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Reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas/homossexuais

os três pilares principais do julgado do STF

Reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas/homossexuais: os três pilares principais do julgado do STF

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Cogitar que o direito a constituir uma união estável ou casamento homoafetivo não seja válido é questionar todo ordenamento jurídico brasileiro e pôr em xeque também todas as demais conquistas relativas aos direitos fundamentais.

Sumário: 1. Introdução    2. A decisão do STF em relação ao reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas: breve histórico e fundamentação do julgado.  3. Três questões jurídicas pertinentes.    3.1. Necessidade de aplicação de variados tipos de interpretação constitucional. 3.2. Judicialização, ativismo e solipsismo: o lugar do Judiciário no Brasil.  3.3. Defesa da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação.  4. Considerações Finais   5. Referências.


1. Introdução

A questão das uniões homoafetivas tem estado, já há algum tempo, no centro de diversos questionamentos religiosos, sociais, políticos e jurídicos. Tabu social e bíblico, mas fato social patente, tal espécie de união tem despertado os mais variados sentimentos e causado acaloradas discussões. O fato é que não adianta negar ou tentar esconder, as uniões homoafetivas estão crescendo: o IBGE contou mais de 60.000 famílias desse tipo no último censo. Não cremos que tenha havido aumento no número de pessoas que se consideram homossexuais, mas no número de pessoas que reconhecem para a sociedade sua condição. Atualmente, o direito ao exercício livre e desembaraçado da sexualidade tem ganhado contornos e proteção bem definidos, como outros Direitos Fundamentais igualmente importantes. A sociedade passa por inegável mudança e direitos por muito tempo negados a esses cidadãos – como deixar herança para o companheiro, colocar como dependente no plano de saúde e ter a união estável reconhecida – agora passam a ser reconhecidos em obediência à CF/1988.

Nesse sentido, um importante passo foi dado em 2011, quando o STF reconheceu a validade e pertinência constitucional da união estável homoafetiva/ homossexual. Embora o julgado tenha causado diversas reações – do júbilo à ira, da aprovação irrestrita à desaprovação cabal – devemos reconhecer que o Brasil deu um salto em direção à igualdade entre os seres humanos, buscando suplantar a discriminação e valorizar a dignidade da pessoa humana.

Nesse artigo, discorreremos brevemente sobre a fundamentação desse importante julgado, conforme seus três pilares básicos: dignidade da pessoa humana, interpretação constitucional e atuação proativa do STF em face da falta de regulamentação de um fato jurídico.


2. A decisão do STF em relação ao reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas: breve histórico e fundamentação do julgado.

 Em 2008 foi ajuizada pelo Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 132. O documento requeria que o Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro e o art. 1723 do Código Civil passassem pelo processo de “interpretação conforme a Constituição”, aquele para considerar como afrontas aos direitos fundamentais (liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana) as decisões denegatórias de reconhecimento de uniões homoafetivas e este para aplicação da analogia a essas uniões em relação às heteroafetivas.

 No ano seguinte, a Procuradoria Geral da República ajuizou a ADPF n° 178, já solicitando a distribuição por dependência à ADPF n° 132. Em resumo, a petição, mencionando direitos fundamentais como liberdade, proibição da discriminação, isonomia, dignidade da pessoa humana, violação à segurança jurídica, requereu, com fulcro na interpretação sistemática e teleológica da Constituição, bem como no Direito Comparado e no próprio dinamismo da evolução jurídico-social, que a Suprema Corte declarasse:

a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição de união estável entre homem e mulher; b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros das uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.

 Em 2011, o Supremo Tribunal Federal proferiu um julgado histórico, no qual reconheceu, de forma unânime, a união estável entre pessoas de mesmo sexo. Como o Ministro Relator Ayres Brito definiu a demanda:

Com o que este Plenário terá bem mais abrangentes possibilidades de, pela primeira vez no curso de sua longa história, apreciar o mérito dessa tão recorrente quanto intrinsecamente relevante controvérsia em torno da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os seus consectários jurídicos. Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração.

 Todos os votos dos Ministros exararam entendimentos sobre preconceito, dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, decidindo ao final pela possibilidade jurídica (talvez até mesmo um dever do Estado) de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Vejamos a fundamentação.

O Ministro Ayres Brito fez uma análise profunda do caso, claramente em busca de uma interpretação histórica, lógica e teleológica da Constituição Federal. Ele começa falando de sexo como conformação anátomo-fisiológica que difere homem de mulher, trazendo esse sentido no art. 3º, inciso IV, da CF/1988. Nas demais vezes que o verbete é mencionado também possui o mesmo significado (inciso XLVIII do art. 5º; inciso XXX do art. 7º; e inciso II do § 7º do art. 201). Não obstante a diferenciação seja natural, a mesma não pode prestar-se à desigualação jurídica, salvo previsão legal. Afora as funções fisiológicas, o sexo (ou órgão genital) das pessoas pode ser direcionado a três funções congênitas e específicas: estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica. O atendimento a essas necessidades humanas depende de instintos e sentimentos. Evocando a norma geral negativa de Kelsen (tudo o que não está juridicamente proibido está juridicamente permitido), ressalta que a Constituição Federal (ou as normas em geral) não definiu de forma expressa de que maneira as pessoas podem e/ou devem fazer uso de seu aparelho sexual, entregando a escolha ao livre arbítrio, instinto e subjetividade, estando aí inclusos a “preferência” e “orientação”. Dessa forma, fica claro que a norma jurídica, em nenhum momento, veda que alguém exerça sua sexualidade do jeito que melhor lhe aprouver (salvo, é claro, os comportamentos tipificados como crime e demais condutas socialmente inaceitáveis, como a pedofilia e o incesto). Portanto, o ser humano é livre para, caso deseje, ser homossexual, heterossexual ou assexuado; trata-se de um direito subjetivo, da autonomia e autodeterminação individuais. Isso é mais do que natural, considerando que a Lei Maior consagra o constitucionalismo fraternal, que visa à integração das pessoas do ponto de vista civil-moral, com plena aceitação do pluralismo sócio-político-cultural e respeito aos contrários. Essa, ademais, é a tendência que demonstra o Direito Comparado (por exemplo, Resolução do Parlamento Europeu, de 08 de fevereiro de 1994, e Resolução sobre o Respeito pelos Direitos do Homem na União Européia, de 16 de março de 2000) e as normas internacionais. Também já há leis infraconstitucionais no Brasil que vedam textualmente o preconceito em face da orientação sexual (Constituições Estaduais do Mato Grosso e Sergipe).

Essa proteção é imprescindível e coaduna-se aos preceitos maiores da Constituição Federal, como dignidade da pessoa humana e direitos de personalidade (intimidade, identidade, privacidade, liberdade). Ora, a sexualidade das pessoas é indissociável das mesmas, “pelo que proibir a discriminação em razão do sexo (como faz o inciso III do art. 1º da nossa Constituição Republicana) é proteger o homem e a mulher como um todo psicossomático e espiritual que abarca a dimensão sexual de cada qual deles” (Min. Ayres Brito – BRASIL, 2011, p. 29). Nessa esteira, completa o Ministro que tais direitos são líquidos e certos, possuem imperatividade de cláusulas pétreas e aplicabilidade imediata por advirem de normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5º, §1º).

Vencida essa questão, o Ministro passa a tratar de família, que é o fulcro inicial das APDF's propostas ao Pretório Excelso: afinal, os casais homoafetivos constituem uma família? A Constituição, de fato, sonega aos mesmos os direitos conferidos a casais heteroafetivos? A questão envolve não apenas técnica jurídica, mas sentimentos e significação sócio-cultural. Seriam os casais homoafetivos capazes de união “com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais”? (Min. Ayres Brito – BRASIL, 2011, p. 23)

“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, reza o artigo 226, caput, da CF/1988. O Ministro esclarece que a proteção não se refere a um tipo de família ou outro, mas à acepção cultural do termo, referindo-se à entidade ou grupo familiar unido por laços afetivos e espirituais (não necessariamente biológicos). Vale dizer que, embora a CF mencione apenas dois tipos (parental e monoparental), há diversas espécies de família, o que deixa claro que a menção do legislador não foi, de maneira nenhuma, numerus clausus.

A sagração dessa instituição se explica por ser ali o primeiro lócus de concreção dos direitos fundamentais, da apreensão da cidadania, da dignidade, dos valores sociais do trabalho, da própria humanidade em si. Ademais, nenhum dispositivo condiciona essa vocação jurídica diferenciada da família à realização de casamento ou constituição de casal heteroafetivo: “vale dizer, em todos esses preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica” (Min. Ayres Brito – BRASIL, 2011, p. 38). Estão ali abarcados na norma todos os tipos de família, a da mãe viúva, a dos tios e sobrinhos, a dos avós e netos, a que conta apenas com irmãos, a de casais hetero ou homoafetivos, entre tantas outras formas que hoje o “Direito das Famílias” sói trazer à voga. A interpretação dessa instituição não pode ser reducionista, pois o contrário significaria dizer que a Lei Maior incorre em disposições preconceituosas e homofóbicas, excluindo um tipo específico de família: a formada por um casal de dois adultos do mesmo sexo.

Extensivamente, o que define uma união estável, no seio de uma família, não é o sexo do casal, mas o caráter afetivo, íntimo, prolongado, carinhoso, estável e confiável da relação. O Ministro faz uma análise que muito interessa aos defensores da leitura literal da norma, considerando que a CF traz textualmente que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (art. 226, §3º; e também art. 183, § 1º); ele nos convida para uma (bela) interpretação histórico-teleológica da norma. Conforme explica, a intenção do legislador ao mencionar em alguns dispositivos a dicotomia homem/mulher em relação ao casal, partindo da análise da conjuntura histórico-axiológica da Carta Maior, não foi determinar que apenas um tipo de família receberia proteção do Estado, ou que a única família, união estável ou casamento aceitáveis seriam os constituídos por um homem e uma mulher. Não se trata de uma norma positiva, no sentido de proibir a constituição de união homoafetiva, mas de dispositivo construído em outro contexto: o da afirmação da participação da mulher na sociedade, da equiparação jurídica de homem e mulher, pós-Estatuto da Mulher Casada, pós-Lei do Divórcio e pós-revolução sexual de 1960. Talvez não seja preciso lembrar que, durante muito tempo, a mulher foi tida como relativamente incapaz e precisava da autorização do seu marido para praticamente qualquer coisa![1] Ela era mera ajudante do marido, o “chefe da sociedade conjugal”. Ao igualar homens e mulheres o legislador visava deixar claro que aquele período estava absolutamente vencido, vigorando agora a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal. A intenção era romper com esse modelo preconceituoso, que subjugava a mulher; impensável cogitar que a intenção era impedir que casais homoafetivos pudessem ter seus direitos assegurados. Não obstante a homossexualidade exista desde os primórdios e seja um fato social há muito tempo, na época da promulgação da Carta Maior essa não era uma preocupação patente da sociedade e muito menos do legislador. A intenção, então, foi a de

não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós. (...)

É uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade (Min. Ayres Brito – BRASIL, 2011, p. 45-46).

É necessário reconhecer que essa é uma bandeira atual, distante do jurista de décadas atrás; portanto, não seria possível haver menção expressa na norma, a não ser por emenda do legislador derivado; e essa previsão não é imprescindível, pois o direito não é feito apenas da lei escrita, mas de princípios, jurisprudência e leitura da sociedade (fato x valor x norma), como o STF provou. É necessário ler o contexto anímico da CF e não consagrar a liberdade homoafetiva pela metade, “não separar por um parágrafo o que o afeto uniu” (Min. Ayres Brito – BRASIL, 2011, p. 37).

Os outros votos também acompanharam o raciocínio do Relator, ressaltando que a homossexualidade é um fato social que não pode ser ignorado pelo direito, de modo que essas pessoas têm constituído relações afetivas duradouras (segundo o IBGE há mais de 60.000 uniões homoafetivas declaradas no Brasil, além daquelas não afirmadas por receio do preconceito), que necessitam da guarida do Estado (ubis societas, ibi jus: onde está a sociedade, aí está o direito). Para o Ministro Luiz Fux, “não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe, no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas, haja vista, sobretudo, a reserva de lei instituída pelo art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988 para a vedação de quaisquer condutas aos indivíduos.” (BRASIL, 2011, p. 60). Não poderia o Pretório Excelso deixar de promover os direitos de minorias, nem permitir que se fizesse uma leitura do conceito de família que permitisse o amesquinhamento de prerrogativas fundamentais. É pretensão legítima de que suas relações familiares mereçam o tratamento que o ordenamento jurídico confere aos atos da vida civil praticados de boa-fé, voluntariamente e sem qualquer potencial de causar dano às partes envolvidas ou a terceiros. Portanto, entende o Ministro que chegou o momento de compatibilizar a leitura e aplicação da Carta Maior ao momento histórico atual da sociedade, mormente porque “a interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm)”. Ou seja, o aplicador da lei deve estar atento à legislação escrita, mas mudanças fáticas podem/ devem provocar mudanças na interpretação, de forma a atender aos anseios do cidadão e da comunidade.

O Ministro Joaquim Barbosa também teve uma fala interessante:

Note-se que, segundo a vastíssima bibliografia existente sobre o enquadramento jurídico-constitucional das reivindicações das pessoas de orientação homossexual, sobretudo em língua inglesa, houve uma significativa mudança de paradigma ao longo das últimas décadas no tratamento do tema e na natureza das respectivas reivindicações. Com efeito, se é certo que num primeiro momento bastava aos reivindicantes que a sociedade lhes demonstrasse um certo grau de tolerância, hoje o discurso mudou e o que se busca é o reconhecimento jurídico das respectivas relações, de modo que o ordenamento jurídico outorgue às relações homoafetivas o mesmo reconhecimento que oferece às relações heteroafetivas.

Portanto, o STF decidiu que a união homoafetiva é equivalente à heteroafetiva, gozando dos mesmos benefícios e ônus. Posteriormente, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou a Resolução n° 175, tornando obrigatória a celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

Obviamente a decisão, não obstante o tom de definitividade, ganhou muitas críticas de instituições religiosas, organizações sociais e mesmo de juristas. É natural. A homossexualidade (ou homoafetividade) é um tabu milenar. No entanto, constitui-se atualmente como um fato social, presente de forma hodierna, exigindo uma postura, uma definição do Estado, que não pode simplesmente ignorar o que ocorre aos seus cidadãos, especialmente sob risco de violação de direitos fundamentais.

Vejamos duas dessas críticas à decisão:

A decisão do STF, de ser comemorada e criticada, é apenas mais um round na luta irracional que se desenvolve entre religiosos e o movimento gay. O STF acertou na decisão, mas errou em sua abordagem. Ao invés de interpretar a Constituição, ousou reescrevê-la sem legitimidade para tanto. Mas, que razões levaram a Corte Suprema a isso? A imperdoável incapacidade dos contendores de agir de forma tolerante, democrática e respeitosa. A terrível intenção, de ambos os lados, de forçar o outro a seguir seus postulados, em atentado contra a liberdade de escolha, opinião e crença. (...)

O STF não se limitou a garantir a extensão de direitos, mas quis reescrever a Constituição e modificar conceitos, invadindo atribuições do Poder Legislativo. Conceder aos casais homossexuais direitos análogos aos decorrentes da união estável é uma coisa, mas outra coisa é mudar conceito de termos consolidados, bem como inserir palavras na Constituição, o que pode parecer um detalhe aos olhos destreinados, mas é extremamente grave e sério em face do respeito à nossa Carta Magna. “Casamento” e “união civil” não são mera questão de semântica, mas de princípios, Nem por boas razões o STF pode ignorar os princípios da maioria da população e inovar sem respaldo constitucional. (DOUGLAS, 2011, p. 01).

Data venia, academicamente, o STF foi além da Lei Maior, inovou, ampliou, legislou, colonizando o espaço público da via democrática e trazendo gravíssimo mal-estar institucional, social, político e jurídico, pois a presente questão se refere a regras de princípios-mor.

Não se pode dar valor superlativo à jurisprudência do que ao texto constitucional, que é taxativo direto e simples (...). (MAIA NETO, 2013, p. 16).

Ressaltando o grande respeito aos juristas com posicionamentos contrários a essa decisão, ao invocar invasão das competências do Poder Legislativo e ativismo judicial exacerbado, queremos discordar dos mesmos para crer que o STF proferiu uma decisão histórica muito importante, que se coaduna axiologicamente aos preceitos defendidos nas normas de Direitos Humanos, inclusive em âmbito internacional. Não cremos que tenha havido excessos ou solipsismo dos julgadores, pois o Pretório Excelso foi devidamente instado pela sociedade a responder a uma questão e fê-lo dentro de suas competências. Isso foi, sobretudo, importante diante da morosidade e comodismo do Legislativo em fornecer aos cidadãos as respostas de que careciam.

Vejamos, brevemente, as três questões jurídicas principais que justificam a constitucionalidade e fundamentam a decisão do Pretório Excelso.


3. Três questões jurídicas pertinentes.

3.1. Necessidade de aplicação de variados tipos de interpretação constitucional.

O ser humano criou diversos instrumentos de controle social de forma a obter um todo harmônico, um equilíbrio através de regras comuns aos vários entes de determinado grupo social. Os mais conhecidos são a religião, a moral e o Direito, este último o instrumento que atinge, de uma forma ou de outra, todos os indivíduos e que possui reconhecida força cogente. Ou como define Dworkin (2007, p. 15), “(...) o direito é a nossa instituição social mais estruturada e reveladora”.

Não obstante o Direito pretenda regular as relações jurídicas que ocorrem todos os dias e seja, em realidade, um excelente instrumento de controle social, é impossível regular textualmente cada situação fática, criar um dispositivo para cada relação e seus infinitos desdobramentos. A norma, portanto, muitas vezes é abstrata e necessita de uma leitura atenta para ser adaptada à vida cotidiana. Outro ponto importante é que, não obstante novos comportamentos, regras sociais e relações sejam criados todos os dias, enquanto outros são extintos, é factualmente impossível à lei escrita acompanhar esse movimento tão dinâmico e ser modificada à mesma velocidade. Quando a CF/1988 foi promulgada, por exemplo, nosso legislador nem sequer poderia sonhar com uma sociedade quase totalmente conectada por celulares, computadores e redes sociais; esse, portanto, é um fato que não está previsto na Carta Maior, mas não deixa obviamente de ter significação e proteção jurídica em face disso.

Assim, a aplicação da lei não se resume (nem poderia) à leitura pura, simples e literal do texto normativo. O Direito não pode ser fixo, imutável, e sim flexível e grande observador dos anelos da sociedade; é movido a discussões, revisões e deve, continuamente, tentar adaptar-se ao que o Estado e os cidadãos necessitam, sob pena de tornar-se inócuo. Veja-se que não afirmamos que o Direito deve ser desnaturado, perder sua essência ou que os juízes podem livremente fazer releituras da norma. Por isso a tarefa de aplicá-lo é tão difícil: é necessário ler a essência e respeitar as bases principiológicas do ordenamento para, após uma análise acurada da sociedade, tentar descobrir, dentro da própria norma, as respostas para os anseios dos cidadãos. Como salienta Dworkin (2007, p. 17):

Ao contrário de muitos outros fenômenos sociais, a prática do direito é argumentativa. Todos os envolvidos nessa prática compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste, em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposições. Os povos que dispõem de um direito criam e discutem reivindicações sobre o que o direito permite ou proíbe, as quais seriam impossíveis – porque sem sentido – sem o direito, e boa parte daquilo que seu direito revela sobre eles só pode ser descoberta mediante a observação de como eles fundamentam e defendem essas reivindicações.

Decerto a linha é tênue e os operadores devem estar atentos para evitar desnaturação da norma, mas nada muda o fato de que a base do Direito é a interpretação (da norma e da sociedade). A grande prova é o julgado que estudamos no momento. A hermenêutica – arte de interpretar o sentido das palavras – depende do contexto histórico, do sistema de normas em que aquele dispositivo está inserido, do papel e possibilidades de atuação do sujeito da interpretação, da pesquisa axiológica da vontade do legislador e da sociedade, etc. A intenção deve ser sempre, não importa o método, a busca da solução mais justa e correta para o caso, mas sem desvirtuar-se do sentido e contexto original da norma. Conforme ensina Barroso (2009, p. 109-110), “toda norma jurídica, e, ipso facto, toda norma constitucional precisa ser interpretada. (...) O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos significados das normas que integram a Constituição formal e material do Estado”.

Esse processo de leitura e releitura da norma não é danoso ao sistema normativo, pelo contrário: é necessário e salutar à sociedade e à democracia. A análise periódica do ordenamento, observando suas novas “nuances” (sem ruptura com princípios, com a essência da lei ou com a ordem social posta), auxilia o Direito a cumprir de forma adequada seu papel como instituição social. Toda disposição presente em um texto normativo, especialmente uma Constituição, obedeceu a uma série de preceitos ideológicos, sociológicos, econômicos, políticos de um dado período, preceitos que são, por definição, altamente dinâmicos e mutáveis. A personalidade “cidadã” da CF/1988, por exemplo, tem um porquê muito claro: foi elaborada após um longo período de ditadura e num momento de ampla influência de Constituições Sociais. Naquele momento, defender cabalmente os Direitos Humanos era a ordem e a melhor forma de romper com o passado. Mas hoje, 25 anos depois, há quem questione a constitucionalização de alguns direitos tidos como Fundamentais, como os Sociais, devido aos custos que representam para o Estado[2]. Embora obviamente não concordemos com esse posicionamento (bem como o STF), trata-se de um exemplo de que o entendimento dos juristas, do legislador, da sociedade e as vontades e interesses políticos se transformam com o tempo. Nesse âmbito, o Judiciário demonstra sua grande importância, amoldando a norma à conjuntura social, determinando, com fulcro no ordenamento e na análise da sociedade, qual é a melhor forma de aplicar a lei e garantir sua eficácia máxima.

Nesse sentido, a Hermenêutica demonstra que há variadas formas de interpretar um texto normativo, desde a mais simples (leitura semântica) até métodos modernos, que buscam aperfeiçoar o processo interpretativo. No momento de fazê-lo, é imprescindível compreender que os métodos não se excluem e, principalmente, devem ser utilizados em conjunto. Ademais, no que concerne especificamente à Constituição, a interpretação deve ser mais cuidadosa e acurada. Trata-se de norma peculiar, fonte de si mesma e fonte de sustentação e validade de todas as outras normas jurídicas. Seus princípios e regras se condicionam mutuamente e a mesma define valores políticos, Direitos Fundamentais e as regras da estrutura social e do poder no país. Dessa forma, considerando que seus dispositivos emanam teor ideológico, social, humano e político, a Constituição deve estar intrinsecamente conectada à realidade social, sob pena de tornar-se letra morta. Portanto, reconhecer a realidade e os novos institutos sociais que se apresentam é necessário e o Judiciário deve fazê-lo, utilizando-se, para isso, da interpretação.

No julgado em análise, reconhecem-se vários métodos interpretativos. O gramatical, que é a leitura simples e literal do texto (“ao pé da letra”), é observado em várias passagens. O mesmo é extremamente importante para um ponto de partida, mas não pode ser utilizado de forma isolada, sob pena de cometimento de injustiças. E um exemplo é justamente dizer que a CF/1988 permite apenas a união entre homem e mulher “porque assim está escrito na lei”. Dispositivos que envolvam Direitos Fundamentais, regras sociais mutáveis e dinamismo social não podem ficar presos à semântica, como já afirmamos. Por isso, e acertadamente, os Ministros recorreram a outros métodos interpretativos mais adequados à questão, como o sistemático (considerando o ordenamento como um todo), o histórico (observando o momento histórico da promulgação da Constituição, especialmente no que concerne à valorização feminina) e o teleológico (buscando, enfim, demonstrar a finalidade da norma, através de sua essência e espírito).

Outros métodos interpretativos modernos também podem ser identificados no julgado, como o integrativo, o concretista e o progressivo. Em poucas palavras, o método integrativo, construído principalmente pelo jurista alemão Rudolf Smend, busca alcançar a essência e verdadeiro sentido da norma através de sua integração com os valores da sociedade e com a concretude da existência. O método concretista, de Häberle, valoriza muito a atuação dos operadores do Direito, como os juízes, sobre a norma; como a Constituição é uma mediadora entre a sociedade e o Estado, o papel do intérprete é fundamental face à mutabilidade social, que faz com que o processo interpretativo seja infinito. Finalmente, a interpretação progressiva ou evolutiva, como ensina Barroso (2009, p. 151),

é uma forma de adaptar as normas, inclusive constitucionais, à evolução da sociedade e dos conceitos, resguardando bens da vida, direitos humanos, direitos sociais e a dignidade da pessoa humana e se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significados variados ao longo do tempo.

Obviamente a interpretação progressiva deve ter limites para não implicar em reforma constitucional, devendo ater-se ao reconhecimento de direitos intrinsecamente presentes no texto normativo.

3.2. Judicialização, ativismo e solipsismo: o lugar do Judiciário no Brasil.

A primeira questão jurídica abordada – a interpretação normativa – conduz à segunda: excederam-se os Ministros do STF em sua interpretação? Foram ativistas em excesso? Houve solipsismo? Usurparam um poder que pertenceria apenas ao Legislativo? Cremos que não, como já demonstrado, mas apenas falar dos métodos interpretativos não é suficiente. É necessário compreender também o momento histórico em que a produção legislativa do Brasil se encontra e que envolve basicamente três situações: influência da religião na produção normativa, morosidade do Poder Legislativo e judicialização.

Quanto ao primeiro aspecto, o que se pode verificar é que no Brasil o Estado Laico existe por direito, mas inexiste de fato. Está prevista na Constituição a separação total entre Estado e religião, sem que um possa influenciar nos preceitos do outro; os dois devem coexistir, respeitar-se, mas sem interferências. Mas não é isso que ocorre. Vemos, sim, preceitos eclesiásticos exercendo influência sobre diversas situações normativas como aborto, casamento homoafetivo e até mesmo o divórcio, que tanto demorou a ter sua celeridade (e mesmo possibilidade) regulamentada. Ferrajoli (2008, p. 132-133) é contundente ao tratar do assunto:

(…) esos valores – los valores liberales de la laicidad del derecho y de las instituciones políticas, que provienen de la tradición ilustrada – nunca han sido del todo aceptados por nuestra cultura política y no han inundado realmente (…) la política y el derecho. Por el contrario, en todo el Occidente democrático está en curso una especie de regresión en el proceso de secularización que se manifiesta en el resurgimiento de fenómenos como los fundamentalismos religiosos, el miedo al diferente, la intolerancia y los conflictos étnicos vinculados con nuevas antropologías de la desigualdad. Fenómenos que contradicen los principios de la neutralidad ideológica de las instituciones y de la dignidad de las personas que constituyen (…) el corolario de la laicidad. Pensemos en el papel legitimador que tiene la religión en la política de agresión estadounidense presentada como una lucha entre el Bien y el Mal, y en la configuración de la guerra contra el terrorismo como choque de civilizaciones. Pero también podemos pensar en la ausencia que existe (…) de una cultura política laica, capaz de rechazar las pretensiones antimodernas e iliberales de la Iglesia Católica que intenta moldear el derecho y las instituciones para ajustarlas a sus propias concepciones morales – desde la campaña contra el aborto y la procreación asistida hasta el reconocimiento de las parejas de hecho; desde la imposición del sufrimiento terapéutico a los enfermos terminales: opciones y concepciones que se presentan como “verdaderas”, como verdades reveladas que deben traducirse en normas jurídicas.

Cabe ressaltar que, em nenhum momento, estamos criticando as religiões. Seguir uma religião (ou não) é um Direito Fundamental atinente à dignidade e autodeterminação do indivíduo, devendo ser respeitado. É algo muito íntimo, que cabe à pessoa decidir. No entanto, é algo que contraria imensamente a conformação constitucional impor preceitos religiosos ou permitir que os mesmos influenciem a construção do ordenamento. Isso tem sido recorrente em nosso parlamento e não seria diferente com o casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de um tabu bíblico, mas que não pode transcender os limites da Bíblia e da igreja para emperrar a evolução normativa; isso não deveria impedir que tal fato jurídico fosse regulamentado da forma correta, pois o Poder Legislativo deve ser objetivo ao observar as necessidades normativas da sociedade. Na falta de proteção legal para essas relações jurídicas, foi imperiosa a atuação do STF, quando convocado.

 O segundo ponto, relacionado ao primeiro, é a patente morosidade de nossos legisladores em regulamentar diversas situações que aguardam resposta normativa. Há vinte e cinco anos os servidores públicos esperam a regulamentação do direito de greve. Há treze anos tramita a PEC n° 22/2000, que busca mudar o modelo de orçamento do Brasil (de autorizativo para impositivo, visando a um maior controle dos gastos públicos). O novo Código Civil tramitou por mais de vinte anos até ser concluído e sancionado, o que fez com que algumas disposições já estivessem ultrapassadas no próprio ano de seu nascimento. Não buscamos discutir o porquê da morosidade; o que importa é que ela é um fato. No entanto, a sociedade precisa de respostas novas todos os dias; as pessoas precisam de proteção aos bens que lhes são caros. Não obstante caiba ao Poder Legislativo definir e criar as normas, o sistema de freios e contrapesos permite (e até exige) a intervenção de outros poderes (no caso o Judiciário) quando aquele que deveria atender o cidadão estiver falhando. A união estável/ casamento homossexual é um fato jurídico posto e a falta de regulamentação e reconhecimento estava causando transtornos e mesmo tolhendo o Direito a uma vida conjugal oficial dessas pessoas. Mais uma vez justifica-se a atuação do STF.

Por último, tem-se a influência da judicialização no caso. Segundo Barroso (s.d., p. 03 e 04), tal fenômeno, hoje muito recorrente no Brasil, surgiu por três motivos principais: a) a redemocratização, que fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário; b) a constitucionalização, “que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária”; c) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que permite que, teoricamente, “qualquer questão política ou moralmente relevante seja levada ao STF”. De fato, é possível encontrar ações judiciais em tramitação relativas às mais diferentes áreas: saúde, educação, política. O fato da CF/1988 assegurar o Direito de Acesso ao Judiciário também aproxima o cidadão do sistema. Se por um lado isso é bom, porque, em tese, em face de qualquer direito violado poderá ser buscada proteção judicial, por outro aumenta vertiginosamente o número de processos, sobrecarregando os magistrados, e abre brechas para questionar os limites de sua atuação, inclusive com acusações de ativismo e solipsismo.

O ativismo judicial refere-se ao intérprete proativo, que busca atuar no sentido de uma sociedade melhor e mais justa; procura não ficar preso apenas a fórmulas prontas, mas tenta agir para que o Direito consiga acompanhar a sociedade adequadamente. No entanto, há uma linha tênue entre a conotação positiva e a negativa do ativismo, que indica a adoção de determinadas decisões por caráter volitivo. Seria, em muitas situações, uma medida antidemocrática, com usurpação de atribuições de outros Poderes pelo Judiciário. Já o solipsismo judicial é um pouco mais grave: ocorre quanto o juiz atua com exagerada discricionariedade, “criatividade”, com perigoso desligamento da norma, deixando que sua vontade seja o maior embasamento da decisão. Segundo Andrade (2013, p. 01), isso ocorreria ao conferir-se

(…) ao juiz o poder de escolha para aplicar a vontade da lei no caso concreto, sendo que, a partir de uma visão intuitiva, subjetivista e até mesmo ideológica, este seria capaz de promover a justiça tão esperada pelo jurisdicionado. Nesta ordem, permitir-se-ia ao juiz solucionar o caso concreto ainda que sua decisão fosse lastreada por escopos metajurídicos, vale dizer, facultando-se ao julgador criar determinações jurídicas sem conteúdo legislativo propriamente dito em seu ato decisório final.

A referida discricionariedade judicial estaria, pois, jungida à criatividade (leia-se: subjetividade) do aplicador do Direito no caso concreto, criando-se um círculo vicioso e infindável do solipsismo.

Sabe-se que tanto o ativismo como o solipsismo podem ser nocivos ao processo democrático e que ocorrem no Brasil em algumas situações. No entanto, conforme já ponderado anteriormente e demonstrado através de análise do ordenamento e do julgado, isso não ocorreu na decisão que ora debatemos. Não houve discricionariedade do STF ou simples imposição da vontade dos Ministros; a decisão foi embasada na Constituição e goza de legalidade.

3.3. Defesa da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação.

Conforme já ponderamos, o Direito precisa ser dinâmico, de forma a acompanhar e atender a sociedade. Isso não seria diferente com os Direitos Fundamentais. É inegável a evolução nesse aspecto. Há alguns séculos, algumas pessoas sequer tinham direito à vida ou à integridade; há pouco mais de cem anos a escravidão ainda era regulamentada no Brasil. Mas no século XX experimentamos um salto na proteção dos direitos inerentes à condição de ser humano e hoje contamos com um amplo arcabouço de prerrogativas.

Nessa esteira, já há algum tempo (e agora com um pouco mais de força), tem se propagado no mundo um movimento que prega a igualdade relativa à orientação sexual das pessoas. É uma luta gradativa e de várias frentes, como foi a luta para implementar cada um dos direitos humanos. Primeiro buscou-se a simples possibilidade de exercer a sexualidade sem preconceitos por parte de outras pessoas; posteriormente vieram os questionamentos pela igualdade de direitos entre casais hetero e homossexuais; buscou-se trocar o termo “homossexual” pelo “homoafetivo” (cunhado pela Desembargadora Maria Berenice Dias, grande nome no estudo do Direito das Famílias), preterindo o sufixo “ismo”, que vem do latim e denota “doença”; observou-se o advento de normas em outros países que reconheceram a união entre pessoas do mesmo sexo (como na Argentina); questionou-se junto ao STF a possibilidade de validade desse casamento também no Brasil; daqui em diante a sociedade questionará cada vez mais a validade de outras situações, como a adoção por casais homoafetivos.

Não é um momento juridicamente e socialmente simples para nosso país ou para qualquer outro. Mas é um movimento natural; antes da efetivação e positivação de outros direitos como a liberdade, a igualdade material ou a igualdade racial também passamos por momentos de dúvidas e conflitos. No entanto, é necessário compreender que a Constituição protege todos os tipos de famílias e garante a todo cidadão o direito de oficializar sua união conjugal. A fase de questionar isso já passou.

Mais importante ainda: temos a dignidade da pessoa humana como meta-princípio do ordenamento, garantindo o direito ao livre desenvolvimento e exercício da sexualidade do ser humano. É o “princípio normativo fundamental que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exigindo e pressupondo o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões”, conforme leciona Silva (apud Sarlet, 2004, p. 49). Como unidade axiológica de nosso ordenamento, a dignidade é, como ensina Sarlet (2004, p. 87)

a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamentos discriminatórios e arbitrários, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.

Dessa forma, além dos já consagrados direito à vida, integridade, intimidade e honra, entre outros, deve ser protegido também o exercício da sexualidade do ser humano e seus consectários. Cogitar que o direito a constituir uma união estável ou casamento homoafetivo não seja válido é questionar todo ordenamento jurídico brasileiro e pôr em xeque todas as demais conquistas relativas aos Direitos Fundamentais, pois onde um ponto pode ser relativizado abrem-se brechas para questionamento de outros.


4. Considerações finais          

Bobbio já dizia que passou o momento de justificar os Direitos Fundamentais. Não é mais necessário dizer porque uma pessoa precisa que determinada parte de sua personalidade e vida seja protegida. Agora é apenas momento de proteger. Isso se aplica perfeitamente aos direitos das pessoas homossexuais. A homossexualidade, sempre envolta em tabus e discriminações, busca apenas ser reconhecida como mais uma condição humana, de modo que as pessoas que assim desejam exercer sua sexualidade não sejam alvo de preconceito ou tenham direitos tolhidos em função disso. O STF, acertadamente, reconheceu como válidas as uniões estáveis homoafetivas, conferindo a esses casais o direito de oficializar seu relacionamento.

Na construção ou interpretação de uma norma, o operador do Direito e o legislador devem ser objetivos. Obviamente é impossível ser totalmente imparcial, pois cada um de nós tem sentimentos e ideais indissociáveis do ser. No entanto, não se pode permitir que crenças, preconceitos ou quaisquer ideias influenciem negativamente a concreção dos direitos de outras pessoas, especialmente quando protegidos pela Constituição.

Entendemos assim que o desenvolvimento pleno do ser humano é um direito, com todas as nuances intrínsecas, inclusive o sexo, que faz parte da natureza do homem. Esse foi o entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADI 4277. 


5. Referências

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______. Código Civil de 1916.

______. Constituição Federal de 1988.

ANDRADE, Francisco Rabelo Dourado de. Protagonismo judicial – como discricionariedade não combina com democracia. Revista Jurídica Consulex, n. 397. Disponível em http://www.consulex.com.br/co/default.asp?op=cor&id=17424. 01 ago. 2013. Acesso em 10 dez,. 2013.

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______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. S.d. S.l. Disponível em http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso em 10 dez. 2013.

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SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, n. 10, 11 set. 2007. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 14 nov. 2010.

______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. rev. atual. e ampl. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2004.


Notas

[1] Código Civil de 1916, Art. 242 - A mulher não pode, sem o consentimento do marido:

I. Praticar atos que este não poderia sem o consentimento da mulher

II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis do seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens.

III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem.

IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.

V. Aceitar tutela, curatela ou outro múnus públicos.

VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251.

VII. Exercer profissão.

VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal.

IX. Aceitar mandato.

[2] Como critica Sarlet (2007, p. 02): “Vale ressaltar, nesse contexto, que praticamente ninguém questionou, ao menos desde 1787, isto é, desde que surgiram as primeiras Constituições escritas, na acepção contemporânea do termo, sobre o fato de a propriedade (que chegou a ser tida inclusive como direito natural) ocupar um lugar de destaque na Constituição. O mesmo se aplica à liberdade de ir e vir e ao instituto processual do habeas corpus, assim como às liberdades de associação, de reunião e à proteção da intimidade, da vida privada, do sigilo das comunicações e a privacidade do domicílio. Cuida-se, em todos os casos, de valores e bens jurídicos contemplados nas Constituições (...) há quase dois séculos.

Pois bem, bastou fossem contemplados nas Constituições os assim denominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentais que dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais e humanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condição de direitos fundamentais destas posições jurídicas”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Liliane Coelho da. Reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas/homossexuais: os três pilares principais do julgado do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3817, 13 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26131. Acesso em: 20 abr. 2024.