, considerando-se o princípio da boa-fé, espera-se que o Estado, ao ratificar o Pacto, se comprometa a seguir as suas deliberações. Caso isso não ocorra, torna-se sem sentido a ratificação do Pacto referido, não sendo, inclusive, atendidas as deliberações decorrentes do Comitê por ele instituído, recordando-se que as deliberações objetivam, unicamente, respeitar o que se estabeleceu no Pacto. Para André Ramos, a conduta do Estado, de negar a força vinculante das deliberações do Comitê, se traduz numa “nacionalização” do Pacto que é internacional, tornando inútil a internacionalização do tema.
Sobre esse assunto, Flávia Piovesan expõe, mencionando as decisões do Comitê, afirma que
Contudo, tal decisão não detém força obrigatória ou vinculante, tampouco qualquer sanção é prevista na hipótese de o Estado não lhe conferir cumprimento. Embora não exista sanção no sentido estritamente jurídico, a condenação do Estado no âmbito internacional enseja consequências no plano político, mediante o chamado power of embarrassment, que pode causar constrangimento político e moral ao Estado violador.[38]
Mesmo que não seja considerada a força vinculante das deliberações do Comitê de Direitos Humanos, pode-se falar em uma espécie de sanção àqueles que desrespeitam as deliberações, o que implica constrangimento político e moral ao Estado violador, que coloca outro Estado em situações complicadas, diante de negócios internacionais.
É nesse sentido que se dá a proteção internacional dos direitos humanos, pelo sistema global: sistemas de monitoramento e deliberações de entidades internacionais, tais como o Comitê de Direitos Humanos, cuja força vinculante está colocada em dúvida. Há diversas outras entidades que atuam dessa mesma maneira, como o Comitê contra Desaparecimentos Forçados, o Comitê para os Direitos da Criança, o Comitê Contra a Tortura, entre outros.
2.1.2 Tribunal Penal Internacional
Na esfera do sistema global de proteção aos direitos humanos, há ainda o tribunal penal internacional, que pode atribuir penas àqueles que cometem crimes contra os direitos humanos.
Entretanto, esta entidade não será tratada, pois suas atribuições não têm relação com o objeto do presente estudo, já que envolvem apenas julgamento de crimes como genocídio, crimes de guerra, entre outros.
2.2 Globalização econômica e os Direitos Humanos
O processo de globalização deu um salto nos últimos anos e continua avançando com muita celeridade, tornando o mundo cada vez mais conectado, e com número crescente das relações internacionais. Como exposto na introdução do presente capítulo, referido fenômeno impacta, e muito, o Direito, podendo haver prejuízos, se houver ausência do Direito, considerada a existência e os impactos da globalização.
Tem-se como conceito adequado de globalização, relativamente ao tema da presente pesquisa e para os fins a que se destina, que globalização econômica, na esteira da lição de Rodrigo Marchioli Borges Minas é
(...) um fenômeno histórico (...) de interconexão mundial através da transnacionalização de bens, capitais, produtos, serviços e pessoas, em fluxos mais rápidos e crescentes, em razão da integração informacional dos mercados; com alocação da produção industrial de forma global, segundo os critérios das vantagens comparativas; possibilitados pelas inovações tecnológicas que tornaram o modo de produzir e transportar flexível (pós fordismo), cuja interconexão econômica mundial carrega, intrinsecamente, as imposições do player economicamente mais forte - empresa ou Estado -, além das fronteiras diante das novas conjunções neoliberais, não apenas do ponto de vista do lucro empresarial, mas também dos valores culturais do respectivo país de origem; e, a autorregulação internacional do mercado para dar conta do imediatismo das crises, e das ondas de destruição criadora em ciclos cada vez menores, tendo por consequência a erosão das leis nacionais (...) já que se esvaziou a soberania dos Estados-nação.[39]
Esse conceito requer a consideração de que sendo “as imposições do player economicamente mais forte”, o Estado, evidentemente, tem seu poder de decisão cerceado. Isto se dá, em grande parte, conforme esclarecido por José Eduardo Faria, porque “a globalização econômica (...) está substituindo a política pelo mercado como instância privilegiada de regulação social”[40]. Evidentemente, a partir do momento em que uma indústria, caso não esteja recebendo os privilégios que gostaria, pode simplesmente ir para outro mais vantajoso, o que importa deixar o Estado em uma “saia justa”. A fixação de uma indústria não só traz muita contribuição para o Estado por meio dos impostos, mas também, por meio de empregos gerados, o que é fundamental para um desenvolvimento econômico.
Assim, o Estado se vê, muitas vezes, submisso ao mercado, de maneira que perde a sua soberania e a sua autonomia, o que nas palavras de José Eduardo Faria, pode, assim, ser explicado
Por um lado, o Estado já não pode mais almejar regular a sociedade civil nacional por meio de seus instrumentos jurídicos tradicionais, dada a crescente redução de seu poder de intervenção, controle, direção e indução. Por outro lado, ele é obrigado a compartilhar sua soberania com outras forças que transcendem o nível nacional.[41]
Isso se reforça em face da existência de inúmeras situações em que um país depende de importação de insumos fundamentais de outro, a exemplo do Brasil que importa 90% de seus insumos farmacêuticos, de acordo com matéria do UOL[42]. Referido texto jornalístico foi exposto, a partir de conversa com especialistas, que dizem que o Brasil não possui indústria farmacêutica muito bem desenvolvida, por falta de investimentos. Isso importa ser o Brasil, refém da indústria farmacêutica externa, ou, em outras palavras, refém do mercado internacional. Um aumento da taxa de exportação pelo país de origem desses insumos farmacêuticos, por exemplo, poderia trazer consequências desastrosas para o Brasil, mas não haveria nada que o Estado pudesse fazer, considerada a sua impotência diante do mercado internacional.
Com a situação de pandemia que o mundo vive, desde 2020, toda essa situação se evidencia, considerando o cenário de um problema mundial, no qual é necessária uma cooperação internacional, a qual traz à tona as dificuldades advindas desta situação de perda de poder do Estado.