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A proposta de Emenda Constitucional de iniciativa popular no direito brasileiro

A proposta de Emenda Constitucional de iniciativa popular no direito brasileiro

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A Constituição Federal admite a Iniciativa Popular para Propostas de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, conclusão a que se chega a partir de uma interpretação racional e sistemática da CRFB/88.

Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e crescentes, quanto com mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.

Immanuel Kant

Resumo: A presente monografia procura debater controvérsia existente no ordenamento jurídico brasileiro entre a vedação implícita à proposta de emenda constitucional por iniciativa popular e a sustentação, por alguns doutrinadores, de que uma interpretação sistemática da Constituição permite afirmar que ela acolhe a Iniciativa Popular como instrumento apto à iniciativa de Propostas de Emenda Constitucional. Parte-se de uma compreensão racional pós-positivista do direito para a análise, em seguida, da democracia, do Estado e do poder constituinte, nos moldes do método dedutivo. O levantamento teórico indicou que o atual conceito de democracia impede a sua concretização como um bem jurídico já que ela dever ser entendida como um processo e não como um destino. Pela aplicação dos critérios hermenêuticos e a interpretação sistemática ao caso pôde-se concluir que há um conflito aparente de normas na Constituição que reclama, para sua solução, a ponderação de valores constitucionalmente tutelados e imperativos da razão prática que não encontram óbice na Constituição, o que permite afirmar que a Constituição, em seu sentido completo, admite a Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular.

Palavras-chave: Princípio democrático. Poder constituinte. Iniciativa popular. Interpretação sistemática. Pós-positivismo

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO. 1.1 A Evolução Do Pensamento Democrático. 1.2 A Democracia na Atualidade. 1.3 A Evolução Democrática no Brasil. 1.4 O Estado Democrático de Direito no Brasil. 2 O PODER CONSTITUINTE. 2.1 O Estado e a Teoria do Poder Constituinte. 2.2 O Poder Constituinte Originário. 2.3 O Poder Constituinte Derivado. 3 A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL DE INICIATIVA POPULAR. 3.1 A Iniciativa Popular no Brasil. 3.2 A Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular. 3.2.1 A Hermenêutica Constitucional. 3.2.2 A Interpretação Sistemática sobre a Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 


INTRODUÇÃO

Inicialmente, cumpre destacar que a presente monografia, embora estude, em parte, teoria geral da política e do Estado, não ingressa nestes ramos da ciência com a profundidade que estas permitem, limita-se, assim, a seguir as lições de Norberto Bobbio, principalmente na obra “Teoria Geral da Política”, organizada por Michelangelo Bovero, nos seus estudos sobre o caráter político do Estado, a fundamentação racional da democracia e as análises sobre a relação Estado e razão.

Outro ponto de esclarecimento importante diz respeito à compreensão pós-positivista do direito, concepção esta que, embora tenha sido tomada como a ferramenta mais atual e eficiente para a compreensão dos limites da atuação interpretativa no âmbito jurídico, não tem posição de análise material quanto à sua validade e fundamentos de justificação. Dessa forma, o pós-positivismo foi eleito entre as teses dispostas atualmente na ciência jurídica como à que mais se adequava ao presente trabalho, principalmente pela sua forte influência sobre Jürgen Habermas, um dos referenciais teóricos do presente trabalho.

O referencial teórico baseou-se em obras que permitiram uma análise do amplo espaço teórico formado pela Teoria do Estado, da democracia e da soberania popular, passando por obras mais específicas sobre poder constituinte, eficácia das normas constitucionais, interpretação da Constituição, até as análises diversas dos estudiosos sobre o tema central do trabalho.

A atualidade do tema se revela pelos atuais movimentos sociais. Após mais de vinte anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988, a experiência democrática do Brasil vem ingressando numa nova etapa onde são buscadas formas de aperfeiçoamento da democracia já edificada. A iniciativa popular, neste âmbito, possui papel de destaque, como já indicam os movimentos sociais em torno do tema.

No dia 10 de fevereiro de 2011 um terço dos membros do Senado Federal apresentou a proposta de emenda constitucional nº 3 de 2011, que pretende acrescentar o inciso IV ao caput do art. 60 e o § 3º ao art. 61 da Constituição, e alterar a redação do § 2º do art. 61 para viabilizar a apresentação de Propostas de Emenda à Constituição (PEC) de iniciativa popular. No dia 19 de maio de 2011, outro grupo de senadores apresentou proposta semelhante, mas que, além das alterações da primeira propunham a redução pela metade do número de assinaturas necessárias para a proposta de lei de iniciativa popular e determinar uma celeridade mais alta na sua tramitação no Congresso Nacional. As propostas encontram-se atualmente (23/09/2012) sob a apreciação da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania.

A Constituição não prevê expressamente a iniciativa popular como legitimada à Proposta de Emenda à Constituição, mas apenas para a proposta de leis, apesar disso já estão sendo captadas assinaturas para algumas Propostas de Emendas à Constituição de iniciativa popular. Pode-se citar, como PEC de iniciativa popular em etapa de colheita de assinaturas, a PEC para reforma política, para aumento de poderes do Conselho Nacional de Justiça, entre outras.

Observa-se, portanto, um problema jurídico que requer solução: a Constituição Federal de 1988 não contempla expressamente a hipótese de Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, todavia o princípio democrático, a soberania popular e a fundamentação do Estado Democrático de Direito sobre estes princípios parecem indicar que tal liberdade é inerente a esta forma de constituição do Estado.

Nesta senda, na etapa de elaboração do projeto foi possível levantar algumas hipóteses como:

1. O Parágrafo único do art. 1º da Constituição da República limita as formas de exercício do poder estatal àquelas previstas expressamente na Constituição quando deixa a observação do final do dispositivo: “nos termos desta Constituição”, o que acaba por impedir a realização da Iniciativa Popular em matéria constitucional;

2.  A Constituição admite implicitamente tal direito ao cidadão, mas não há como efetivar deste direito sem que haja disciplinamento legal para o mesmo;

3. A Constituição admite implicitamente tal direito ao cidadão, permitindo que se aplique analogicamente o disciplinamento do projeto de lei de iniciativa popular, mas com um maior número de assinaturas, observada a maior dificuldade para a alteração constitucional,  já que a Constituição é rígida;

4. A Constituição admite implicitamente tal direito ao cidadão, permitindo que se aplique analogicamente o disciplinamento do projeto de lei de iniciativa popular, inclusive com o mesmo número de assinaturas necessárias.

Por estes motivos a presente monografia mostra-se atual e relevante para a compreensão da aplicabilidade da Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular no ordenamento jurídico brasileiro. A par disso serão analisadas as soluções possíveis apontadas pela doutrina constitucional e será estabelecida a configuração geral da discussão sobre o princípio democrático e a soberania popular.

Para a concretização destes objetivos a monografia será dividida em três capítulos. O primeiro analisará o princípio democrático pelo estudo histórico da democracia nos Estados e o que é produzido de mais moderno sobre o tema a fim de se tomar uma base sólida nas conclusões. O segundo capítulo analisará a relação entre Estado, soberania popular e poder constituinte, as construções doutrinárias sobre o tema, terminando por analisar as formas de exercício do poder constituinte originário e derivado. O terceiro capítulo terá como tema a Proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, iniciando a conceituação geral de iniciativa popular até a sua penetração em assuntos constitucionais, também analisará os instrumentos e os limites da hermenêutica constitucional, tal que possibilite uma compreensão ampla e precisa do problema e das hipóteses apontadas de solução.

Todo o trabalho se pautará pela preservação da moderna concepção pós-positivista do direito, tal que seja fiel aos postulados da segurança jurídica e da racionalidade prática, evitando-se a violação das normas constitucionais sob o argumento de realização de valores subjetivos ou metafísicos.

O método utilizado será o método dedutivo, o que se realizará pela análise do panorama geral de conceitos e sistemas jurídicos envolvidos que fornecerão as chaves para a solução do problema.


1 O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

1.1 A Evolução Do Pensamento Democrático

A democracia foi conceituada por Norberto Bobbio (2000a, p. 30-31) como um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem uma autorização, a um número muito elevado de membros do grupo, para tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.

Para melhor compreensão de qualquer instituto ou mesmo qualquer objeto posto à frente do cientista, é de grande valia a análise da sua origem e desenvolvimento até estabelecer-se no estado em que se apresenta atualmente. Assim, analisar-se-á o surgimento da democracia no mundo e o seu desenvolvimento até chegar ao estado em que se apresenta hoje no Brasil.

A democracia, palavra de origem grega formada por demos (povo) + kratos (poder), surge a partir do momento em que pessoas passam a criar mecanismos de tomada de decisões sobre determinado grupo a que pertençam tendo como iguais os membros deste grupo. Dado o instinto gregário da espécie humana, a democracia deve ter surgido nos tempos mais longínquos da antiguidade, sempre em pequenos grupos onde houvessem mecanismos de tomada de decisões coletivas por meio da participação de muitos membros, todavia, é apenas na Grécia do século VI ao IV A.C. que será possível observar com maior propriedade, o funcionamento de um Estado assim baseado, ou, pelo menos, uma cidade-estado, como lá se dava.

Mário Curtis Giordani (1967) identifica na geografia Grega um dos motivos pelos quais emergiu esta influente sociedade durante a antiguidade. Segundo o autor, o clima, os recursos naturais, o relevo e a pluralidade de ilhas induziram os gregos a uma vida ao ar livre, contemplativa e organizada em pequenas comunidades. Especificamente em Atenas, imperava a igualdade política e a liberdade sobre vasta faixa da população, mas não era nada como a forma atual da democracia no mundo.

Os direitos políticos nascem em Atenas proporcionalmente à riqueza, com as reformas de Sólon por volta dos anos 590 A.C.. A este respeito, são relevantes as observações de Croiset:

A constituição de Sólon repousa, com efeito, essencialmente, na ideia de que os direitos políticos são proporcionados á riqueza. Há nisso um princípio que pode, à primeira vista, parecer pouco democrático; cumpre, porém, não esquecer que a primeira condição do progresso da democracia era a destruição do inalienável privilégio do nascimento, porquanto a riqueza é apenas um fato e não se acha aliada de uma maneira invariável aos indivíduos ou às famílias. O privilégio concedido à riqueza é uma fase universal e necessária entre o privilégio de nascimento e a igualdade absoluta. É preciso, pelo espontâneo desenvolvimento do comércio e dos negócios, e por algumas das leis do próprio Sólon, mais facilmente acessíveis a numerosos cidadãos, de maneira que a substituição de um princípio por outro correspondia, na realidade, a um progresso no sentido da igualdade. (CROISET apud GIORDANI, 1967, p. 168)

Assim, a democracia ateniense desenvolveu-se a partir de uma cidadania baseada na riqueza para, depois das reformas do aristocrata Clístenes, considerado o pai da democracia ateniense, alcançar todo aquele que se inscrevesse, inclusive muitos estrangeiros residentes em Atenas e escravos libertos. A partir deste momento eram cidadãos todos aqueles filhos de um cidadão (GIORDANI, 1967). Aos poucos os privilégios decorrentes da renda foram desaparecendo até não terem mais efeitos.

Em seus tempos áureos, funcionavam na democracia Ateniense duas assembleias responsáveis pela tomada das decisões da cidade-estado, o Conselho dos Quinhentos e a Assembleia do Povo (GIORDANI, 1967).

O Conselho dos Quinhentos, ou Bulé, reunia poderes que mesclavam a função executiva, legislativa e até mesmo a judiciária e era formado por quinhentos cidadãos sorteados e submetidos a rigoroso exame sobre sua idoneidade, é considerado por Giordani como o Senado Ateniense (GIORDANI, 1967).

A Assembleia do Povo, ou Eclésia, era formada por todos os cidadãos e possuía função executiva e legislativa, só excepcionalmente a função judiciária. Nas reuniões todos possuíam “ampla liberdade de palavra, podendo emitir suas opiniões, apresentar projetos, debater proposições, etc.” (GIORDANI, 1967). É importante observar que, mesmo neste período de ampliação da cidadania e dos legitimados à participação na vida política da cidade-estado, apenas uma pequena parcela destes efetivamente comparecia às reuniões e tomava parte nas deliberações da Assembleia.

Com o passar do tempo e das lutas no plano interno e externo entre diversas facções, a democracia recuou no sentido da oligarquia e da demagogia até que a cidade-estado grega perdeu toda a sua soberania pelo domínio macedônio em 338 A.C. (GIORDANI, 1967).

Alguns tiranos tentaram implantar regimes próximos à democracia na Sicília, também pela influência grega, mas a instabilidade gerada pelas diversas disputas nestas regiões impediam o florescimento do sistema, mesmo assim, a Sicília ainda produziu mestres da retórica e muitos sofistas (GIORDANI, 1967).

Posteriormente, com as guerras macedônias e a ascensão do Império Romano, a humanidade entra em estado de letargia em seu desenvolvimento, envolta em guerras e regimes despótico-feudais. O absolutismo impera depois da idade média e começa uma revolução intelectual denominada iluminismo que será a fonte de várias transformações que constituirão o mundo moderno como a criação e consolidação dos Estados nacionais, o liberalismo, a revolução científica, a expansão dos direitos civis, a revolução francesa e a queda das monarquias a partir de 1789.

Um assomo de luz vai brilhar no ano de 1689 com o Bill of Rights, lei inglesa influenciada pelo iluminista John Locke, e que marca um período em que o monarca soberano passa a submeter-se a determinadas leis inaugurando o Estado de Direito e o início do fim do absolutismo. Esta experiência influencia decisivamente a produção intelectual sobre a melhor forma de organização do Estado, sendo que alguns estudiosos, no que destaca-se o barão de Montesquieu com sua obra “O Espírito das Leis” de 1748, criticaram com ênfase a monarquia decadente e defenderam a separação do poder estatal em funções diferenciadas: o executivo, o legislativo e o judiciário, com limitações mútuas.

Neste ponto, é importante notar que estes primeiros teóricos dos Estados modernos e que inspiraram muitas constituições não viam, pelo menos em sua maioria, a democracia como o melhor governo, embora trouxessem à discussão os fundamentos do Estado Democrático. Tais pensamentos eram fruto, principalmente, da opinião defendida por Platão que tinham a mesma opinião, sempre se referindo a esta forma de governo como pejorativa vez que a massa do povo não consegue tomar decisões qualificadas, sempre flutuando sob a influência de demagogos e líderes dos mais diversos (PLATÃO, 1997). Hans Kelsen (2005, p. 407), por exemplo, diz que “A ideia de liberdade tem originalmente uma significação puramente negativa. Ela significa a ausência de qualquer compromisso, de qualquer autoridade obrigatória”.

A Revolução Americana, que teve como destaque a luta contra os regimes absolutistas, trouxe na Declaração de Independência de 1776, de autoria de Thomas Jefferson, as principais ideias democráticas e republicanas (MARTINEZ, 2004), além de consolidar alguns direitos considerados fundamentais no regime democrático, como pode ser observado na seguinte passagem:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. (MONTEIRO, 2010, texto digital).

Neste contexto, a Constituição Americana, de 1787, primeira constituição escrita da história moderna, consolidou a República e a Democracia naquele Estado e foi pioneira no movimento que futuramente determinou a substituição do absolutismo pelo Estado de Direito, exaltando a Constituição como o instrumento legítimo de organização, separação e limitação do poder do Estado.

A Revolução Francesa, deflagrada em 1789, sob a bandeira da “liberdade, igualdade e fraternidade”, fortemente influenciada por Rousseau, trouxe os pilares do que seria a democracia como se a tem atualmente (MARTINEZ, 2004), todavia, até mesmo Rousseau salientava que o governo democrático é o mais sujeito a guerras e agitações, sendo instável na sua manutenção, mas destacava: “Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos homens.” (ROUSSEAU, 2002, p. 33-34). Por este fragmento percebe-se que a visão do autor era a de que a democracia consistia num dever-ser, num foco a ser perseguido, mas não numa realidade a ser implantada de pronto. Tal fato fica ainda mais claro quando o autor rechaça a ideia de representação num Estado Democrático, conforme se vê na passagem:

A idéia dos representantes é moderna; vem do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo, no qual a espécie humana é degradada e o nome de homem constitui uma desonra. Nas antigas repúblicas, e inclusive nas monarquias, jamais o povo teve representantes: não se conhecia sequer esse nome. É bastante singular o fato de, em Roma, onde os tribunos eram tão sagrados, sequer se haver imaginado pudessem eles usurpar as funções do povo, e, em meio de uma tão grande multidão, nunca terem tentado passar um só decreto oriundo de sua própria cabeça. Julgue-se, entretanto, pelo que acontecia no tempo dos Gracos, o embaraço causado por vezes pela turba, quando uma parte dos cidadãos dava o voto de cima dos telhados. Onde o direito e a liberdade tudo representam, os inconvenientes nada são. No seio desse povo sábio, tudo estava posto em sua justa medida; ele permitia aos lictores fazerem o que os tribunos não teriam ousado, pois não receava daqueles a veleidade de o representar. (ROUSSEAU, 2002, p. 46).

Embora a opinião contrária de Rousseau, ante a impossibilidade de compatibilização de uma democracia com Estados de grande extensão territorial, os ideais democráticos marcaram o período e frutificaram em iniciativas democráticas que tornaram os séculos XIX e XX o momento da ascensão dos partidos políticos e da democracia representativa, ou seja, aquela exercida através de representantes do povo.

A partir da proliferação da democracia no ocidente, durante o século XX foram surgindo iniciativas de aperfeiçoamento da mesma, sempre buscando sanear a arguição de Rousseau e construindo uma ponte entre a democracia representativa e a democracia direta, ponte esta que ainda é o palco de grandes discussões e críticas do sistema democrático atual.

Com as drásticas modificações sociais do século XX, outros fatores como a educação, com o aumento do ensino público, gratuito e de qualidade, o crescimento da população urbana, a facilitação do acesso à informação, o encurtamento das distâncias e da comunicação pelo surgimento e facilitação do acesso aos novos meios de comunicação, a democracia encontrou meio propício ao seu desenvolvimento.

O início do século XXI, por fim, vem consolidando o que foi sendo desenvolvido durante o século XX, com ênfase para o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular, o sufrágio universal, o veto popular, o recall e a ação popular, instrumentos estes tipicamente da democracia direta, vem trazendo iniciativas de construção de pequenas assembleias populares de deliberação e decisão administrativas através, principalmente, dos orçamentos participativos, e vem apontando previsões de inovações tecnológicas no cenário político democrático com o desenvolvimento de novos instrumentos de captação de opiniões.

1.2 A Democracia na Atualidade

A democracia, na atualidade, assume uma conotação diferente da que tradicionalmente teve. Em vez de significar algo estático, como uma organização objetivamente determinada ou determinável, a democracia passa a ser compreendida como um “processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo.” (SILVA, 2011, p. 126). Nota-se, pois, que o conceito de democracia para José Afonso da Silva acima referido é preponderantemente político, o que, até certo ponto, explicaria a ampla utilização do termo em discursos eleitorais como uma espécie de bandeira a ser defendida, sendo que a realidade do termo perde com a sua utilização emocional (cf. BOBBIO, 2000a, p. 55).

Mas embora a democracia seja amplamente utilizada em discussões políticas como um termo vago e impreciso, Norberto Bobbio (2000a), em sua obra intitulada “O futuro da democracia”, vem fazer uma distinção importante quando se trata de democracia: a democracia direta não é propriamente um fim a ser buscado dentro da democracia representativa, mas ambas são faces de um mesmo objeto dinâmico. Nas palavras do autor:

[...] entre a democracia representativa pura e a democracia direta pura não existe, como crêem os defensores da democracia direta, um salto qualitativo, como se entre uma e outra existisse um divisor de águas e como se a paisagem mudasse completamente tão logo passássemos de uma margem à outra. Não: os significados históricos de democracia representativa e de democracia direta são tantos e de tal ordem que não se pode pôr os problemas em termos de ou-ou, de escolha forçada entre duas alternativas excludentes, como se existisse apenas uma única democracia direta possível; o problema da passagem de uma a outra somente pode ser posto através de um continuum no qual é difícil dizer onde termina a primeira e onde começa a segunda. [...] Isto implica que, de fato, democracia representativa e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que onde existe uma não pode existir a outra), mas são dois sistemas que se podem integrar reciprocamente. (BOBBIO, 2000a, p. 64, grifo do autor).

São estas as palavras utilizadas pelo autor na formulação daquilo que nomeou como democracia integral, termo utilizado para designar precisamente a compreensão dinâmica e una (democracia representativa mais democracia direta) da democracia.

Outros dois pontos importantes que marcam a compreensão atual de democracia é a necessidade do dissenso dentro das deliberações, ou seja, necessidade de deliberação real, e a publicidade máxima.

Norberto Bobbio, analisando a questão do consenso dentro da democracia e a fala de muitos indicando a democracia como o simples consenso da maioria, enxerga no consentimento da maioria para a tomada de decisões uma essencial presença de uma minoria que dissente. Neste sentido, volta o olhar para o totalitarismo onde existe uma maioria que impera e que cala a minoria, tornando o consenso fictício e, às vezes, até falso, para, ao final, concluir que “apenas onde o consenso é livre para se manifestar o consenso real, e que apenas onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se com justeza democrático.” (BOBBIO, 2000a, p. 75). Assim, a democracia só é possível onde há pluralidade de grupos livres para manifestarem o dissenso, havendo, consequentemente, o consenso real e a pulverização do poder resultante das diferentes combinações desta sociedade plural que conduzem a uma plenificação da democracia (BOBBIO, 2000a).

A publicidade também toma grande espaço na democracia tendo em vista a sua função essencial de expurgar as ações que não satisfazem à razão e à moral por parte dos agentes envolvidos na direção do Estado. Com efeito, nenhum agente público poderia manifestar publicamente a sua intenção de utilizar a máquina pública para beneficiar a si próprio ou utilizar-se de cargo para gerar ganhos meramente pessoais. É impossível tais condutas ao agente público que detém certo poder de decisão em nome do povo e com a finalidade de beneficiar o povo, sem que isso o coloque em flagrante contradição e reprovação lógica por parte do povo, até mesmo os de sua facção vez que a própria razão condena tal prática (BOBBIO, 2000a).

Assim, como observa Habermas (2003), são estes dois fatores, deliberação e publicidade, que legitimam a formação democrática do poder através da produção normativa. Nas palavras do autor:

O fluxo comunicacional que serpeia entre formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente, e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente [...]. (HABERMAS, 2003, v. 2, p. 22)

Ademais, vale lembrar os pontos definidos por Bobbio como o conteúdo mínimo do Estado democrático:

 [...] garantia dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas (nas democracias consociativas ou no sistema neocorporativo) ou tomadas com base no princípio da maioria, e de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo. (BOBBIO, 2000a, p. 50).

São estes, enfim, os caracteres que marcam o atual pensamento democrático no mundo, deixando a cargo de cada Estado soberano o maior ou o menor avanço no que se refere ao processo contínuo de democratização, como já referido.

1.3 A Evolução Democrática no Brasil

A história da democracia no Brasil é tardia em relação ao resto do mundo, curta e ríspida, oscilando sempre momentos de democracia frágil, sempre sujeita a intensa instabilidade institucional, com ditaduras explicadas pela necessidade de manutenção da ordem, indicando um domínio fático e histórico do poder por corporações militares.

O Brasil iniciou sua história através de um regime monárquico que durou até 1889, posteriormente, com a proclamação da República por militares instaurou-se no país, através da Constituição de 1891, o período conhecido como República Velha. A Constituição previa um regime democrático representativo, divisão dos poderes segundo a doutrina de Montesquieu, executivo, legislativo e judiciário, independentes e harmônicos entre si, e autonomia dos estados (SILVA, 2011).

Na República Velha, entre 1891 e 1930, constituía-se, em realidade, numa oligarquia altamente instável sujeita a modificações abruptas de governantes onde o poder estava nas mãos das elites regionais e militares, os chamados coronéis. Nas palavras de José Afonso da Silva:

O coronelismo fora o poder real e efetivo, a despeito das normas constitucionais traçarem esquemas formais da organização nacional como teoria de divisão de poderes e tudo. A relação de forças dos coronéis elegia os governadores, os deputados e senadores. Os governadores impunham o Presidente da República. [...] Tudo isso forma uma constituição material em desconsonância com o esquema normativo da Constituição então vigente e tão bem estruturada formalmente. (SILVA, 2011, p. 80).

Ou seja, vivia-se o total descompasso entre realidade e ordenamento jurídico, situação que torna a Constituição mera folha de papel, para utilizar o termo de Ferdinand Lassale.

Tal situação só durou até 1930 quando uma revolução encabeçada pelo operariado urbano põe fim ao governo, transferindo o poder a um governo provisório. Para Luís Roberto Barroso (2001, p. 19), “foi a única revolução da República, no sentido de transformação de estruturas e renovação das instituições”. Tal revolução trouxe em 1934 uma nova Constituição que manteve os pontos citados acima da Constituição de 1891, como a democracia representativa, mas também trouxe inovações como a definição de direitos políticos, o sistema eleitoral, admitindo, inclusive o voto feminino, dentre outros . Tal Constituição, todavia, teve vida curta, pois, ao impedir a candidatura do governante provisório, na ocasião Presidente da República, acabou incitando-o, junto com outros fatores, a um golpe militar com a outorga da Constituição de 1937, instaurando a ditadura (SILVA, 2011).

O fim da ditadura é seguido pela promulgação da Constituição de 1946 que vem cumprir o papel de redemocratizar o país seguindo um momento histórico de construção constitucional fecundo em todo o mundo, sendo considerada por alguns como a melhor das Constituições brasileiras (BARROSO, 2001, p. 25-26). Neste período os partidos políticos de âmbito nacional já se encontravam relativamente constituídos, o que permitiu certa sobrevida da Constituição, todavia, malgrado a obrigatoriedade do ensino primário obrigatório o país mantinha-se com os mesmos condicionamentos das anteriores crises de tal forma que a eleição de presidente e vice-presidente de segmentos políticos opostos causou nova crise institucional que mobilizou os militares a novo golpe militar instaurando a ditadura militar em 1964 com outorgação de nova Constituição em 1967 (BARROSO, 2001).

A Constituição de 1967, tipicamente ditatorial, hipertrofiava o poder executivo nas funções do Estado, inclusive subtraindo a iniciativa legislativa do Congresso nas matérias relevantes. O poder executivo podia ainda, suspender direitos políticos, cassar mandatos eletivos, suspender garantias dos magistrados, exclusão da apreciação judicial de algumas matérias e etc. Havia censura à imprensa e perseguição policial violenta, inclusive com uso de tortura contra os adversários políticos. Surgiram movimentos de resistência armada com quadros de guerrilha formados, sobretudo por estudantes universitários, mas que não obtiveram qualquer resultado sendo fortemente reprimidos (BARROSO, 2001).

Neste contexto, em 1969, é promulgada pelos militares a Emenda nº 1 que reforma grande parte do texto constitucional, a tal ponto que é considerada pela maioria da doutrina como, materialmente, uma nova Constituição. A ditadura continua até que em 1979 um militar eleito indiretamente se compromete a restaurar a democracia de forma “gradual e segura”, assim, em novembro de 1985 é eleita indiretamente chapa formada por não-militares e, através de emenda constitucional de novembro de 1985, é convocada uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986 (BARROSO, 2001).

Desde a eleição de Tancredo Neves até a promulgação da Constituição de 1988, todo o processo foi amplamente acompanhado pela população e debatido pelos diversos setores interessados, inclusive quando dos estudos pela Comissão convocada pelo Presidente da República, sendo que José Afonso da Silva classificou o produto dos estudos da comissão como um “estudo sério e progressista” (SILVA, 2011, p. 89), e que, após a passagem pela Assembleia Nacional Constituinte vai gerar a Constituição Federal de 1988 avaliada por Silva como “um texto moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Bem examinada, a Constituição Federal, de 1988, constitui hoje, um documento de grande importância para o constitucionalismo em geral.” (SILVA, 2011, p. 89).

1.4 O Estado Democrático de Direito no Brasil

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), em seu art. 1º, funda um Estado Democrático de Direito, tornando tal conceito um conceito-chave do regime adotado no Brasil (SILVA, 2011), inaugurando um regime realmente democrático no país. O próprio preâmbulo da CRFB/88 deixa claro o intuito precípuo da Assembleia Nacional Constituinte de instituir um Estado Democrático (BRASIL, 2012).

Segundo José Afonso da Silva, o Estado Democrático de Direito não é uma junção simples dos conceitos de Estado democrático e Estado de direito, mas “os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo” (SILVA, 2011, p. 119). Ou seja, segundo o autor, o qualificativo democrático implicaria num movimento revolucionário de democratização de um país marcado por ditaduras e submissão do poder estatal à vontade de minorias, o que coloca a democracia em posição de destaque na atual Constituição.

E mais, o intuito de assegurar determinados direitos, intuito impresso no preâmbulo, somado à imensa gama de direitos e valores a serem implantados (normas programáticas), impressos no texto constitucional, fizeram com que a maioria da doutrina reconhecesse no Estado brasileiro fundado na CRFB/88 um Estado com o objetivo de concretizar ou realizar os direitos e valores constitucionais (SILVA, 2011).

Com efeito, traz o preâmbulo da CRFB/88:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 2012, p. 21, grifo nosso).

Decerto que o preâmbulo constitucional não possui força normativa, todavia, é amplamente reconhecida a sua função interpretativa sobre o restante do texto constitucional, o que permite utilizá-lo, principalmente para a correta compreensão do caráter e do conteúdo da democracia brasileira.

Essas construções poderiam permitir que o intérprete constitucional, na condição de juiz, pudesse dar uma interpretação no sentido da realização dos valores constitucionais e resolver de uma vez os problemas da sociedade, todavia, o concretismo baseado em valores, conforme indica Habermas (2003), levanta o problema da legitimidade, colocando, inclusive, a jurisprudência constitucional em concorrência com a legislação, o que acaba por tornar o tribunal constitucional uma instância autoritária. A falta de definição e o subjetivismo dos valores impedem que estes possam lastrear o ordenamento jurídico, de forma que não se admite mais no pensamento científico-jurídico a ostentação de valores constitucionais como suficientes a sobrepujar as demais normas constitucionais, “como se fora um texto sagrado” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 319). Nas palavras de Habermas (2003, v. 1, p. 318), “Esses princípios ontológicos objetivam bens e valores, transformando-os em entidades que existem em si mesmas; sob condições do pensamento pós-metafísico, no entanto, eles não são mais defensáveis.”.

E aqui vem à baila a discussão em torno do pensamento metafísico ou do direito natural que teve grande aceitação no passado, principalmente quando da formação do Estado de Direito. Sobre o direito natural Tavares traz a seguinte ponderação:

Sobre o direito natural, por exemplo, Ely observa que, no caso da escravidão, nos Estados Unidos, ‘tal foi, inclusive, utilizada por ambos os lados’, tanto pelos abolicionistas como pelos escravocratas. A razão, por sua vez, que seria o instrumento percuciente para propiciar ao exegeta (ao juiz, principalmente) uma interpretação imparcial dos termos constitucionais, é considerada ou como uma fonte vazia, tendo em vista que não existe apenas uma única forma de raciocínio, ou como ‘tão flagrantemente elitista e não-democrática que deveria ser esquecida, de pronto’. (ELY, 1980, p. 59 apud TAVARES, 2007, p. 341).

De fato, embora o direito natural ou metafísico tenha tido sua importância quando da derrubada do absolutismo e início do Estado de Direito sob a bandeira dos valores naturais, a confusão teórica por falta de crivo para esta teoria demoveu-a de maior consistência científica. Seu sucessor, o positivismo, por sua vez, também não é suficiente para a regulamentação da sociedade sempre dinâmica e veloz. A compreensão mais assentada atualmente reside, pois, na fundamentação do direito com base na racionalidade dos sistemas jurídicos. Nas palavras de Habermas:

[...] a positivação do direito e a consequente diferenciação entre direito e moral são o resultado de um processo de racionalização, o qual, mesmo destruindo as garantias meta-sociais da ordem jurídica, não faz desaparecer o momento de indisponibilidade contido na pretensão de legitimidade do direito. [...] Com a distinção entre normas e princípios de ação, com o conceito de uma produção de normas conduzida por princípios e da estipulação espontânea de regras normativamente obrigatórias, com a noção da força normatizadora de pessoas autônomas privadas, etc., formou-se a representação de normas estabelecidas positivamente, portanto modificáveis e, ao mesmo tempo, criticáveis e carentes de justificação. [...] De fato, a positividade do direito pós-metafísico também significa que as ordens jurídicas só podem ser construídas e desenvolvidas à luz de princípios justificados racionalmente, portanto universalistas. (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 100-101).

Essa discussão ganha especial relevância no Estado Democrático de Direito em que a soberania do ordenamento jurídico confunde-se com a soberania do povo. No Estado Democrático de Direito, aqueles que sancionam o ordenamento jurídico se confundem com aqueles a quem se destina o mesmo, sendo o povo ao mesmo tempo sujeito e objeto do ordenamento jurídico.

A CRFB/88, no parágrafo único do seu art. 1º, explicita a soberania popular como fundamento do Estado Democrático de Direito, aduzindo que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (BRASIL, 2012, p. 21), momento em que também caracteriza a democracia brasileira como uma democracia participativa, ou seja, aquela em que há instrumentos da democracia representativa e da democracia direta.

Em seu artigo 14, a CRFB/88 prevê os instrumentos da soberania popular dando seguimento ao art. 1º, parágrafo único, nos seguintes termos:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular. (BRASIL, 2012, p. 28)

Sobre os instrumentos da democracia participativa destacam-se três: a iniciativa popular, o referendo e o plebiscito. A iniciativa popular, foco deste trabalho e que será analisada mais profundamente no capítulo 3, é nada mais que um procedimento que permite ao povo levar ao poder legislativo proposta de adoção de norma constitucional ou legislativa (CARVALHO, 2005; MAGALHÃES, 2002). O referendo é uma submissão de determinado projeto de lei aprovado à vontade popular que o rejeitará ou aprovará. E o plebiscito é uma submissão à vontade popular de determinada matéria para que esta seja objeto ou não de formulação legislativa. Assim, referendo e plebiscito diferem basicamente em relação ao momento da consulta, o referendo posterior e o plebiscito anterior (SILVA, 2011).

Neste ponto, não é demais voltar à questão da soberania popular, questão que teve sua origem histórica resumida por Habermas nos seguintes termos:

O conceito de soberania do povo resulta da apropriação e da conversão republicana da ideia de soberania, oriunda dos tempos modernos, e que inicialmente era ligada ao governo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é tido como uma concentração de poder, capaz de sobrepujar todos os demais poderes deste mundo. Rousseau transpôs essa figura de pensamento, que remonta a Bodin, para a vontade do povo unido, diluiu-a com a idéia do autodomínio de pessoas livres e iguais e a integrou no conceito moderno de autonomia. (HABERMAS, v. 2, p. 23, grifo nosso).

Vê-se, pois, que, segundo a concepção clássica, a soberania do povo parte da concepção da liberdade individual (ideia de autodomínio) tendo como pressupostos a igualdade e a liberdade dos indivíduos que, dispondo da liberdade natural se unem contratualmente renunciando a determinada cota de liberdade para a formação de um ente detentor do resultado desta doação de poder, o Estado.

Na atualidade, todavia, a soberania popular exige uma nova compreensão de seu conteúdo e da sua fundamentação, principalmente a sua fundamentação que não está mais associada ao direito natural. A soberania popular também não pode ignorar a realidade de sua construção visto que não nasceu de uma sociedade ideal que degenerou, mas de movimentos complexos e elitizados que acabaram por aperfeiçoar seus mecanismos e iniciar um processo de realização da soberania popular real.

Para um aprofundamento ainda maior nas formas de manifestação da vontade popular e no conteúdo do poder detido pelo povo originariamente, o próximo capítulo estudará o poder constituinte, o que permitirá uma melhor compreensão e interpretação da democracia participativa e da soberania popular.


2 O PODER CONSTITUINTE

2.1 O Estado e a Teoria do Poder Constituinte

Inicialmente, cumpre observar que as produções intelectuais a respeito do Estado surgem em duas vertentes, de um lado as teorias idealistas, que buscam a compreensão de um Estado a partir da imaginação de sua organização ideal, e de outro lado as teorias realistas, que buscam a compreensão do Estado a partir da experiência humana, a verdade efetiva que a história ensinou (BOBBIO, 2000b).

Das teorias realistas que se sobressaíram no decorrer da história, distinguem-se ainda duas outras que vale destacar neste ponto pela sua importância na evolução do pensamento sobre o Estado. De um lado há o modelo de compreensão do Estado como uma construção artificial, de outro como a natural evolução do estado de natureza, tendo a família como o primeiro núcleo organizado. O primeiro parte de um homem isolado e livre que passa a viver em sociedade, o segundo parte do homem como um “animal político”, conceito de Aristóteles de Estagira (BOBBIO, 2000b). O ponto de partida do jusnaturalismo e do contratualismo, dessa forma, nasce da concepção artificial do indivíduo isolado num estado de natureza conforme descrito por Rousseau na obra “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”.

À margem destas discussões possui relevante importância, ainda, a base racional presente em todas as teorias, mas que vem tomando ascendente posição na teoria do Estado. A razão sempre foi contraposta ao estado de natureza, tanto em Hobbes, quanto em Spinoza; enquanto o estado de natureza é visto como o império das paixões sobre a razão, dentro do Estado é posta a razão refreando as paixões. Enquanto no estado de natureza, no não-Estado, prevalece a guerra, a barbárie e a bestialidade, no Estado há o domínio da razão, da paz, da socialidade, da ciência (BOBBIO, 2000b). Mas esta transição não é instantânea como na teoria contratualista, mas passa por um processo. Segundo Bobbio (2000b, p. 121), “Podemos até mesmo afirmar que a racionalização do Estado se converte na estatização da razão, e disso nasce a teoria da razão de Estado, como a outra face do Estado racional.”.

A partir destas considerações importantes para o posicionamento teórico, tem lugar a análise da origem do Estado, sempre ligado, de alguma forma às lutas dos agrupamentos humanos pela hegemonia sobre os outros grupos. Neste ponto faz-se importante a visão de Weber sobre o tema, conforme segue:

‘Todo Estado se funda na força’, disse um dia Trotsky a Brest-Litovsk. E isso é verdade. Se só existissem estruturas sociais de que a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria também desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se denomina “anarquia”. A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado – não haja a respeito qualquer dúvida -, mas é seu instrumento específico. (WEBER, 2007. p. 56).

Embora seja verdade que o Estado não nasce de uma construção ideológica racional, que seja resultado da história em tentativas de simular justificações para o fato de o poder ser exercido através da força de quem a detém, é verdade também que ele depende de uma justificação, ao menos aparente, que legitime o seu funcionamento, justificação esta que, com o advento do Estado de Direito, deve estar disposta no ordenamento jurídico. Esta justificação, embora a princípio encenada, nos moldes do processo de racionalização histórica do Estado, conforme indicado anteriormente, implica necessariamente um aperfeiçoamento destes mecanismos de exercício do poder.

É neste contexto que emerge a democracia, juntamente com o poder constituinte do povo, como a justificativa que é, hoje, utilizada na quase totalidade do planeta e que é, segundo o desejo de Norberto Bobbio (2000b), o destino do mundo. A concepção da democracia trouxe uma reviravolta na tradição estatal, mudando o fundamento do Estado do poder, da força, da ordenação, para um fundamento mais racional e ético, o indivíduo racional como o juiz de seu melhor interesse e a vontade destes em conjunto como o melhor juiz do interesse coletivo, conforme a razão prática kantiana. Segundo Bobbio:

 [...] o indivíduo racional, racional no sentido de ser capaz de avaliar as consequências não apenas imediatas, mas também futuras das suas próprias ações, e portanto de avaliar seus próprios interesses em relação aos interesses dos outros, e com estes compatíveis, em um equilíbrio instável mas sempre passível de ser restabelecido através da lógica, característica de um regime democrático, do compromisso. Para dar o habitual exemplo que está na base da moral racional que é a moral kantiana: eu posso ter interesse imediato em transgredir um pacto, e aproveitar-me desse modo do fato de que outro o observou, mas não posso enquanto homem racional querer viver em um mundo no qual todos os pactos sejam transgredidos, porque em um Estado assim seria impossível qualquer forma de convivência pacífica. [...] A justificação da democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como a melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz do seu próprio interesse. (BOBBIO, 2000b, p. 423-424).

Assim, a soberania do Estado foi-se diluindo segundo a evolução do racionalismo e o ganho de espaço dos diferentes grupos dentro do Estado no decorrer da história. A soberania do monarca passou a ser soberania do Estado, que passou a ser a soberania da nação, que passou a ser a soberania do povo.

Assim, a Constituição, entendida em sentido material como o conjunto de normas referentes à organização do poder, à composição e ao funcionamento da ordem política (BONAVIDES, 2011), passou a ter sua base de legitimação e, portanto, o titular do poder do Estado, como o povo. Essas mudanças trazem profundo caráter ideológico e que, na quase totalidade das vezes são encenações de um domínio real do poder por entidades outras que não o povo. De qualquer forma, atualmente, poder que não esteja racionalmente justificado pelo poder constituinte do povo, não é poder legítimo, portanto, inválido.

2.2 O Poder Constituinte Originário

A teoria do poder constituinte foi criada por Emmanuel Joseph Sieyès no final do século XVIII quando era grande o clima de mudança institucional, principalmente no que concerne ao poder estatal. Na análise do poder constituinte originário é necessário observar que o poder constituinte não se situa em qualquer código ou constituição, é político, está na realidade da vida, é anterior às normas e é dele que provêm todas elas, é a origem do ordenamento jurídico e do Estado. Neste ponto cumpre destacar que esta construção aparentemente dissociada da realidade é a única que satisfaz a razão e, embora possa, no mundo da vida, apresentar-se de forma diferente, haverá aí sempre uma construção da violência, de uma vontade que, embora prevaleça e gere efeitos, não possui uma justificação racional não sendo passível de admissão pelo indivíduo racional. Segundo Habermas:

Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do poder político, e sim, a ligação com o direito legitimamente estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade. (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 172).

Dessa forma, o poder constituinte, emanando do indivíduo racional, conforme explicação de Bobbio acima, não comporta limitações exteriores, nem mesmo pela ordem anteriormente produzida, pois não sai do indivíduo, mas dele emana e dele depende. Nas palavras de Bonavides (2011, p. 152), “ainda introduzido na Constituição, o poder constituinte se conservaria sempre originário e pleno, não conhecendo limitações materiais.”. É assim que, segundo Paulo Bonavides, o poder constituinte originário segue ativo após a feitura do texto constitucional vigiando a sua criação e a atualizando, ainda que de forma sutil. Nas palavras de Bonavides:

Não é o jurista profissional, de formação positivista, que descobre a variedade do poder constituinte em tela, senão aquele que, dotado de ampla visão sociológica, vislumbra nos acórdãos das cortes constitucionais o exercício de um tal poder constituinte, anônimo, silencioso, mas sumamente eficaz. Exercita-se por múltiplas vias. Fruto às vezes da função criadora dos juízes que interpretam a Constituição formal à luz de uma “compreensão prévia”, ele nasce impregnado de realidades existenciais, como os juristas da tópica excelentemente assinalaram em profundas reflexões de filosofia do direito. Manifesta-se também difusamente, fora dos tribunais, à margem do texto constitucional, com a mesma força normativa. Prende-se nesse caso a instâncias mais recuadas, familiaríssimas às Constituições costumeiras.

     Faz ele a estabilidade e a permanência das criações constitucionais, mantém atualizada a Constituição, consolida o poder legítimo ou pelo menos tende a consolidá-lo e produz fenômenos de longevidade como a Carta de Filadélfia, que já comemorou duzentos anos de existência. É um poder constituinte material em contraste com o poder constituinte formal. (BONAVIDES, 2011, p. 187-188).

Essa visão de Bonavides é observável na prática atual dos tribunais constitucionais denominada mutação constitucional, todavia, em que pese o respeito ao autor, esta visão carece de justificação pós-positivista, pois apesar de haver casos onde esse pretenso poder siga o poder constituinte originário, atualizando o texto obsoleto em antecipação às formas jurídicas de o fazê-lo, há uma total falta de critério para a verificação dos casos onde ele vai contra o poder constituinte originário, fenômeno que faz voltar a incerteza do jusnaturalismo, e enseja uma atuação autoritária e ilegítima do judiciário. O judiciário não é, de forma alguma, campo para atuações de natureza política, muito embora seja imanente à interpretação a tarefa criadora de direito. Numa análise que extrapola o campo técnico jurídico, já ingressando no campo sociológico, mas que se mostra necessário fazer, percebe-se que a mutação constitucional inaugura algo que pode-se chamar de populismo do judiciário ou paternalismo do judiciário observado que, embora, muitas vezes (nunca todas), tal conduta reflita o real entendimento do povo e a caducidade da norma, produz também, inexoravelmente, a retirada da tensão entre norma e vontade popular, tensão esta que faz brotar os movimentos políticos genuínos pelas vias ordinárias permitindo que o povo reconheça o poder que possui, aperfeiçoando a democracia e o Estado.

Por outro lado, a visão meramente positivista, que excluiria esse caráter permanente do poder constituinte produz, também, a incongruência apontada por Friedrich Müller:

A legitimidade ser-lhes-ia insuflada uma primeira e única vez; a partir de então eles poriam e disporiam violentamente acerca do povo, de posse dos pouvoirs constitués por força da Constituição. Mas não há poder constituinte do povo onde o poder contempla o povo em alienação; onde o povo não encontra a si mesmo, mas apenas a violência de um Estado que mantém um povo para si. (MÜLLER, 2004, p. 26-27).

A antinomia positivista é clara, todavia, embora o texto legal não seja capaz de suprimir o poder constituinte originário, é nele que se sustenta o ordenamento jurídico. O pós-positivismo traz uma visão intermediária que, embora mantenha a base no ordenamento jurídico positivo, permite ao intérprete direcioná-lo no sentido do dever-ser na medida do permitido pela razão e a racionalidade do sistema jurídico, ou seja, o intérprete visa o dever-ser, ou seja, os valores impressos na Constituição do Estado, mas tem como limite de atuação o poder-ser, conforme os limites positivos traçados no próprio ordenamento jurídico (MARANHÃO, 2009).

O caráter ilimitado do poder constituinte é classicamente apontado pela doutrina, sendo uma importante forma de compreensão da natureza de tal poder, todavia outros questionam a sua validade enquanto atualmente a dinâmica internacional cria obrigações entre os Estados que estão num outro nível de normas, o que faz questionar se esta ilimitação é realmente plena. Na mesma senda ainda se confronta a ilimitação à teoria da vedação do retrocesso, teoria segundo a qual não é possível uma volta ao ordenamento jurídico de normas que violem os direitos humanos e fundamentais que já se encontram protegidos e que foram conquistas históricas. De qualquer o caráter da ilimitação do poder constituinte é um importante indicativo da natureza do poder que encerra, ainda seja questionável o alcance deste poder.

Dessa forma, é possível concluir que o poder constituinte originário é ilimitado, incondicionado, político (extrajurídico) e permanente, não se exaurindo no momento da criação da constituição, mas permanecendo junto ao seu titular na realidade da vida, dependendo apenas de instrumentos próprios para a sua manifestação, instrumentos estes que, segundo a Constituição brasileira são: o sufrágio, o voto, o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular.

2.3. O Poder Constituinte Derivado

O poder constituinte derivado é o poder de modificar a Constituição após a sua criação pelo poder constituinte originário, sendo condicionado e limitado às formas de manifestação e de objeto indicados no próprio texto constitucional, já que não possui caráter político como o originário, apenas o caráter jurídico. Segundo Silva (2011) ele existe apenas pela dificuldade de se convocar o poder constituinte propriamente dito (o originário) todas as vezes que houvesse necessidade de discussão de reformas à Constituição, assim o constituinte originário estabeleceu na própria constituição a competência de outro órgão para executar tal função, o que no Brasil é feito pelo Congresso Nacional. A doutrina também fala do poder constituinte derivado decorrente como o responsável pela estruturação das constituições estaduais, respeitando os princípios básicos que devem manter a unidade nacional (COSTA, 2001).

A reforma constitucional é o termo utilizado para qualquer alteração no texto e é subdividida em dois tipos: a emenda e a revisão. Segundo José Afonso da Silva (2011), a emenda constitucional é a modificação de certos pontos permitidos pelo constituinte originário enquanto a revisão é uma alteração anexável, exigindo formalidades e processos mais lentos e dificultados que a emenda.

A CRFB/88 pode ser classificada como uma constituição rígida já que exige um procedimento mais dificultoso para sua reforma do que o procedimento para alteração legislativa, dificuldade esta que consiste, no que se refere à emenda à CRFB/88, em limitações quanto à iniciativa, ao procedimento, quanto à circunstância e quanto à matéria, todas previstas no art. 60 da mesma.

Quanto ao procedimento, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) só é aprovada após discussão e votação em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional, ou seja, Câmara dos Deputados e Senado Federal, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. Quanto à circunstância, a Constituição não poderá ser emendada quando houver intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Quanto à matéria, é vedada a PEC tendente a abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.

No que se refere à iniciativa, a PEC só poderá ser proposta pelo Presidente da República, por um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação por maioria relativa de seus membros em cada uma delas.

Neste ponto faz-se interessante notar que em outros países as emendas aprovadas sujeitam-se ainda a referendo, como é o caso da Suíça e da Itália, sendo que neste primeiro e também em Portugal é admitida a proposta de emenda por iniciativa popular (cf. SILVA, 2011, p. 63). Esses instrumentos, conforme amplamente discutidos anteriormente fornecem maior grau de legitimidade ao ordenamento jurídico por ligarem diretamente o poder constituinte ao povo. Importante notar também que durante a elaboração CRFB/88 haviam projetos que admitiam a iniciativa e o referendo populares em matéria de emenda à Constituição, todavia os mesmos foram rejeitados pelo plenário (SILVA, 2011, p. 63), o que indica que estas formas não só deixaram de aparecer no texto, mas foram voluntariamente excluídas pelos congressistas da Assembleia Constituinte.

Vê-se, pois, que no Brasil o poder constituinte derivado se deposita no Congresso Nacional, sendo este um poder constituinte constituído já que seus poderes foram dados pelo poder constituinte propriamente dito, ou seja, o poder constituinte originário.


3 A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL DE INICIATIVA POPULAR

3.1. A Iniciativa Popular no Brasil

A Iniciativa Popular é prevista na CRFB/88, art. 14, III, como um instrumento da soberania popular, termo este que já traz, num Estado Democrático, um pleonasmo ínsito vez que todo o poder emana do povo: se não há poder que não emane do povo, a única soberania possível é a soberania do povo ou soberania popular. Neste sentido, segundo José Luiz Quadros de Magalhães (2002), soberania na ordem interna significa poder supremo, ou seja, que não existe qualquer poder paralelo ou acima daquele poder. Na mesma senda Kildare Gonçalves de Carvalho (2005, p. 381) identifica soberania como “o poder de mando de última instância numa sociedade politicamente organizada”. Aqui fica clara a semelhança de características do poder soberano do povo e do poder constituinte originário permanente, conforme indicado no capítulo anterior, o que permite concluir pela identidade de conceitos, sendo, um e outro, o mesmo. Parece indicar tal identidade de conceitos a conclusão de Hermann Heller: “É soberano o Poder (Constituinte) que cria o direito = a organização estatal” (HELLER, 1968, p. 336 apud FARIAS, 1988, p. 54). No que se refere à soberania, nunca é demasiado relembrar o valor dado a este fundamento na CRFB/88 posicionando-a no primeiro inciso do artigo primeiro que lista os fundamentos do Estado brasileiro.

Neste sentido, parece reforçar a ideia de identificação dos instrumentos da soberania com a manifestação do poder constituinte do povo, incluindo a iniciativa popular, o fato de a Lei 9.709/98, que regulamenta os incisos do art. 14 da CRFB/88, estabelecer que o projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por qualquer vício de forma, em identificação clara com a característica incondicionada do poder constituinte originário.

Voltando, entretanto, a visão do poder constituinte soberano para o poder constituído limitado, nota-se que não aparece na CRFB/88 a Iniciativa Popular para assuntos constitucionais, mas apenas para propostas de lei, oportunidade em que o art. 61, §2º da CRFB/88 estabelece as condições para tal iniciativa consistentes em subscrição da proposta por, no mínimo um por cento do eleitorado nacional distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. E não é só isso, conforme indica José Afonso da Silva (2011) a emenda constitucional por iniciativa popular era prevista no Projeto apresentado pela Comissão de Sistematização em seu art. 74, § 2º, todavia tal previsão foi derrubada no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, excluindo expressamente tal instrumento do texto da Constituição Federal de 1988.

Outro ponto de destaque na situação da iniciativa popular no ordenamento jurídico brasileiro diz respeito à eficácia da sua norma definidora. Com efeito, conforme doutrina de Paulo Bonavides (2011), as normas constitucionais diferem quanto à eficácia, podendo ser classificadas em: normas programáticas, normas de eficácia diferida e normas imediatamente preceptivas. As primeiras estabelecem programas de comportamento ao legislador, vinculando-o, não sendo criadora de institutos ou nem determinam com clareza as bases das relações jurídicas, as últimas são as normas que diretamente regulam as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado. Já as normas de eficácia diferida, entre as quais se encontra o artigo 14 da CRFB/88, trazem definida, intacta e regulada a matéria que têm como objeto, aguardando, entretanto, apenas meios técnicos ou instrumentais a serem definidos na lei para exaurirem a sua regulação, ou seja, lhe darem inteira eficácia, dessa forma, a iniciativa popular é uma forma de exercício da soberania popular, cabendo à lei definir a sua instrumentação e meios técnicos de realização. A classificação de Bonavides não difere essencialmente à clássica separação feita por José Afonso da Silva que divide as normas em: normas de eficácia limitada, dentre as quais se encontram as normas de princípio institutivo e as normas de princípio programático; as normas de eficácia plena; e as normas de eficácia contida. Neste ponto cabe a lição de José Afonso da Silva sobre as normas de eficácia contida: “Enquanto não sobrevier legislação posterior que a restrinja, sua eficácia é plena” (SILVA, 1987 apud CARVALHO, 2005, p. 215).

No caso da iniciativa popular a regulação veio através da Lei 9.709/98 que limita-se a determinar que é possível apenas um assunto ao projeto de lei, que ele não padecerá de vício de forma, conforme referido acima, no mais, repete a redação do art. 61, § 2º da CRFB/88 que determina que o projeto de lei de iniciativa popular deve ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

3.2 A PEC de Iniciativa Popular

Iniciando a discussão sobre a possibilidade de PEC de iniciativa popular no direito brasileiro, independentemente de qualquer alteração legislativa, faz-se oportuno trazer o que sustenta José Afonso da Silva, doutrinador segundo o qual, os institutos da soberania popular, a saber, plebiscito, referendo e iniciativa popular são institutos cujo uso vai depender do desenvolvimento e da prática da democracia participativa, mas que a partir de uma interpretação sistemática com base em normas gerais e princípios fundamentais da Constituição admite-se a iniciativa popular de emendas, caso em que as percentagens previstas no §2º do art. 61 serão invocáveis (SILVA, 2011, p. 64).

A primeira afirmação do autor parece confirmar toda a teoria que se tem atualmente em torno da democracia, entendendo-a como processo em aperfeiçoamento dinâmico em direção à, cada vez melhor, ampliação dos instrumentos de participação.

No que se refere à interpretação sistemática, é necessário retomar os princípios da hermenêutica constitucional que permitam avaliar a construção de José Afonso da Silva para que possa se afirmar com segurança a permissão constitucional da PEC de iniciativa popular.

3.2.1 A Hermenêutica Constitucional

Segundo Mendes, Coelho e Branco (2008), pode-se identificar um grande princípio hermenêutico que baliza todo o ordenamento jurídico, sendo verdadeiro princípio mor para a compreensão do direito, trata-se do postulado do legislador racional. Segundo este postulado deve-se entender o legislador como ente racional, o que acarreta o seu entendimento como um ente singular, coerente, consciente, onisciente, preciso e operativo, dentre outros predicados que permitam entender o direito como a instância da razão da sociedade. Estas construções remontam às teorias do Estado-razão que entendem o Estado como domínio da razão. Hegel, teórico da razão, colocava o Estado como o “racional em si e por si”, Hobbes em sua obra “De cive” escreve: “Fora do Estado é o domínio das paixões, a guerra, o medo, a pobreza, a incúria, o isolamento, a barbárie, a ignorância, a bestialidade. No Estado é o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decência, a socialidade, o refinamento, a ciência, a benevolência” (BOBBIO, 2000b, p. 120-121)[1]. Nesta mesma senda, Spinoza arremata que o Estado, e apenas o Estado, consente ao homem aplicar a suprema lei da razão, que é a lei da própria conservação, ele deve comportar-se, se quer sobreviver, diversamente do que acontece aos homens no estado de natureza, racionalmente (BOBBIO, 2000b, p. 120-121)[2].

Deste preceito extraem-se outros princípios de interpretação que descrevem e identificam as propriedades racionais de todo o ordenamento jurídico (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 112).

Unidade da constituição: segundo este princípio interpretativo, a Constituição deve ser entendida como um corpo único, formando um conjunto todo coerente indicador de uma só vontade para cada questão posta sob seu cotejo. Esse princípio indica também que todas as contradições no texto constitucional são apenas aparentes, devendo ser feito um juízo de adequabilidade onde todo o corpo se harmonize em um só mandamento coerente para os problemas que surgirem (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 114).

Concordância prática: decorre do princípio da unidade da Constituição e indica que as normas constitucionais, em situações de concorrência entre bens e valores, adotará solução que otimize estes sem que acarrete a negação de qualquer destes bens ou valores. Assim, ainda que uma norma textualmente contradiga outra norma constitucional nunca haverá supressão de uma delas ou anulação de seu significado, mas uma concordância entre ambas até o melhor ponto possível que preserve ambas (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 114-116).

Máxima efetividade: trata-se de princípio que indica a procura pela otimização da eficácia das normas constitucionais, indica ao intérprete que procure densificar os preceitos constitucionais, que não esqueça qualquer pedaço do texto ou o trate, como diria Ferdinand Lassale, como uma mera folha de papel, mas lhe dê efetividade (CARVALHO, 2005, p. 249; MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 118-119).

Interpretação conforme: este princípio indica que, entre os diversos sentidos que possa adotar uma norma, deve-se adotar aquele que torne esta norma constitucional, abandonando aquele significado que a eive de inconstitucionalidade, buscando sempre a preservação das normas em respeito ao legislador e à presunção de constitucionalidade das normas. O limite da interpretação conforme, que tem ampla aceitação e uso no Supremo Tribunal Federal, é a inversão dos objetos, ou seja, em vez de interpretar a lei em face da Constituição, interpreta-se a Constituição em face das leis, muitas vezes quebrando a hierarquia das normas e desprestigiando a máxima efetividade (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 119-120). Sobre a interpretação conforme ainda pode-se frisar as considerações de Bonavides:

Os limites entre a interpretação e a criação do direito são fugazes, inseguros, movediços, passando-se às vezes quase imperceptivelmente da interpretação declaratória para a interpretação constitutiva, e por via desta – o que é mais grave – para a interpretação contra legem. Corre o juiz ou o intérprete o risco de não interpretar a lei, mas de reformá-la. De sorte que, em assim acontecendo, suprime-se uma das maiores vantagens de interpretação conforme a Constituição, qual seja, a de afiançar a sobrevivência da lei, não lhe declarando a nulidade. (BONAVIDES, 2011, p. 523).

Além desses princípios consagrados no direito constitucional, Carvalho (2005) ainda aponta métodos desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência a partir de critérios ou premissas filosóficas, metodológicas e epistemológicas, o que se passa a identificar.

O método jurídico leva em conta os cânones tradicionais da hermenêutica consistentes, entre outros, no elemento filológico (literal, gramatical, textual), no elemento histórico e no elemento teleológico (racional) (CARVALHO, 2005).

O método tópico-problemático, surgido à partir de uma corrente específica que propunha uma nova forma de pensar a solução de questões jurídicas, tendo como foco o problema concreto e métodos de sugestão de soluções, desprivilegiando, entretanto, o sistema jurídico (CARVALHO, 2005).

O método hermenêutico-concretizador parte de uma compreensão do texto constitucional iniciado pela pré-compreensão do seu sentido pelo intérprete e direcionado à concretização da norma para e a partir de uma situação histórica concreta. Busca, enfim, destacar a forma como o intérprete reúne texto e contexto (CARVALHO, 2005).

O método científico-espiritual indica uma conduta do intérprete no sentido de buscar o sentido e a realidade dos valores subjacentes ao texto constitucional num processo de integração do mesmo (CARVALHO, 2005).

O método normativo-estruturante, por sua vez, indica ao intérprete dois elementos de concretização: um formado pelo resultado da interpretação e outro formado pelo referente normativo, ou seja, o texto e a realidade social que o mesmo visa conformar (CARVALHO, 2005).

Vê-se que todos os princípios e métodos interpretativos, consagrando os princípios da certeza e da segurança jurídica (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008), giram em torno da racionalidade da Constituição que, por sua vez, decorre da racionalidade do Direito.

3.2.2 A Interpretação Sistemática sobre a PEC de Iniciativa Popular

Segundo Carvalho (2005) a interpretação pelo elemento sistemático trata-se da utilização, como elemento interpretativo, do elemento lógico. Analisando a jurisprudência e os conceitos de vários doutrinadores, percebe-se que o significado da interpretação sistemática liga-se diretamente à concepção da unicidade, não só da Constituição, mas de todo o ordenamento jurídico, de tal forma que possa se considerar o ordenamento jurídico como um sistema, este sistema, por sua vez, possui o caráter geral de ser racional-lógico.

Neste sentido, a interpretação sistemática revela-se não como determinado método de interpretação à escolha do hermeneuta, mas verdadeiro mandamento interpretativo sobre o mesmo, impedindo concepções limitadas ou deficientes do ordenamento jurídico e da racionalidade própria do direito, principalmente e com muito mais ênfase, após a emergência do pós-positivismo.

Neste ponto, já é possível analisar todo o sistema jurídico em torno da PEC de iniciativa popular.

Iniciando pelo seu fundamento base tem-se o parágrafo único do art. 1º da CRFB/88, norma que conecta o poder constituinte originário, de origem política, extrajurídica, estabelecendo a base de legitimidade de todo o ordenamento jurídico positivado na Constituição, identificando o povo como a instância máxima do poder do Estado, nos moldes exigidos numa democracia participativa, ou seja, onde o poder (do povo) é exercido por meio de representantes ou diretamente.

Diferenciando o conceito de povo de outros semelhantes, vale destacar voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandovski, na ADI 2650, em que o Ministro faz a distinção entre povo, população e nação resumindo a produção doutrinária sobre a teoria do Estado e da Ciência Política de forma simples, mas precisa;

Povo é um conceito jurídico-político, e refere-se ao conjunto do (sic) cidadãos, aqueles que expressam a soberania popular. População é um conceito numérico, um conceito demográfico, refere-se a um grupo de pessoas localizados precisamente num determinado território, no espaço e também no tempo histórico. E há um terceiro conceito, muito discutido entre esses estudiosos, que é o conceito de nação, o qual distingue-se dos demais por ser um conceito sócio-antropológico: é o grupo de pessoas que tem um (sic) identidade cultural, étnica ou até racial eventualmente. (BRASIL, 2011, p. 41, grifo nosso).

Ressalta-se do conceito apresentado pelo Ministro o caráter jurídico-político do conceito de povo, ou seja, ele está ao mesmo tempo na realidade da vida e dentro da ficção do direito, sendo que o caráter político é anterior ao jurídico, pois a este cria e empresta legitimidade.

Destaca-se também, agora numa esfera totalmente jurídica, que a Constituição colocou a soberania e a cidadania, elencados entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito. O primeiro, a soberania, um bem jurídico a ser observado e preservado tanto na ordem interna quanto na ordem externa, significando que não há outro poder superior àquele, ou seja, é incapaz de ser sobrepujado ou limitado. O segundo, a cidadania, um valor constitucional que indica a participação efetiva das pessoas na formação política da vontade estatal e nas demais formas de exercício do poder do Estado. A cidadania é utilizada em dois sentidos, um amplo e outro restrito, em seu sentido restrito identifica-se com o próprio sufrágio, ou seja, o direito de escolher seus representantes, em sentido amplo significa algo além disso, identificando o indivíduo como um sujeito integrante do Estado e participante de seu funcionamento geral, seja pelo sufrágio, pelos instrumentos da soberania popular já referidos, pela movimentação dos serviços ou recursos públicos de solução de problemas, pela fiscalização dos seus representantes, pela própria conduta ética em seu procedimento, conforme já afirmava Kant (2011) em seu imperativo categórico e muitas outras formas de efetivamente se tornar parte do Estado, não só uma vítima dos erros deste (cf. SILVA, 2011).

Propriamente sobre a iniciativa de emendas constitucionais a Constituição estabelece em seu artigo 60, cabeça e incisos, os legitimados à propositura de emendas, sendo eles o Presidente da República; um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação por maioria relativa em cada uma delas (BRASIL, 2012). Como se nota, a Constituição não faz menção à iniciativa popular entre os legitimados à iniciativa de Proposta de Emenda Constitucional, estabelecendo um rol claramente taxativo que exclui o povo para tal procedimento, e mais, conforme indicado por José Afonso da Silva (2011), tal hipótese fora recusada expressamente pelo legislador constituinte.

Prosseguindo na análise do texto constitucional, tem-se o art. 14 da CRFB/88 que estabelece as formas de exercício da soberania popular, formas dentre as quais se encontra a iniciativa popular a ser exercida nos termos da lei, conforme texto já transcrito acima. A expressão nos termos da lei identifica a norma claramente como norma constitucional de eficácia diferida, padecendo de regulamentação que lhe dê operacionalidade. A norma que regula a iniciativa popular é a Lei 9.709/98 que nada mais faz do que trazer, em um singelo artigo sobre o tema, a repetição do quórum para iniciativa popular de lei, a limitação a um assunto para a iniciativa popular e a sua imunidade aos vícios de forma. Neste ponto cumpre destacar que eventual previsão de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular em sede de lei traria um problema estrutural ainda mais difícil de ser resolvido já que a matéria é tratada expressamente na Constituição, o que faria com que a lei invadisse um espaço tutelado pela Constituição incompatível com nosso sistema hierárquico-normativo.

De toda forma, apesar da impossibilidade de ultrapassar o limite do espaço constitucional, a crítica à Lei 9.709/98 é feita por Bonavides que se manifesta nos seguintes termos:

[...] a fragilidade e insuficiência dos conteúdos participativos da lei em tela certificam manifesta ofensa ao princípio da legitimidade, tendo-se em vista que o legislador sufocou e invalidou o desígnio constituinte de fazer do povo, no exercício da democracia direta, a peça chave do regime, qual se infere da interpretação da letra e do espírito principiológico que move o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal (BONAVIDES, 2003, p. 108 apud CARVALHO, 2005, p. 148, grifo nosso).

Em atenção à interpretação pelo elemento gramatical e histórico, o silêncio da Constituição sobre a possibilidade de projeto de emenda constitucional de iniciativa popular é claramente um silêncio eloquente o que é equivalente à afirmação de que a Constituição proíbe o projeto de emenda constitucional de iniciativa popular. A pergunta é: a Constituição pode proibir a emenda Constitucional de Iniciativa Popular? A resposta é claramente positiva vez que o poder constituinte que criou a Constituição é ilimitado e soberano. A iniciativa popular, por ser uma manifestação apenas de parte do titular do poder constituinte, e não a manifestação do seu titular enquanto tal, com este não se confunde, sendo passível de limitação por parte do soberano representado na Constituição escrita.

Há na Constituição, entretanto, um ponto que impede a conclusão acima. Trata-se da identificação feita entre exercício da soberania popular e iniciativa popular. O próprio constituinte originário optou por equiparar o exercício de seu poder à manifestação de uma fração dos cidadãos pelo instrumento Iniciativa Popular, fato que traz uma reviravolta no campo interpretativo em relação à iniciativa popular.

Se a soberania se exerce pela Iniciativa Popular e a iniciativa popular regulada não possui qualquer viés de soberania/poder constituinte do povo, por ser-lhe vedada a penetração em matéria constitucional, então há uma contradição impossível de se conceber na Constituição, sendo que esta contradição é apenas aparente, por mais evidente que se apresente, conforme ampla doutrina sobre hermenêutica constitucional já indicada.

Neste ponto, fracassam as regras tradicionais de hermenêutica e surge a necessidade de se buscarem outros meios de solução de problemas interpretativos, dando margem a possíveis interpretações subjetivas. Segundo a concepção pós-positivista, entretanto, estas posições não se sustentam. A interpretação, assim, há de se conduzir segundo os princípios aplicáveis, pelas construções da razão e seus imperativos. Neste ponto, são destacáveis as ponderações de Bonavides:

Dissolvendo na casuística a lei constitucional, a moderna hermenêutica provoca do mesmo passo uma incerteza ou insegurança manifesta com respeito ao Direito Constitucional, às suas formas, institutos, técnicas e conceitos. Presume-se, com apreensão de todos, que o juiz, investido de poderes decisórios extremamente dilatados, usurpe a função constituinte do povo ou da representação democrática legítima. (BONAVIDES, 2011, p. 485).

No que se refere aos princípios envolvidos, tem-se o princípio democrático (art. 1º da CRFB/88), o princípio da cidadania (art. 1º, II da CRFB/88). Esses dois princípios indicam, sem sombra de dúvida, a busca do Estado brasileiro por uma pluralização dos espaços de criação da vontade estatal, pela inclusão cada vez maior de indivíduos nas discussões referentes à atuação do Estado.

Como já referido anteriormente, a democracia não se refere a um bem jurídico, a um conceito estático, mas refere-se a um processo a ser aperfeiçoado gradativamente pela criação de instrumentos que permitam ao povo a participação no poder estatal. A democracia também possui uma justificação racional, baseando-se na racionalidade do indivíduo e na sua capacidade de autodomínio e autodeterminação, conforme lição de Norberto Bobbio já exposta.

Friedrich Müller, inconclusivamente, entende que, caso se entenda o poder constituinte em termos diretamente fáticos, ou seja, independente de qualquer intermediário e exercido diretamente pelo povo, “a iniciativa popular, a realização e a avaliação deveriam estar também ativamente nas mãos do povo.” (MÜLLER, 2004, p. 38). O autor também analisa essa tensão entre o domínio fático exercido por entidades outras que não o povo na sociedade e o domínio ficto-jurídico, mas único capaz de justificar uma sociedade legitimamente organizada nos seguintes termos:

Por esta razão e com vistas a esse fato, nada contra Locke, Sieyès e seus sócios. Mas o que desrecomenda fazer do “poder constituinte do povo” enquanto conceito finalista dos dominadores (do povo), a serviço dessa mesma dominação, finalmente um conceito do povo para a sua autodominação?

Nada; a não ser a “vontade” (os interesses, as teorias, os conceitos) dos dominantes. Nada de insuperável (para o povo), portanto. (MÜLLER, 2004, p. 30)

Malgrado estes valores constitucionalmente tutelados e estes imperativos éticos indicadores da adoção de instrumentos de participação popular junto ao Estado, sob um paradigma pós-positivista do direito, não se admite mais a concretização direta de valores, mas a sua realização vai depender dos limites traçados pelo próprio ordenamento jurídico. Não se faz uma ponderação do dever ser, mas do poder ser segundo os limites traçados na própria constituição (MARANHÃO, 2009).

Analisando os limites traçados na Constituição percebe-se que a norma que aparentemente se contraporia à Iniciativa Popular em matéria Constitucional é a própria ausência de texto expresso no art. 60 sobre tal possibilidade, o que indica a ausência de proibição expressa neste sentido, havendo certa margem de possibilidades interpretativas que permitam harmonizar toda a Constituição material por este caminho.

Por estas razões é possível afirmar que, segundo uma interpretação sistemática da Constituição sob os moldes do pós-positivismo, ou seja, sem qualquer influência metafísica ou sob a influência do concretismo de valores subjetivos, é possível afirmar que a Constituição brasileira admite a iniciativa popular para proposta de emenda constitucional.

Sobre a falta de lei que regulamente tal disposição há que se levar em conta a máxima efetividade das normas constitucionais devendo ser feita uma interpretação conforme a Constituição no sentido de adequar a lei ao entendimento constitucional, entendendo-se por “lei”, na redação das normas sobre o projeto de lei de iniciativa popular, o conjunto das normas passíveis de iniciativa popular, conforme determina a Constituição.


CONCLUSÃO

A democracia na atualidade assume significado novo, diferente do que foi utilizado na antiguidade, quando limitava-se à democracia direta, e diferente das primeiras construções feitas nos séculos XVIII e XIX, quando emergiu a democracia representativa como a melhor forma, ou pelo menos a melhor forma executável, de organização do jovem Estado de Direito. Atualmente a democracia é entendida como processo, e, assim, não indica uma realização concreta do Estado para sua criação ou concretização, mas indica mecanismos a serem aperfeiçoados e ampliados a fim de aumentar o grau de legitimidade da produção legislativa e executiva consistentes nas manifestações de vontade estatal. A democracia também não deve ser entendida como um instrumento a ser aperfeiçoado seguindo o caminho da democracia representativa para a democracia direta, abandonando a primeira e acolhendo a segunda, como se fossem escolhas excludentes, mas deve ser entendida como um sistema uno, incluindo mecanismos da democracia direta e da democracia representativa que, juntos, pela forma como vão permitir a fidelidade entre manifestação estatal e soberania do povo, ao mesmo tempo em que permitem uma eficiência em tal processo, vão indicar a qualidade da democracia.

O conceito de democracia como processo impede que o poder judiciário tome posição ativa no sentido de concretizar a democracia em algum sentido, mas não anula o princípio democrático, que deve ser tomado como uma perseguição estatal constante, tendo como limites aqueles traçados na própria constituição.

A democracia, além de ser uma opção adotada em todo o planeta, é um regime político que possui fundamento moral na razão prática e no indivíduo racional como o melhor árbitro de seu interesse, conforme já assinalado no pensamento de Kant e Bobbio referidos no capítulo 2.

Num Estado Democrático a soberania é a soberania do povo, de tal forma que é possível identificar poder soberano e poder constituinte como sinônimos. O poder constituinte pode ser definido como um poder ilimitado, incondicionado, político (extrajurídico) e permanente e é dele que provém a Constituição e a ordem jurídico-Estatal. O poder constituinte, pela dificuldade de sua manifestação encarrega alguns órgãos do Estado para o exercício de seu poder em determinadas matérias, trata-se do poder constituinte derivado.

No Brasil o poder constituinte derivado é exercido pelo Congresso Nacional, sendo que a Constituição expressamente determina três legitimados para a iniciativa de emendas à Constituição: o Presidente da República, um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação por maioria relativa em cada uma delas.

A Iniciativa Popular não é expressamente prevista como um dos meios de se provocar a iniciativa de emenda constitucional, todavia é identificada pela Constituição como um dos modos de exercício da soberania popular, ou seja, é uma forma com que o poder soberano do povo pode ser exercido. Tal fato gera um conflito aparente de normas constitucionais vez que há uma limitação aparente da Iniciativa Popular por ser vedada a sua penetração em assuntos Constitucionais.

A solução de tal controvérsia, num prisma pós-positivista do direito, não pode ser visto como um campo aberto à intervenção do intérprete da Constituição que utilizará valores, ainda que constitucionalmente tutelados, para justificar quaisquer decisões sobre a controvérsia. Antes, há que haver uma interpretação lastreada na racionalidade do sistema jurídico onde o ponto de partida e os limites da interpretação sejam dados pelo ordenamento jurídico positivado. Neste sentido, o princípio democrático não é suficiente para inferir que o ordenamento jurídico admite a PEC por iniciativa popular vez que o atual conceito de democracia liga-se a um processo e não a um bem jurídico passível de realização.

No caso em questão, a proibição da Constituição para a Iniciativa Popular em matéria constitucional não é expressa, embora haja um silêncio eloquente neste sentido. De outro lado a Constituição só pode ser interpretada sistematicamente, ou seja, de uma forma em que o conjunto de suas normas forme um todo harmônico e racional, nos moldes dos princípios interpretativos da unicidade, da máxima efetividade e da concordância prática. Assim, devem ser levados em conta, neste ponto da interpretação os valores constitucionalmente tutelados e as construções da razão prática até o limite da não violação do texto da Constituição.

Dessa forma, percebe-se que a Constituição admite a Iniciativa Popular para Propostas de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, conclusão à que se chega a partir de uma interpretação racional e sistemática da CRFB/88.

Sobre a hipótese de que há inviabilidade de realização deste permissivo constitucional pela não existência de lei que regulamente tal medida, opõe-se a hierarquia das normas, o que exige um paralelo entre Constituição e lei de tal forma que, conforme indica o princípio da interpretação conforme, sejam adotados os sentidos da lei tais que se adéquem à Constituição.

A hipótese de violação da rigidez constitucional pela adoção de quórum semelhante para a proposta de lei e para a proposta de emenda Constitucional há que se levar em conta que a competência do Congresso Nacional ainda se mantém plena para a apreciação da PEC, inclusive com o quórum dificultado de aprovação, o que preserva a rigidez constitucional.


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Notas

[1] Sem referência à fonte no original.

[2] Sem referência à fonte no original.


ABSTRACT: The present monograph seeks to debate controversy in the Brazilian juridical system between the implied prohibition to constitutional amendment by popular initiative and the support, by some scholars, that a systematic interpretation of the Constitution allows us to affirm that it welcomes the Popular Initiative as an instrument able to the initiative of proposal of Constitutional Amendment. It starts with a rational postpositivist comprehension of the right for the analysis, then, of the democracy, the State and the constituent power, according to the deductive method. The theoretical research indicated that the current theoretical concept of democracy prevents its implementation as a legal good, saw that it should be understood as a process and not as a destination. By the application of the hermeneutical criteria and systematic interpretation to the case might conclude that there is an apparent conflict of norms in the constitution that calls, for its solution, a balancing of constitutionally protected values ??and imperatives of the practical reason that find no obstacle in the Constitution, what allows us to affirm that the Constitution, in its complete sense, admits the Proposal of Constitutional Amendment of Popular Initiative.

Keywords: Democratic principle. Constituent power. Popular initiative. Systematic interpretation. Postpositivism


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OLIVEIRA, Luan José Silva. A proposta de Emenda Constitucional de iniciativa popular no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3550, 21 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23991. Acesso em: 25 abr. 2024.