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Feminicídio: o outro lado de uma mesma moeda

Feminicídio: o outro lado de uma mesma moeda

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A inserção do feminicídio gera polêmica na comunidade jurídica. A cultura que banaliza a morte de mulheres por questões de gênero corre em nossas veias. É preciso ter percepção de que a violência precisa ser combatida e severamente punida.

Exatos dois dias após o Dia Internacional da Mulher, em 10 de março de 2015, entra em vigor o dispositivo que regula o feminicídio, Lei nº. 13.104. O tipo consiste no assassinato de mulher por razões do sexo feminino, ou seja, a morte de pelo simples fatos de ter nascido mulher.

Prevê a norma que o crime é hediondo, uma subespécie de homicídio qualificado, que em situações específicas pode funcionar como causa de aumento de pena.

A inserção do feminicídio gera polêmica na comunidade jurídica. O estranhamento causado pelo tipo protetivo é similar ao frisson com a edição da Lei nº. 11.340 de 2006, Lei Maria da Penha.

Analisando detidamente os fatos, a rejeição imediata às leis de gênero são um dos tentáculos do forte traço de uma cultura machista e patriarcal arraigada e solidificada por séculos na história brasileira. Tais características podem tornar invisível e comum uma violência real, entretanto não podem negar as estatísticas desta violência. Estudos revelam que no Brasil a cada 1 hora e 1/2 uma mulher morre de forma violenta. Ocorre que cerca de 40% desses assassinatos foram cometidos por um agressor que mantinha ou manteve alguma relação íntima de afeto com a vítima[1].

São casos de violência muitas vezes silenciosos, “protegidos” pelas paredes dos lares, no âmbito das relações íntimas de afeto ou de menosprezo ou discriminação à condição da mulher. Assassinatos praticados após torturas, espancamentos, mutilações, atos com requintes de crueldade ou perpetrados por longos períodos de tempo e que tem em seu ponto máximo a morte.

Os números desses homicídios são alarmantes. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2001 e 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios no Brasil.

A discriminação de gênero tem origem histórica na dominação do homem sobre a mulher e seus efeitos são facilmente perceptíveis em diversas áreas. Nas relações de emprego, por exemplo, a empregabilidade do homem frente à da mulher são diferentes e nem sempre esse desequilíbrio é justificável por antagonismos biológicos.

Entretanto, em nenhum outro ramo a realidade é tão chocante quanto no direito penal. Fato que torna plausível a punição mais severa endereçada pelo legislador ao feminicídio frente à necessidade de controle dos altos índices das mortes.

Estudos comprovam que o Brasil é o sétimo país no ranking mundial no assassinato de mulheres. Existe uma política internacional de ações para solucionar o problema da violência de gênero. Neste contexto, 13 países latino-americanos adotaram leis específicas para tratar tais casos[2]. Portanto, não é uma novidade mundial tipificar o feminicídio, mas uma tendência.

Desde 1981 inúmeras medidas foram adotadas para coibir o tratamento que subjuga e discrimina a mulher: O Brasil assinou tratados internacionais[3] e consolidou a proteção com a edição da Lei nº. 11.340 de 2006 – Lei Maria da Penha.

Apesar dos esforços para acautelar a matéria e tornar visíveis os desvios sociais de gênero, descrever os casos de violência e adotar medidas protetivas específicas não fora suficiente para prevenir, controlar e reduzir o altíssimo índice da violência de forma significativa. Estatísticas levantadas pelo Ipea entre 2001 e 2006 revelam que a cada 100 mil mulheres cerca de 5,28 foram vítimas de feminicídio. No período posterior à Lei Maria da Penha (ente 2007 e 2011), em média 5,82 mulheres a cada 100 mil foram assassinadas[4].

As perseguições e agressões físicas, psicológicas, verbais, morais perpetradas, somadas ao contexto de omissão Estatal, juntamente com o comodismo da sociedade culturalmente acostumada à violência de gênero, aumenta a sensação de impunidade dos criminosos e eclodem nas inúmeras mortes de filhas, cônjuges, companheiras, namoradas, mães, irmãs etc.

O círculo vicioso da violência é facilmente constatado na observância da notoriedade sensacionalista das páginas policiais dos jornais. Por outro lado, as cifras negras dessas mortes praticamente inserem a violência contra a mulher no âmbito dos costumes[5]. Nas áreas em que a sociedade não se auto-regula e outras formas para barrar a violação de direitos são insuficientes, a anomia certamente é o caminho menos confiável.

Diante desse quadro de pouca efetividade de políticas púbicas educacionais e da norma preventiva na modificação dos índices de óbito, surge a necessidade de intervenção do direito penal como medida de ultima ratio para frear o encrudecimento da violência. Não basta o delito ser notado e discutido, essa fórmula se fez insuficiente, mas também combatido e severamente punido, como crime hediondo que é em sua essência. Essa é por excelência a função interventiva protetiva do direito penal na tutela de bens jurídicos.

Conforme o contexto social em que a violência nas relações de gênero está inserida é justificável uma pena em abstrato de 12 a 30 anos para o feminicídio. A Lei nº. 13.104/2015, de maneira legítima, trata com maior rigor situações em que outros ramos do direito, após exaustivas tentativas, não obtiveram êxito. Neste cerne, a prevenção geral negativa funciona como coação psicológica à coletividade no desestímulo da violência, a prevenção especial negativa incute no autor do crime o temor de uma punição mais grave e evita a reincidência.

Nota-se, ainda, que se feminicídio integra o rol dos crimes hediondos e o sujeito ativo não faz jus a alguns benefícios da execução da pena. Não tem direito ao sursis, fiança, graça, indulto e para progredir deve precisa cumprir 2/5 de pena e 3/5, se primário ou reincidente, respectivamente.

Fora inserido no rol do art. 121, sete causas de aumento de pena: crimes praticados durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra pessoa menor de 14 anos e maior de 60 anos, com deficiência ou na presença de ascendente ou descendente da vítima. Notadamente o legislador objetivou proteger situações e momentos de excepcional fragilidade da mulher, bem como os reflexos traumáticos e desestruturantes que possam ser geradas aos filhos, pais, netos da vítima.

A realidade sociocultural do país é inegavelmente machista e políticas públicas educacionais preventivas e repressivas provindas de outros ramos do direito podem ser adotadas para modificar esse quadro. Porém o que se está a buscar com o feminicídio é frear a banalização da vida a que inúmeras mulheres estão sujeitas simplesmente pelo seu gênero. Pelas experiências passadas neste contexto, sabe-se que enquanto o aumento da violência não for controlado, normas mais brandas serão insuficientes.

CONCLUSÃO

Enriquece o debate democrático discutir as impressões geradas sobre a tipificação do feminicídio. Mulheres e homens são sujeitos de uma vida digna e tem direito à preservação e tutela pelo estado da sua integridade física. Ocorre que há um déficit na repreensão penal dos sujeitos ativos nos homicídios de gênero, que permite punição com maior rigor sem que o feminicídio seja considerado um privilégio. Há uma necessidade social em se reafirmar que a mulher o direito de não ter sua vida mais facilmente violada pelo simples fato de ter nascido do sexo feminino.

O exercício da alteridade quanto ao outro possibilita retirar as vendas culturais que fazem parecer comum o que não deveria ser. Permite enxergar a violência silenciosa, muitas vezes exercida entre quatro paredes e nos silêncio dos lares, no cerne dos relacionamentos íntimos de afeto, que tem em seu ápice a morte. Não é mais possível conviver com os assassinatos diários de mulheres em um contexto de gênero e negar-lhes existência.

A visibilidade social e a certeza de punibilidade fazem parte do caminho necessário para coibir assassinatos[6] e proporciona o fortalecimento do Brasil como estado democrático de direito.

A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar.

Martin Luther King


[1] Dados do IPEA pesquisados entre 2001 e 2011.

[2] Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, Venezuela e Brasil.

[3] Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação à mulher (CEDAW) e a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher -conhecida como Convenção de Belém do Pará.

[4] A Lei Maria da Penha não contribuiu para a diminuição dos homicídios de mulheres em um contexto de gênero. Dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE) - Mapa da Violência, demonstram que no primeiro ano de sua vigência ocorreu um decréscimo nas taxas de homicídio (2006), porém nos subseqüentes essas taxas voltaram a aumentar.

[5] O ditado popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” explicita bem a cultura do silêncio no âmbito da violência doméstica. A cultura torna a agressão comum e contribui para o incremento dos índices de homicídio de mulheres neste contexto.

[6] Tipificar o feminicídio permite que os assassinatos de gênero sejam percebidos e apreendidos. Exerce coação psicológica na sociedade, através da prevenção geral negativa e incute no autor do crime um sentimento punição com maior rigor, intimidando e evitando a reincidência através da prevenção geral negativa.]

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Assessoria de Comunicação do Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha. http://www.cnj.jus.br/images/programas/lei-maria-da-penha/cartilha_maria_da_penha.pdf. Acesso em 04 de abril de 2015.

BARROS, Alice Monteiro. Proteção do Trabalho da Mulher e do Menor “apud” in NETO, Vogel, ADOLPHO, Gustavo (Coord.). Curso de Direito do Trabalho em homenagem ao professor Arion Sayão Romita. Rio de Janeiro, Forense, 2000.

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__________. Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm>. Acesso em 11 de março de 2015.

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Senado Federal. Projeto de Lei n 292 de 2013 (Da CPMI de violência contra a mulher no Brasil). http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=133307&tp=1. Acesso em 02 de abril de 2015.

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