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Limites, legalidade e interpretações da penhora de caderneta de poupança (art. 649, inciso X, do CPC) e dignidade da pessoa humana

Agenda 21/02/2013 às 09:29

Analisa-se a impenhorabilidade da poupança nos seguintes casos: quando a poupança é utilizada como se fosse conta corrente; quando o valor de 40 salários mínimos está distribuído em várias contas de poupança; quando o saldo excedente é mantido por salários.

Resumo: O presente ensaio traz reflexões sobre a impenhorabilidade da caderneta de poupança no montante de até 40 (quarenta) salários mínimos, prevista no art. 649, inciso X, do CPC, alterado pela Lei nº. 11.382/06, analisando as interpretações conferidas pela doutrina e jurisprudência pátrias e tendo como norte a intenção do legislador em resguardar o mínimo essencial e a dignidade do devedor e sua família.

Palavras-chave: Caderneta de poupança. Impenhorabilidade. Dignidade da pessoa humana.


O ponto de partida para o recebimento de um crédito, no processo de execução forçada, é a penhora de um bem. Caso contrário, torna-se impossível o adimplemento da obrigação, mediante o pagamento da dívida.

Ocorre que por imposição legal, nem todos os bens do devedor são passíveis de penhora. Uma das restrições é a penhora da caderneta de poupança.

O art. 649, inciso X, do Código de Processo Civil (CPC), alterado pela Lei nº. 11.382/06, estabelece que é impenhorável “até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança”. A medida visa proteger o pequeno poupador.

Cumpre destacar que a disposição normativa em comento excepciona a regra da responsabilidade patrimonial do devedor instituída no art. 591, do CPC. Logo, a legislação pátria, em homenagem a critérios humanitários, ressalva determinados bens do devedor da responsabilidade por dívidas (art. 648, do CPC).

O objetivo do novo sistema de impenhorabilidade de depósito em caderneta de poupança é, claramente, o de garantir um mínimo existencial ao devedor, como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana[1], alçado a fundamento da República Federativa do Brasil pelo art. 1º, inciso III, da Constituição de República de 1988. A impenhorabilidade, portanto, é determinada para garantir que, não obstante o débito, possa o devedor contar com um numerário mínimo que lhe garanta a subsistência digna[2].

Quarenta salários mínimos é valor que representa um montante suficiente para a manutenção do executado e de sua família durante certo período de tempo, sendo este o fundamento valorativo do normativo em discussão.

Note-se que o inciso X do art. 649, do CPC, veio a substituir a proteção que era antes outorgada às “provisões de comida e combustíveis, necessários à manutenção do executado e de sua família durante um mês”, constante na redação do inciso II, do art. 942, do Código de Processo Civil de 1939, cuja reprodução quase idêntica se manteve até a vigência da Lei nº. 11.382/06, no inciso II, do art. 649, do CPC de 1973[3].

O fundamento valorativo das normas é o mesmo, estando elas ligadas pela axiologia e distanciadas pelas diferenças sociais e culturais do tempo em que lhes eram aplicáveis. Enquanto que, em 1939, o estoque e a armazenagem de comida e combustíveis desempenhavam papel importante à sobrevivência familiar, em 2006, a reserva de capital cumpre esta função. Nada mais razoável, portanto, que se revogue àquela impenhorabilidade e se institua esta, como o fez a Lei nº. 11.382/06[4].

Talvez o legislador tenha exagerado no valor impenhorável, sendo mais condizente com a realidade do país a redução do montante a, pelo menos, ¼ (um quarto) do instituído. Todavia, não foi essa a percepção do legislador, detentor de competência constitucional para delimitar o valor.

Em que pese a impenhorabilidade tratada no art. 649, do CPC ser absoluta, para que não seja incentivado o inadimplemento por parte do devedor cumpre fazer duas ressalvas.

A primeira é que somente será impenhorável a quantia que tenha sido depositada na caderneta de poupança antes da obrigação inadimplida. A segunda é que caso o executado possua mais de uma caderneta de poupança, a impenhorabilidade ficará limitada ao valor de 40 (quarenta) salários mínimos (tenha o executado várias contas em valores inferiores, situação em que será protegido o somatório até que sejam alcançados 40 salários; tenha o executado várias contas-poupança em valor superior, caso em que a impenhorabilidade somente será aplicável a uma delas, sendo as demais plenamente penhoráveis[5]).

A questão é: a expressão “caderneta de poupança” deve ser interpretada de forma restritiva ou extensiva?

Parte da doutrina filia-se à restrição hermenêutica, excluindo-se outros tipos de aplicação financeira da proteção da impenhorabilidade[6]. Seguindo essa orientação, as aplicações em fundos de investimentos ou em conta corrente seriam penhoráveis.

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Destarte, sobreleve-se que a caderneta de poupança foi escolhida pelo legislador por tratar-se de aplicação financeira de risco baixíssimo, condizendo com a cautela que se deve dar à proteção familiar.

No entanto, caso o executado possua um único investimento, que não o da caderneta de poupança, sem que exista finalidade especulatória, no valor de até 40 (quarenta) salários mínimos, e houver a sua penhora, estar-se-ia indo contra a finalidade do instituto, qual seja, reservar o mínimo necessário à sobrevivência digna do devedor e de sua família. Não se vislumbram razões para não se abarcar na impenhorabilidade quantias disponíveis em conta corrente[7].

Sendo assim, a interpretação literal desse dispositivo conduziria à desobediência aos direitos fundamentais. O que determinará a incidência ou não da regra de impenhorabilidade são as circunstâncias do caso concreto, devendo o magistrado perquirir se aquele valor investido serve aos fins axiológicos do benefício em referência[8].

Em sentido contrário, a jurisprudência que vem se formando no sentido de que caso o devedor use sua conta caderneta de poupança como conta corrente, fazendo diversas movimentações e pagamentos, estar-se-á diante de um desvirtuamento da conta poupança, autorizando-se, por conseguinte, que a penhora recaia sobre a mesma[9]:

Direito Processual Civil. Execução. Penhora on-line. Desbloqueio de valores em poupança. Desvirtuamento da conta-poupança para conta corrente. Possibilidade de penhora.

1 - A penhora é a maneira pela qual o Judiciário compele o devedor a cumprir determinada obrigação que já deveria ter sido feita de livre e espontânea vontade, arrestando assim quantos bens sejam necessários.

2 - O legislador, ao editar a Lei nº 11.382, de 6/12/2006, tentou de uma certa forma proteger o pequeno poupador.

3 - A penhora on-line efetuada via Bacen Jud sobre conta-poupança pode ser autorizada, quando o executado utiliza-se da poupança, fazendo depósitos e retiradas como se conta-corrente fosse, desnaturando totalmente a poupança que o legislador pretendeu preservar ao editar a Lei nº 11.382.

4 - Recurso desprovido.

Impende trazer à baila outra importante discussão. Partindo-se da premissa legal de que a quantia depositada em caderneta de poupança até 40 (quarenta) salários mínimos é absolutamente impenhorável, discute-se em jurisprudência se, ainda que haja pluralidade de contas bancárias, deve-se analisar o valor constante em todas elas, pois o valor total pode ser necessário para o sustento do devedor.

O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão, entendeu que essa garantia somente pode ser efetivada caso incida sobre o montante total visado pelo legislador, não sobre o número de contas mantidas pelo devedor. Com efeito, se a impenhorabilidade estabelecida pelo legislador pauta-se por um valor pré-estabelecido, fixado por Lei como o mínimo existencial, naturalmente esse valor tem que ser tomado, sempre, como o norte final da regra protetiva, independentemente do número de aplicações financeiras dessa natureza mantida pelo devedor[10].

Posicionando-se contra esse entendimento, Araken de Assis[11] preleciona que:

Resta, porém, uma dificuldade: o limite de quarenta salários mínimos se aplica a cada conta de poupança, individualmente considerada, ou ao conjunto dos depósitos, quando o executado é titular de várias contas da mesma natureza? O art. 649, X, não alude à 'única' caderneta de poupança. Todavia, a interpretação restritiva se impõe no caso; do contrário, valores expressivos poderiam ser divididos em várias contas, burlando a finalidade da regra, que é a de proteger a população de baixa renda.

O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, decidiu que essa crítica não se sustenta, pois se fixarmos, como limite da impenhorabilidade, o montante de 40 (quarenta) salários mínimos, mesmo que distribuídos em mais de uma aplicação, não haveria favorecimento algum ao devedor de alta renda, mas, em vez disso, uniformidade de tratamento a devedores que, substancialmente, encontram-se em situações equivalentes. O critério seria sempre uno, pautado no valor atribuído pelo legislador como mínimo existencial[12].

Não se trata de desconsiderar o fato de que tal norma possivelmente incentivaria os devedores a, em lugar de pagar o que devem, depositar o respectivo valor em caderneta de poupança para burlar o pagamento. Todavia, situações específicas, em que reste demonstrada a má-fé, comportam soluções também específicas, para coibição desse comportamento. Nas hipóteses em que a má-fé não esteja demonstrada, contudo, resta ao judiciário, apenas, a aplicação da Lei.

Ainda sobre o dispositivo em comento, sobreleve-se que parte da doutrina entende tratar-se de norma que visa prestigiar a dignidade da pessoa humana do devedor, pois autoriza que valores até 40 (quarenta) salários mínimos fiquem isentos de sofrer penhora. No entanto, questiona-se a preocupação com a dignidade da pessoa humana do credor que pode sofrer prejuízos irreparáveis ante o não recebimento de seu crédito, inviabilizando a proteção adequada do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Nessa senda e consoante a doutrina mais moderna, notadamente dos professores Theotônio Negrão e José Roberto F. Gouvêa[13] se extrai que o limite de 40 (quarenta) salários mínimos não pode ser flexibilizado, na medida em que a quantia disposta na lei já revela que este é o mínimo valor que deva ser garantido ao devedor para a preservação de sua dignidade.

No tocante a inconstitucionalidade do normativo em análise, não existe ainda nenhum julgamento do Egrégio Supremo Tribunal Federal que examine diretamente a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do atual inciso X do artigo 649 do Código de Processo Civil.

Entretanto, a jurisprudência trabalhista levantou a tese da inconstitucionalidade[14] do inciso X do artigo 649, do CPC, argumentando que a vinculação ao salário mínimo contraria o disposto no art. 7º, inciso IV, da Constituição da República de 1988. Dessa forma, a incompatibilidade com os princípios do direito e do processo do trabalho é manifesta, pois confere uma dupla e injustificável proteção ao devedor, em manifesto prejuízo ao credor, no caso, hipossuficiente. A proteção finda por blindar o salário e o seu excedente que não foi necessário para a subsistência e se transformou em poupança

Tal argumento, contudo, não merece prosperar, pois o salário mínimo é medida de verba alimentar, o que, por si só, justifica a fixação do limite em salários mínimos. E foi por essa razão que se construiu a tese de que se tratando de alimentos ou de verba alimentar, não há inconstitucionalidade na fixação em salários mínimos, não incidindo a vedação constitucional. Alimentos e verba alimentar estão em lugar ainda mais alto, na hierarquia das leis, pois versam sobre direitos humanos necessários a garantia da sobrevivência, consoante art. 5º, caput da Constituição da República de 1988.

Há, contudo, mais um ponto a questionar: e se o valor da poupança for superior a 40 (quarenta) salário mínimos, mas, mantida por salário. Há incidência da regra da impenhorabilidade?

O artigo 649, inciso IV do CPC dispõe que são absolutamente impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

Segundo a doutrina[15] o inciso IV do art. 649 do CPC, que prevê a impenhorabilidade de verbas remuneratórias e de pensionamento, não deve ser interpretado em sentido literal, sob pena de criar um alargamento impróprio da garantia processual e privilegiar de forma injustificada o devedor, diminuindo a responsabilidade pelo pagamento de dívidas e comprometendo a própria tutela jurisdicional executiva.

Portanto, os valores obtidos a título de salário, vencimentos, proventos e pensões são impenhoráveis somente nos limites do eventual comprometimento da receita mensal necessária à subsistência do devedor e de sua família. Preserva-se, dessa forma, um mínimo para a sua sobrevivência, mas ao mesmo tempo, entrega-se a prestação jurisdicional pleiteada pelo exeqüente. Entender de forma contrária provocaria evidentes distorções e criaria indevida proteção ao executado.

Verifica-se, portanto, uma necessidade de compatibilização da regra do inciso IV do art. 649 do CPC, com o inciso X do mesmo dispositivo legal, o qual somente protege da constrição judicial a quantia depositada em caderneta de poupança até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos. Acima desse limite, pouco importa a origem ou natureza do restante da verba depositada, que pode ser penhorada.

Em face do exposto, conclui-se que as cadernetas de poupança até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos da quantia depositada são impenhoráveis.

Em relação ao valor excedente, poderá haver penhora, desde que seja feita a verificação do comprometimento da receita mensal necessária à subsistência do devedor e de sua família, observada a proporcionalidade, razoabilidade e os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana.


Notas

[1] Sobre a dignidade da pessoa humana, cumpre destacar a lição de Ingo Sarlet. “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001).

[2] STJ. REsp. nº. 1.231.123-SP (2011/0003344-6). Rel. Min. Nancy Adrighi. 3ª Turma. DJe 30.08.2012.

[3] SCARPARO, Eduardo Kochenborger; HACKMANN, Julia Pes. Execução por quantia certa contra devedor solvente – disposições gerais. Comentários aos arts. 646 a 651 do CPC. Disponível em: <http://www.advogadobr.com/comentarios-ao-CPC/00c0646a0651.php>. Acesso em: 11.11.2011.

[4] SCARPARO, Eduardo Kochenborger; HACKMANN, Julia Pes. Op. cit.

[5] Do mesmo modo, Araken de Assis. Manual da execução... cit., p. 225; e Sérgio Shimura. O princípio da menor gravosidade ao executado. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes, e SHIMURA, Sérgio (coord.). Execução civil e cumprimento da sentença. São Paulo: Método, 2007. v. 2, p. 542 

[6] SILVA, Jaqueline Mielke; XAVIER, José Tadeu Neves; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. A nova execução de títulos executivos extrajudiciais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 114.

[7] SCARPARO, Eduardo Kochenborger; HACKMANN, Julia Pes. Op. cit.

[8] SCARPARO, Eduardo Kochenborger; HACKMANN, Julia Pes. Op. cit.

[9] TJDFT - 3ª T. Cível; AGI nº 11454-0; Rel. Des. Mário-Zam Belmiro; publicado no DJ de 10/3/2008.

[10] STJ. REsp. nº. 1.231.123-SP (2011/0003344-6). Rel. Min. Nancy Adrighi. 3ª Turma. DJe 30.08.2012.

[11] ASSIS, Araken de. Revista Jurídica, v. 55, n. 359, p. 21-40, set/2007.

[12] STJ. REsp. nº. 1.231.123-SP (2011/0003344-6). Rel. Min. Nancy Adrighi. 3ª Turma. DJe 30.08.2012.

[13] NEGRÃO, Theotônio; BONDIOLI, Luis Guilherme. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 41. ed. São Paulo: Saraiva, p. 874.

[14] Conferir: TRT 2ª Região. Processo nº 02044200703002000. Relator Juiz Convocado Adalberto Martins. 12ª Turma. DOEletrônico 19.09.2008.

[15] Reinaldo Filho, Reinaldo. Da possibilidade de penhora de saldos de contas bancárias de origem salarial. Interpretação do inc. IV do art. 649 do CPC em face da alteração promovida pela Lei n. 11.382, de 6.12.06.  Disponível no site Jus Vigilantibus em: http://jusvi.com/artigos/33940/2. Acesso em 18/08/2011.

Sobre a autora
Natália Hallit Moyses

Procuradora Federal. Chefe do Serviço de Orientação e Análise em Demandas de Controle da PFE-INSS. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOYSES, Natália Hallit. Limites, legalidade e interpretações da penhora de caderneta de poupança (art. 649, inciso X, do CPC) e dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3522, 21 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23768. Acesso em: 5 nov. 2024.

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